LINGUAGEM MÉDICA
AFECÇÃO, DOENÇA, ENFERMIDADE, MOLÉSTIA
A diferença semântica entre afecção,
doença, enfermidade e moléstia tem sido objeto de indagação,
tanto do ponto de vista linguístico, como de terminologia médica.
O grego clássico sempre foi a fonte inesgotável
onde a ciência médica buscou os elementos formadores de sua
terminologia. Para expressar doença com radicais gregos utilizam-se
os temas nósos e páthos, com
os quais se formaram numerosos compostos, tais como nosologia, nosografia,
patologia, cardiopatia, patogenia, etc. Páthos, em
grego, tem um sentido muito mais amplo do que nósos, e
tanto se refere ao infortúnio físico como moral, às
paixões exacerbadas.[1][2]
Para designar o estado mórbido de um modo
geral, entretanto, prevaleceram na terminologia médica palavras
de origem latina, populares ou semicultas, de livre trânsito entre
médicos e leigos, como achaque, incômodo, padecimento,
mal,
afecção,
doença,
enfermidade,
moléstia.
As quatro últimas são as de maior uso no vocabulário
médico. Originalmente cada uma delas caracterizava um aspecto particular
da perturbação da saúde, o que estava implícito
em sua própria etimologia.
Afecção provém do latim
affectione,
ação de afetar, influência; estado resultante da influência
sofrida; modificação.[3]
Doença, em latim, era designada por
morbus,
i,
donde mórbido, morbidade, morbífico, morbígeno etc.
A palavra doença procede do latim dolentia,
de dolens, entis, particípio presente
do verbo doleo, dolere, sentir ou causar dor, afligir-se,
amargurar-se.
Enfermidade corresponde ao latim infirmitas,
atis,
de
infirmus,
que, por sua vez, resultou da fusão do prefixo
in (negação)
+ firmus,
firme, robusto, saudável. Denota, portanto,
debilidade, fraqueza, perda de forças.
Moléstia provém de igual palavra
latina, molestia, que exprime enfado, incômodo, estorvo,
inquietação, desassossego.[4]
Assim sendo, cada uma das palavras em estudo tinha
originalmente seu conteúdo semântico próprio. Afecção
expressava as modificações sofridas pelo organismo resultantes
da ação de uma causa; doença traduzia o sofrimento,
a dor que acompanha os estados patológicos; enfermidade caracterizava
o enfraquecimento, a debilitação do organismo; e moléstia
refletia a sensação de desconforto e mal-estar que acompanha
o estado mórbido.
O uso alternativo de um ou de outro termo para indicar
uma condição que enfeixa o significado dos demais, forçosamente
levaria a uma metonímia, o que efetivamente ocorreu.
As tentativas de manutenção das diferenças
semânticas entre essas quatro denominações, tanto no
passado como no presente, têm sido infrutíferas, sem qualquer
resultado prático.
Plácido Barbosa, em seu Dicionário
de Terminologia Médica Portuguesa, reconhece a impossibilidade
de manter a distinção semântica entre moléstia
e doença: "Moléstia. A significação
originária deste termo é a de enfado, incômodo, ação
ou efeito do que é molesto, e não a de doença, que
hoje se lhe dá". "Mas como a doença é sempre acompanhada
de maior ou menor moléstia, esta relação constante
favoreceu e determinou a metonímia, pela qual moléstia passou
a significar doença". "Estas mudanças de sentido são
fenômeno natural na vida das palavras, e não há que
estranhá-lo em relação à moléstia".[5]
Miguel Couto, em uma tentativa de atribuir um significado
próprio a cada um dos nomes, propõe as seguintes definições:
"Doença - Termo genérico, significando qualquer desvio
do estado normal. Moléstia - Conjunto de fenômenos
que evolvem sob a influência da mesma causa. Afecção
- Conjunto de fenômenos na dependência da mesma causa. Enfermidade
-
Desarranjo na disposição material do corpo".[6]
Arnaldo Marques, em seu Manual de Semiologia,
reconhece a dificuldade de atribuir a cada vocábulo um sentido próprio.
São suas as seguintes considerações: "É, contudo,
questão complexa, passível de sérias controvérsias,
definir e conceituar os vocábulos doença, moléstia,
incômodo, achaque, enfermidade, padecimento, entidade mórbida,
condição mórbida - usadas, todas elas, para significar,
de uma maneira vaga e imprecisa, o fato mórbido, o sofrimento.
Muito embora possamos encontrar pequeninas diferenças
entre o significado de cada uma dessas palavras, não resta dúvida
de que não raro influem na sua preferência, até um
certo ponto, fatores pessoais; um deles é a literatura estrangeira
a que se habitou o médico. Os que lêem principalmente o inglês
(disease, illness, morbid condition) empregam
de preferência condição mórbida. Os afeiçoados
das obras em castelhano servem-se de enfermidade. Outros mais referem-se,
de hábito, à expressão, mais correta, aliás,
moléstia, talvez por influência das obras de língua
francesa (maladie)".[7]
O mesmo autor faz uma ressalva quanto à afecção.
"Se, entretanto, falamos de uma certa doença, referindo-a como uma
simples lesão anatômica - "úlcera do estômago",
"fratura do rádio" - devemos empregar a expressão afecção
e não moléstia".[7]
Lemos Torres dá as seguintes definições:
"Doença - do latim dolentia
de
dolens
= dor, portanto indica perturbação em que há dor,
corresponde à palavra grega algos,
algema
que nos legou algia = dor".
