HISTÓRIA DA MEDICINA 
 

EIJKMAN, O DETETIVE DO BERIBÉRI



Nota de Direito Autoral:  O texto deste artigo foi publicado em 2009  no livro "À sombra do plátano" pela Editora UNIFESP. A reprodução do mesmo por meio impresso ou eletrônico requer autorização prévia da Editora [http://www.fapunifesp.edu.br fone: (11) 3369-4000]

   
        A descoberta da etiologia do beribéri por Eijkman, em 1889, encerra lances próprios de um enredo policial.
        O beribéri era conhecido, desde antes de Cristo, na China e países do oriente.
        O primeiro relato científico no ocidente se deve a Bontius (1592-1631), quem descreveu casos por ele observados no sudeste asiático. Em seu trabalho, escrito em latim e publicado 11 anos após sua morte, usou a denominação de beri-beri.1
        O nome beribéri, adotado na terminologia médica, provém do cingalês (sinhalese), língua originária da India e atualmente uma das línguas oficiais do Ceilão (Sri Lanka), onde é falada por cerca de 11 milhões de pessoas (Salles, Katzner). Nessa língua, o superlativo é formado pela repetição da palavra. Beri quer dizer fraco e beri-beri, extremamente fraco.2
        No Japão a doença era chamada kakke e acometia principalmente os marinheiros. O barão de Takaki, entre 1882 e 1884, conseguiu reduzir sua incidência na marinha japonesa melhorando a alimentação nas embarcações com a introdução de outros pratos além do arroz polido.
        No século XIX, a Indonésia era possessão holandesa e o governo holandês, preocupado com as doenças que grassavam em suas colônias, especialmente o beribéri, decidiu enviar uma Comissão para estudar in loco o beribéri. Pensava-se que se tratasse de uma doença infecciosa e por isso os membros dessa Comissão foram antes realizar um estágio em Berlim, no Laboratório de Koch, para dominar as técnicas bacteriológicas em uso. Vivia-se uma época de novas e sucessivas descobertas de bactérias patogênicas, responsáveis por doenças há muito conhecidas e de causa ignorada.
        Lá encontraram-se com Christian Ejkman, que estivera anteriormente em Java e que se mostrou igualmente interessado no estudo do beribéri. Eijkman foi incorporado à Comissão e voltou à antiga colônia holandesa em missão oficial.
        Em 1886 os membros da Comissão desembarcaram na ilha de Java, em Batávia (hoje Jacarta, capital da Indonésia), onde desenvolveram suas pesquisas. Descreveram o curso clínico da doença, em especial em relação às suas manifestações neurológicas, e isolaram um micrococo que acreditaram fosse o agente infeccioso causador do beribéri.
        Os membros da Comissão retornaram à Holanda, deixando Eijkman em Batávia para continuação das pesquisas 3.
        Eijkman foi indicado para diretor da Escola Médica de Java e prosseguiu suas observações sobre o beribéri. Logo percebeu que o micrococo isolado não poderia ser o agente causal do beribéri, pois não preenchia os postulados de Koch, ou seja, o isolamento do germe, a reprodução experimental da doença por ele causada e o seu reisolamento. 
        Nesse ínterim, observou o aparecimento de uma doença no biotério do Laboratório, onde os frangos apresentavam sinais de uma polineuropatia grave, caracterizada por fraqueza muscular, incapacidade de manter-se de pé ou de abrir as asas, inapetência e finalmente morte. Chamou a essa doença polyneuritis gallinarum e considerou-a equivalente ao beribéri.
        Inesperadamente, as aves acometidas da doença e que ainda estavam vivas começaram a melhorar e os sintomas desapareceram completamente
       Eijkman, qual um detetive, começou a procurar uma explicação para essa recuperação espontânea das aves e teve sua atenção despertada para a alimentação. No período de manifestação da doença os frangos estavam sendo tratados com sobras da cozinha dos oficiais do Hospital militar, onde se usava arroz polido da melhor qualidade. A melhora e recuperação dos frangos havia coincidido com a mudança na ração. Houve troca de cozinheiro e o novo cozinheiro entendeu que era um desperdício destinar alimentos da cozinha dos oficiais para galináceos, que passaram, então, a receber alimentos de pior qualidade, inclusive arroz despolido.
        Como contraprova de sua hipótese, Eijkman realizou o experimento decisivo: alimentou um grupo de frangos com arroz polido e outro grupo com arroz despolido. Somente as aves alimentadas com arroz polido desenvolveram polineurite.
        Na etapa seguinte, Eijkman isolou da cutícula do arroz uma substância solúvel na água e no álcool, a que chamou de princípio antineurítico. Com ela não só prevenia, como curava a polineurite dos frangos.
        Restava demonstrar que a causa do beribéri humano era a mesma da polineurite das aves.
        Eijkman foi informado de que em algumas prisões da colônia usava-se arroz polido e em outras arroz despolido. Os dados obtidos em 101 prisões que albergavam cerca de 300.000 presos permitiram a Eijkman concluir que a prevalência do beribéri era 300 vezes maior nas prisões que usavam o arroz polido em relação às que não o usavam.4
        Eijkman admitiu a existência de uma toxina no arroz polido, a qual seria neutralizada pelo princípio antineurítico por ele isolado e este foi o seu único equívoco.
        Coube a Grijns, que sucedeu Eijkman na direção do Laboratório em Batávia, a formular a teoria de que o beribéri seria causado, não por uma toxina, mas pela carência de uma substância existente na cutícula do arroz. A natureza química desta substância foi determinada em 1911 por Casimir Funk, quem cunhou a palavra vitamina, formada do latim vita, vida + amina, por ser um fator acessório da alimentação, essencial à vida.
        A vitamina contida na cutícula do arroz foi isolada por Jansen e Donath em 1926, que lhe deram o nome de aneurina, e finalmente sintetizada em 1936, simultânea e independentemente por Williams e Cline, nos Estados Unidos, e Andersag e Westphal, na Alemanha. Recebeu o nome de tiamina por conter enxofre em sua molécula (do grego thio, enxofre)5.
        Christiaan Eijkman recebeu o prêmio Nobel em 1929 por seus trabalhos sobre o beribéri, juntamente com Frederick Hopkins, este último por suas pesquisas sobre os "fatores acessórios da alimentação", que correspondiam às vitaminas.
        No Brasil, as primeiras referências a uma doença identificada ao beribéri datam do final do século XVIII e se devem a Alexandre Rodrigues Ferreira, naturalista baiano cognominado "Humboldt brasileiro".
        Ferreira, em viagem pela região amazônica, registrou o encontro de enfermos acometidos de "intensa fraqueza, perturbações circulatórias, edemas e polineurite".6
        Silva Lima, um dos integrantes da chamada escola tropicalista baiana, estudou detalhadamente o bériberi na Bahia. Entre os anos de 1866 e 1869 publicou uma série de artigos na Gazeta Médica da Bahia, todos com o mesmo título: "Contribuição para a história de uma moléstia que reina atualmente na Bahia sob a forma epidêmica e caracterizada por paralisia, edema e fraqueza geral". Descreveu o quadro cínico com grande riqueza de observações, estabeleceu o diagnóstico diferencial com a pelagra e registrou dados anatomopatológicos de necrópsia. Classificou o beribéri em 3 formas clínicas: forma polineurítica, forma edematosa e forma mista 7.
        Em 1872 Silva Lima reuniu todos os seus trabalhos sobre beribéri em um volume sob o título Ensaio sobre o beribéri no Brasil, que se tornou um clássico da literatura médica brasileira.
        Após os estudos de Silva Lima, seguiram-se muitas outras publicações de autores brasileiros sobre o beribéri.
 
