ARTELHO
Artelho é palavra
bem antiga na língua portuguesa. Provém do latim articulus,
diminutivo de artus, com o sentido de junta, articulação.
O sufixo vernáculo -elho é também diminutivo,
como em folhelho, bedelho, leitelho.
Desde o século XVI
há registro do emprego de artelho como termo anatômico para
designar a junta da perna com o pé. Ora se refere à própria
articulação, ora, o que é mais comum, às saliências
ósseas formadas pela tíbia e perônio, que correspondem
ao tornozelo ou maléolo (externo e interno).
Nos léxicos mais
antigos da língua portuguesa vamos encontrar as seguintes definições
para artelho:
Moraes (18l3): "cabeça
do osso que sai da extremidade da perna".[1]
Constâncio (1845):
"articulação da perna com o pé". [2]
Eduardo de Faria (1854):
"parte do osso da perna que forma o tornozelo; junta por onde o pé
prende com a perna" [3]
Domingos Vieira (1871):
"nó, junta ou articulação por onde o pé prende
com a perna." [4]
Lacerda (1874): "parte do
osso da perna que forma o tornozelo, junta por onde o pé prende
com a perna."[5]
Aulete (1881): "parte saliente
e arredondada da tíbia e perônio na sua articulação
com o pé; maléolo, tornozelo." [6]
C. Figueiredo (1899): "extremidade
inferior, saliente e arredondada dos ossos da perna na sua articulação
com o pé." [7]
Desde o final do século
XIX artelho vem sendo usado com uma nova acepção, de "dedo
do pé", o que se atribui à influência da literatura
médica francesa. Em francês, dedo do pé é orteuil,
que foi equivocadamente traduzido por artelho, considerado, com razão,
galicismo. Orteuil em francês, antes arteuil, origina-se
igualmente do latim articulus, porém adquiriu significado
diverso de artelho em português.
O uso de artelho com o sentido
de dedo do pé tem sido condenado por se tratar de um galicismo desnecessário
e inconveniente por sua ambiguidade.
"Quanto a se dar a artelho
a significação de dedo do pé isso é erro crasso
em português; artelho nada tem de comum com o francês orteuil,
nem pode ser traduzido dele, apesar de sua aparência semelhante."
(Plácido Barbosa) [8]
"A palavra portuguesa artelho
não corresponde à francesa orteuil." "Nosso artelho,
da mesma etimologia de orteuil, significa o maléolo, o tornozelo."
(Pedro A. Pinto) [9]
"Em vez de artelho, termo
comumente usado, melhor fora dizer pedartículo, como propôs
o Dr. Alvaro de Barros na sua tese Contribuição ao estudo
clínico dos reflexos cutâneos, (Rio de Janeiro,
1904, p.8). Na verdade, minguando em nosso idioma vocábulo que designe
os dedos do pé (artelho é outra cousa, é tornozelo,
é maléolo) até certo ponto se justifica aquela creação,
de articulus, articuli, e de pes, pedis."(Aloysio
de Castro) [10].
A difusão de artelho
com o sentido de "dedo do pé" ocorreu principalmente no Brasil,
provocando reação em Portugal.
"Porque os franceses chamam
de orteuils aos dedos dos pés não vamos nós,
portugueses, chamar-lhe artelhos, pois em bom português artelho é
sinônimo de maléolo e tornozelo". "Já assim não
é no Brasil, pois se Plácido Barbosa repudiou o termo nessa
acepção, usa-o Renato Locchi chamando músculo extensor
longo do grande artelho ao que nós denominamos longo extensor
do dedo grande do pé." (Soeiro) [11]
Em linguagem literária
os léxicos citam abonações de clássicos portugueses,
desde João de Barros, Júlio Dantas, Manoel Bernardes, Camilo
Castelo Branco e Alexandre Herculano, que empregaram artelho somente como
sinônimo de tornozelo. Também entre os escritores clássicos
brasileiros prevalece o mesmo entendimento.
No livro Ubirajara,
de José de Alencar, para só citar um dos mais lídimos
representantes da literatura brasileira, lemos o seguinte trecho: "Os
tupinambás fizeram dessa goma contas para seus colares. Jurandir
mostrou a pulseira que lhe cingia o artelho, presente de um guerreiro daquela
nação."[12]
Em que pese a todas estas
considerações, a nova acepção de artelho, apesar
de tachada de galicismo, vem ganhando terreno e firmando-se no vocabulário
médico e na linguagem comum. A tal ponto que a tradução
da Nomina Anatomica para a língua portuguesa, publicada em
1977 sob a coordenação do médico e eminente lingüista
Idel Becker, incorporou a denominação de artelho como alternativa
para dedo do pé. [13]
Alguns dicionários
modernos averbam separadamente as duas acepções, com entradas
independentes: artelho1 e artelho2, conforme se lê
em Laudelino Freire [14], no Michaelis [15], e no dicionário médico
de Paciornik. [16] Outros léxicos colocam no mesmo verbete os dois
significados. [17] [18]
Curiosamente, a 3a.
edição do Aurélio registra artelho com remissão
para pododáctilo e não faz referência à acepção
clássica de tornozelo. No verbete pododáctilo considera pedartículo
forma imprópria e artelho forma desusada de pododáctilo (!)
