LINGUAGEM MÉDICA
CACOETES DA LINGUAGEM MÉDICA
ATRAVÉS DE - ONDE - DEVIDO A
Define-se cacoete em linguística como “a predileção
por ou uso repetido e automático de certa(s) palavra(s),
expressão(ões)... etc” (Houaiss, 2009). Na maioria das
vezes decorre do descaso com a redação ou, o que é
pior, da pobreza vocabular do autor, que se deixa levar pelos
lugares-comuns da linguagem em curso, mesmo que não sejam os mais
adequados gramaticalmente. Daremos como exemplos as expressões
airavés de, onde e devido a.
Através de
Através de é locução prepositiva formada do
advérbio através e da preposição de.
Conforme registram os léxicos da língua portuguesa,
através de significa: "de um lado para outro lado", "de ponta a
ponta", "ao correr de", "por entre", "no decurso de". Expressa,
portanto, a ideia de movimento, de passagem, de
transposição, de deslocamento no espaço ou
transcurso no tempo, seja concretamente, seja sob a forma de
metáfora.
Não é correto empregar através sem a
preposição de. Através as matas, através o
vidro, através os anos, são construções
próprias da língua francesa, portanto galicismos.
Através deve sempre acompanhar-se da preposição de;
assim, nos exemplos acima, as formas corretas são:
através das matas, através do vidro, através dos
anos (4, 5).
A locução através de vem sendo usada abusivamente
em textos médicos, nem sempre de forma apropriada, em
substituição a outras preposições e
locuções prepositivas mais consentâneas.
São corretíssimas frases como:
- "os leucócitos migram através da parede dos capilares";
- "a absorção intestinal se processa através das vilosidades";
- "a imagem obtida por ecografia através dos tecidos";
- "a experiência acumulada através dos anos";
- "muitos termos anatômicos procedem do grego através do latim".
O mesmo já não se pode dizer de frases como estas:
- "o intestino é preso à parede através do mesentério";
- "o diagnóstico pode ser feito através da
biópsia"; "o tratamento é feito através do uso de
antibióticos";
- "através destes achados pode-se concluir...",
- "através de testes sorológicos demonstrou-se a presença de anticorpos".
A redação alternativa adequada seria:
- "o intestino é preso à parede pelo mesentério";
- "o diagnóstico pode ser feito pela biópsia";
- "o tratamento é feito com o uso de antibióticos";
- "destes achados pode-se concluir";
- "mediante testes sorológicos demonstrou-se a presença de anticorpos".
Mendes de Almeida condena acrimoniosamente tanto o galicismo
através o, como o uso da locução através de
no agente da passiva: "Constitui horripilante galicismo a omissão
da preposição. Deve-se dizer através do
rádio, jamais através o rádio". "Não menos
horripilante é o emprego de através de no agente da
passiva". E conclui: "Vezes há em que a simples
preposição por ou a preposição de expressam
suficiente e completamente a idéia sem o pelintra através
de" (4).
Onde
Onde é advérbio de lugar ou, segundo as gramáticas
mais modernas, advérbio-pronome (1) ou advérbio pronominal
relativo (2), que deve ser usado no sentido locativo, isto é,
quando o antecedente contém a idéia de local.
São exemplos de seu uso adequado:
- "O estímulo atinge o
nó atrioventricular onde sofre um atraso em sua
transmissão".
- "As modificações decorrentes da
gravidez ocorrem principalmente no útero, onde o ovo se nida".
- "O
tecido adiposo é um reservatório onde se depositam
calorias em excesso".
- "A niacina é armazenada em todos os tecidos
onde o metabolismo é mais intenso".
- "O laboratório onde
são feitos os exames está inteiramente automatizado".
O emprego de onde como pronome relativo, em substituição a
em que, no(a) qual, nos (as) quais, segundo o (a) qual, segundo os(as)
quais, deve ser evitado (3).
São exemplos de uso inadequado (colhidos em textos
médicos): "Existem casos onde (em que) o tratamento pode evitar
sequelas”. "Há um grande número de enfisematosos, onde
(nos quais) predomina a bronquite". "Dentre as causas de febre devem ser
lembradas as neoplasias, onde (nas quais) geralmente não
há infecção". "Procedemos de acordo com a
técnica, onde (segundo a qual) a semeadura é feita em
tubos de cultura".
Nó, atrioventricular, útero, tecido adiposo, tecidos e
laboratório designam locais, cabendo, portanto, o emprego do
advérbio pronominal onde.
Tratamento, enfisematosos, neoplasias e técnica não se
referem a locais, o que torna impróprio o emprego do
advérbio pronominal onde.
Em algumas construções em que se emprega onde seguido do
verbo haver, seria muito mais simples o uso da preposição
com, como nos dois exemplos seguintes:
- "Em hemopatias onde há hemólise, a febre nem sempre está relacionada com infecção."
Neste caso, a redação sugerida seria:
- "Em hemopatias com hemólise, a febre nem sempre está relacionada com infecção".
- "A intolerância à lactose deve ser cogitada em todos
os casos onde haja sintomas digestivos sem uma causa orgânica".