 

Referências bibliográficas


1. MAJOR, R. H.. A history of medicine, Oxford, Blackwell Scientific Publications, 1954, p. 537.
2. KATZNER, K. The languages of the world. London, Routledge & Kegan Paul, 1986, p. 201
3. CARPENTER, K. J. Beriberi, white rice and vitamin B1 Berkeley, University Press, 2000, pp. 32-34.
4. ELI  C. MINKOFF . "Christiaan Eijkman-1929".In  MAGILL, F. N., The Nobel prize winners-Physiology or medicine, Pasadena, Salem Press, 1991, pp.297-302.
5. VILLELA, G.; BACILA, M.; TASTALDI, H. Bioquímica, Rio de Janeiro, Ed. Guanabara Koogan S.A., 1966, PP. 200-201.
6. SANTOS FILHO, L. História geral da medicina brasileira. São Paulo, Hucitec/Edusp, 1991, p.263.
7. SILVA-LIMA, J. F.  " Contribuição para a historia de uma molésta que reina atualmente na Bahia sob a forma epidêmica e caracterizada por pralisia, edema e fraqueza geral". Gazeta médica da Bahia, 1, pp. 110-113, 125-128, 138-139, 1866; 3, pp.55-56, 85-87, 109-111, 1868; 3, pp. 133-135, 145-147, 1869



Joffre M de Rezende
Prof. Emérito da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Goiás
Membro da Sociedade Brasileira de História da Medicina
e-mail: pedro@jmrezende.com.br
http://www.jmrezende.com.br