[19]
É óbvio que
nenhum dos dois termos sugeridos em substituição a artelho,
tanto pedartículo como pododáctilo se prestam a uso literário,
ao passo que artelho chega a ser poético e tem sido aproveitado
pelos nossos vates, tanto na acepção de tornozelo, como de
dedo do pé. Exemplos:
Como tornozelo:
"Mostra o que ela não
mostra de pudica
do colo abaixo e acima
dos artelhos"
Raymundo Correa - Poesias.[20]
Como dedo do pé:
"Falará, coberta
de luzes,
do alto penteado ao rubro
artelho".
Cecília Meireles - Mulher ao espelho.[21]
O que me parece mais acertado,
para evitar confusão, é abandonar de vez artelho como termo
médico, nas duas acepções, usando-se maléolo
ou tornozelo no sentido tradicional e pododáctilo, ou simplesmente
dedo do pé, para traduzir o latim digitus pedis da
NominaAnatomica.
Para o primeiro pododáctilo
(pododáctilo I), ao qual tem sido atribuídos os nomes de
grande
artelho, dedo grande do pé ou polegar do pé, a melhor
denominação é, sem dúvida, hálux,
do latim hallux, conforme a Nomina Anatomica.
Referências bibliográficas
1. MORAES SILVA, A. - Dicionário da língua
portuguesa. Lisboa, Typographia Lacerdina, 1813
2. CONSTANCIO, F.S. - Novo dicionário crítico
e etimológico da língua portuguesa, 3.ed. Paris, Angelo Francisco
Carneiro, 1845.
3. FARIA, E. - Novo dicionário da língua
portuguesa, 2 ed. Lisboa, Typographia Lisbonense, 1856.
4. VIEIRA, D. - Grande dicionário português
ou Tesouro da língua portuguesa. Porto, Ernesto Chardron e Bartholomeu
H. de Moraes, 1871-1874.
5. LACERDA, J.M.A.A.C. - Dicionário enciclopédico
ou Novo dicionário da língua portuguesa. Lisboa, F. Arthur
da Silva, 1874.
6. AULETE, F.J.C. - Dicionário contemporâneo
da língua portuguesa. Lisboa, Antonio Maria Pereira, 1881.
7. FIGUEIREDO, C. - Novo Dicionário da Língua
Portuguesa. Lisboa, Ed. Tavares Cardoso & Irmão, 1899.
8. BARBOSA, P. - Dicionário de terminologia médica
portuguesa. Rio de Janeiro, Liv. Francisco Alves, 1917.
9. PINTO, P.A. - Estudinhos de etimologias. Rio de Janeiro,
Tipografia Carmo, 43., p.138
10. CASTRO, A. - A propósito do termo pedartículo.
Brasil-Medico 47:56, 1933.
11. SOEIRO, M.B.B. - Terminologia anatómica portuguesa.
Apud
Morais Silva, A. - Grande dicionário da língua portuguesa,
vol. II, Lisboa, Ed. Confluência, 1950, p.72.
12. ALENCAR, J. - Ubirajara. Obra completa, 4.ed., vol.
II. Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1976, p. 1.162.
13. COMISSÃO LUSO-BRASILEIRA DE NOMENCLATURA MORFOLÓGICA:
Nomenclatura anatômica da língua portuguesa. Rio de Janeiro,
Guanabara Koogan, 1977.
14. FREIRE, L. - Grande e novíssimo dicionário
da língua portuguesa, 3.ed. Rio de Janeiro, José Olympio
Ed., 1957.
15. MICHAELIS: Moderno dicionário da língua
portuguesa. São Paulo, Cia. Melhoramentos, 1998.
16. PACIORNIK, R. - Dicionário médico,
2.ed.
Rio de Janeiro, Guanabara Koogan, 1975.
17. BUENO, F.S. - Grande dicionário etimológico-prosódico
da língua portuguesa. São Paulo, Ed. Saraiva, 1963.
18. NASCENTES, A. - Dicionário da língua
portuguesa. Academia Brasileira de Letras, 1961-1967.
19. FERREIRA, A.B.H. - Novo Aurélio Século
XXI, 3. Ed., Rio de Janeiro, E. Nova Fronteira, 1999.
20. CORREA, R.. Poesias. Apud BARBOSA, P. (7)
21. MEIRELES, C. - A mulher ao espelho. Mar absoluto
e ouros pemas. Obra poética, 3.ed., 6. impressão. São
Paulo, Ed. Nova Aguilar, 1987, p. 272.
Publicado no livro Linguagem Médica, 4a. ed., Goiânia, Ed. Kelps, 2011.
Joffre M de Rezende
Prof. Emérito da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Goiás
e-mail: pedro@jmrezende.com.br
http://www.jmrezende.com.br.