"Moléstia - do latim molestia,
perturbações da molens (massa de matéria
mole, corpo) sob o influxo de uma mesma causa, que importuna, acarreta
mal-estar e atormenta, corresponde em grego a nosos, nosema,
que nos deu nosologia, nosografia e nosogenia".
"Afecção - Num sentido amplo
e filosófico, afectar significa atuar sobre um ser vivo,
especialmente consciente, maximé em seu sensibilidade e sentimentalidade
ou em seus interesses vitais. No sentido médico, indica ação
maléfica atuando sobre um órgão ou tecido vivo, acarretando-lhe
desvios de suas funções ou lesando-o fisicamente. Afecção
seria a expressão de um estado morbífico do organismo vivo
ou do ânimo. Entretanto, a afecção não é
o mesmo que moléstia, veio como esta do latim, mas de affectio,
onis,
deriva afficio, significa relação, disposição,
estado e modo de ser, corresponde no grego a
pathos, pathéma,
que significa modificação qualquer, sofrimento, moléstia,
afecção mórbida".
"Enfermidade - do latim infirmita,
infirmitatis
(de infirmus) que significa fraqueza, debilidade. Incapacidade
de realizar algo de habitual devido a uma deficiência; corresponde
no grego a astheneia = astenia, que designa mais propriamente
fraqueza muscular".[8]
Oliveira e col., no livro Controvérsias
em Gastroenterologia, citando O. P. Cirne, emitem os seguintes conceitos:
"Quando se define doença, ou estado mórbido, pressupõe-se
a coexistência de uma lesão, de uma etiopatogenia, de um conjunto
sintomático e de uma evolução. Doença é
considerada um evento biológico cuja causa pode ser ou não
reconhecida pelos métodos clínicos. Não deve ser confundida
com moléstia, vocábulo que provém de MOLESTO-(O)-IA
e que tem a acepção de mal-estar, de inquietação,
não sendo bom português empregá-lo no sentido de doença
ou enfermidade. Molestar não significa produzir doença, mas
sim atormentar, causar incômodo. Por esta razão usa-se história
da moléstia atual".[9]
Em realidade, nem sempre se usa história
da moléstia atual. Em muitos serviços médicos,
universitários ou não, usa-se também história
da doença atual (HDA).
Pelo exposto, vê-se que não há
consenso quanto ao significado preciso de cada um dos termos empregados
para indicar a alteração da saúde. São eles
utilizados como sinônimos, independentemente da conotação
semântica que cada um possa ter. De todos, o que mais se diferencia
é, sem dúvida, afecção, ao qual se procura
ligar a idéia de alteração anatômica consequente
ou determinante do estado mórbido.
Doença, enfermidade e moléstia
se eqüivalem, como atestam os textos médicos atuais e os modernos
léxicos da língua portuguesa, especializados ou não.
É interessante ressaltar que, nos epônimos,
emprega-se de preferência doença ou enfermidade
e, mais raramente, moléstia ou mal (mal de Hansen, mal
de Pott). De modo análogo, as pessoas que apresentam qualquer
perturbação na saúde, mesmo que esta seja rotulada
de afecção ou moléstia, são sempre
doentes
ou enfermos.
Etimologicamente, doente é o que sente
dor, o que sofre, o que padece; enfermo é o que está
debilitado, enfraquecido pela doença. A etimologia, entretanto,
não determina o significado das palavras; serve apenas como esclarecimento
de sua origem.
A menos que haja uma convenção, torna-se
muito difícil, na atualidade, estabelecer quando se deve empregar
afecção,
doença,
enfermidade,moléstia
ou
mal.
O fato, todavia, não constitui o mal maior. O que se deve evitar
é o emprego, cada vez mais frequente, de
patologia como
sinônimo de
afecção, doença, enfermidade
ou moléstia. Ouve-se com frequência, em comunicações
orais, ou lê-se em publicações médicas, que
o doente tem uma determinada patologia ou. até mesmo duas
ou mais
patologias!
Referëncias bibliogrãficas
1. BAILLY, A. - Dictionnaire grec-français, 16.
ed. Paris, Lib. Hachette, 1950.
2. LIDDELL, H.G., SCOTT, R. - A greek-english lexicon,
9.ed., Oxford, Claredon Press, 1983.
3. MACHADO, J.P. - Dicionário etimológico
da língua portuguesa, 3.ed. Lisboa, Livros Horizonte, 1977.
4. SARAIVA, F.R.S. - Dicionario latino-português,
9.ed. Rio de Janeiro, Liv. Garnier, 1993.
5 BARBOSA, P. - Dicionário de terminologia médica
portuguesa. Rio de Janeiro, Liv. Francisco Alves, 1917.
6 COUTO, M. - Clínica médica, 3.ed. Rio
de Janeiro, Flores & Mano Ed., 1936, p. 223
7. MARQUES, A.- Manual de semiologia. Rio de Janeiro,
Liv. Atheneu, 1959. p. 8.
8. TORRES, U.L., Achegas à nomenclatura médica.
An.
Paul.
Med.
Cir.
82:359-368, 1961.
9. OLIVEIRA, C.A et al. In CASTRO, L.P., ROCHA,
P.R.S. (Ed.).- Controvérsias em Gastroenterologia. Rio de Janeiro,
Liv. Atheneu, 1988, p.129
Publicado no livro Linguagem Médica, 4a. ed.,
Goiânia, Ed. Kelps, 2011.
Joffre M de Rezende
Prof. Emérito da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Goiás
e-mail: pedro@jmrezende.com.br
http://www.jmrezende.com.br