Redação sugerida:
- "A intolerância à lactose deve ser cogitada em todos
os casos com sintomas digestivos sem uma causa orgânica".
Deve-se evitar ainda o emprego de onde sempre que houver dubiedade de sentido.
Exemplo:
- "A lâmina própria é invadida por infiltrado
inflamatório onde predominam as células mononucleares".
O sentido não é claro, pois tanto pode ser o de que o
infiltrado inflamatório é rico em células
mononucleares como o de que o infiltrado invade a lâmina
própria nos locais em que predominam as células
mononucleares.
Devido a
Devido é particípio passado do verbo dever. Acompanhado da
preposição a pode converter-se em forma preposicional
(6).
O particípio flexiona-se em gênero e número para
concordar com o substantivo. Ex.: "A dispnéia, nestes casos,
é devida à (e não devido a) congestão
pulmonar". "Os efeitos colaterais, devidos à (e não devido
a) hipersensibilidade, impediram a continuação do
tratamento".
O uso de devido a como locução prepositiva, sem a
flexão do particípio, é condenado pelos puristas da
língua, embora seja de uso frequente. "Por amor da
correção, porém", diz Vittorio Bergo, "cumpre seja
evitado semelhante uso, desde que ao particípio devido não
corresponda um substantivo com o qual concorde" (7).
Mesmo aceitando-se como correta a locução prepositiva
devido a sem a flexão do particípio, o seu uso repetitivo e
monótono, como forma única de expressão de
causalidade, deve ser evitado, pois a nossa língua é rica
de expressões equivalentes, tais como por (pelo, pela),
graças a, por causa de, em razão de, em resultado de, em
vista de, em função de, em virtude de, secundária
a, em decorrência de (ou decorrente de), em consequência de
(ou consequente a), e outras menos apropriadas à linguagem
científica, como mercê de, por obra de, etc.
Seguem alguns exemplos de frases, colhidas em textos médicos, nas
quais a locução prepositiva devido a poderia ser
substituída com evidente ganho estilístico:
- "Os espaços intercostais se retraem durante a
inspiração devido a (pela) contração dos
músculos acessórios".
- "A digestão só é possível devido à (graças à) ação da bile".
- "A palpação foi difícil devido à (por causa da) defesa abdominal".
- "Alguns cirurgiões preferem esta técnica devido à (em razão de) sua maior segurança".
- "Na anemia falciforme o baço se atrofia devido a (como resultado de) múltiplos infartos".
- "Devido ao (Em vista do) pequeno número de dados, a
análise estatística não oferece resultados
confiáveis".
- "Os íons Na+ e Cl- difundem-se passivamente para fora dos
túbulos devido ao (em função do) gradiente de
concentração".
- "Deve-se considerar a possibilidade de esofagite actínica devido à (decorrente da) cobaltoterapia".
- "A insuficiência renal aguda devido à
(secundária à) mordedura de cobra pode exigir
hemodiálise.
Por vezes suprime-se a preposição a, o que desfigura ainda mais a frase, como nos exemplos seguintes:
- "Devido o (Em virtude do) tempo decorrido, houve negativação das reações sorológicas".
- "A recuperação pós-operatória foi lenta devido o (em decorrência de) seu mau estado geral".
- "Devido a (Em conseqüência da) hemorragia uterina, a paciente entrou em choque hipovolêmico".
- "A diarréia, devido a (consequente à) má
absorção, caracteriza-se por fezes volumosas e
fétidas".
- "Devido (Por) não ser possível a colocação de sonda enteral, optou-se pela jejunostomia".
Referências bibliográficas
HOUAISS, Antônio, VILLAR, Mauro de
Salles – Dicionário Houaiss da língua
portuguesa.(versão eletrônica). Rio de Janeiro, Ed.
Objetiva, 2009
1. ROCHA-LIMA Carlos Henrique.
Gramática normativa da língua portuguesa. , 31..ed., Rio
de Janeiro. José Olympio Editora, 199l., p. 333
2. BECHARA, Evanildo - Moderna
gramática portuguesa, 31. ed. São Paulo, Cia. Editora
Nacional, 1987, p. 154.
3. MARTINS, Eduardo – Manual
de redação e estilo, 3. ed. São Paulo, Editora
Moderna, 1997, p. 204
4. ALMEIDA, Napoleão
Mendes de - Dicionário de questões vernáculas.
São Paulo, Ed. "Caminho Suave" Ltda., 1981.
5. BARRETO, Mário - Novos estudos
da língua portuguesa, 3.ed. fac-similar. Rio de Janeiro
INL-Presença, 1980, p. 483
6. MACHADO FILHO, Aires da Mata -
Coleção "Escrever Certo", 2.ed. (6 vol.). São
Paulo, Boa Leitura Ed., 1966., p. 226
7. BERGO, Vittorio - Erros e
dúvidas de linguagem, 5.ed. Juiz de Fora, Ed. Lar
Católico, 1959, p. 132.
Joffre M de Rezende
Prof. Emérito da Faculdade de Medicina da Universidade
Federal de Goiás
Membro da Sociedade Brasileira de História da Medicina
e-mail: pedro@jmrezende.com.br
http://www.jmrezende.com.br
30/06/2013