CÁRDIA
A palavra cárdia
é
de origem grega (kardía) e desde os tempos hipocráticos
(sec. V a.C.) já era usada para designar tanto o coração
como a parte superior do estômago.
Alguns autores admitem que
a transição esfagogástrica passou a ser assim chamada
por estar próxima do coração. Galeno, entretanto,
nos legou uma outra interpretação: "Os antigos chamaram cárdia
ao orifício do estômago, e assim o chamaram, segundo dizem,
em razão dos sintomas que as suas afecções produzem".
Enumera a seguir os sintomas: síncopes, espasmos, carus, epilepsia
e melancolia.[1]
Cardialgia, por sua
vez, significava dor no estômago. Encontramos em Plácido Barbosa
a seguinte definição: "Cardialgia é a nevralgia do
estômago, a sensação dolorosa de queimadura na boca
do estômago, na região do cárdia, o orifício
esofágico do estômago"... "O termo é, às vezes,
tomado para designar a cardiodinia (dor no coração)"... "mas
essa confusão não deve ser feita".[2] Atualmente tanto cardialgia
como cardiodinia estão em desuso.
Em latim clássico
cardiacus
significava tanto doente do coração como do estômago.[3]
As primeiras descrições
anatômicas do estômago mencionam duas aberturas, uma
superior - cárdia - e outra inferior - piloro.
Riolan, médico e
anatomista francês (1580-1657) refere-se à boca superior
do estômago.
Testut, em seu monumental
Traité
d'Anatomie Humaine descreve dois orifícios no estômago:
um orifício de entrada, esofagiano ou cárdia e um
orifício de saída, duodenal ou piloro.[4]
Destarte, a passagem do
esôfago para o estômago tem sido definida como abertura,
boca ou orifício.
Devemos dizer o cárdia
ou a cárdia?
O gênero da palavra
cárdia em português tem variado com a época, com os
autores, e até com a edição de um mesmo léxico.
Assim é que nas primeiras edições do Dicionário
de Termos Médicos, de Pedro A. Pinto, cárdia aparece
como masculino.[5][6] Já na 8ª edição do mesmo
léxico são admitidos os dois gêneros.[7]
Cárdia é masculino
em espanhol, italiano e francês, e feminino em alemão. Os
alemães usam, como sinônimo de cárdia, Magenmund
(boca do estômago), que é masculino.
A influência francesa
foi marcante na cultura médica brasileira e, talvez por isso, tenha
predominado entre nós o gênero masculino para a palavra cárdia.
Usaram o cárdia, entre outros, eminentes professores, como
Azevedo Sodré, Afrânio Peixoto, Rocha Vaz, Edmundo Vasconcelos,
e Alípio Correia Neto, cuja obras se tornaram clássicas.[8][9][10]
Modernamente, os dicionários
atribuem o gênero feminino à palavra cárdia. [11][12][13]
O léxico de Aulete-Garcia faz a observação de que
"também se usa no masculino, especialmente no Brasil".[14] O dicionário
Houaiss também admite os dois gêneros.[15]
A Terminologia Anatomica
designa
a abertura superior do estômago por
ostium cardiacum.[16]
É natural que a idéia de orifício aponte para o gênero
masculino, enquanto abertura melhor se coaduna com o gênero feminino.
O fato da palavra terminar
em a não impõe o gênero feminino, pois
temos em português numerosos exemplos de palavras terminadas em a
que
são do gênero masculino, como dia, mapa, planeta, dilema etc.
Conforme nos ensinam os
gramáticos, a atribuição do gênero às
palavras e às coisas assexuadas que elas representam é puramente
convencional e varia de uma língua para outra e, dentro do mesmo
idioma, com a época.
Podemos finalizar estas
considerações admitindo tranqulamente os dois gêneros
para a palavra cárdia. Tanto podemos dizer o cárdia
como a cárdia. O importante, por uma questão de coerência
e uniformidade, é não usar os dois gêneros em um mesmo
texto.
Referências bibliográficas
1. GALENO - Oeuvres anatomiques, physiologiques et médicales.
Trad. Ch. Daremberg. Paris, Baillière, 1854, vol. 2, p. 646.
2. BARBOSA, P. - Dicionário de terminologia médica
portuguesa. Rio de Janeiro, Liv. Francisco Alves, 1917.
3. QUICHERAT, L., DAVELUY, A. - Dictionnaire latin-français.
Paris, Lib. Hachette, 1876.
4. TESTUT, L.: Traité d'anatomie humaine, 8.ed.
Paris, Gaston Doien & Cie., 1931, t. 4, p. 196.
5. PINTO, P.A. - Dicionário de termos médicos,
2.ed. Rio de Janeiro, 1938.
6. PINTO, P.A. - Dicionário de termos médicos,
5. ed. Rio de Janeiro, Ed. Científica, 1949.
7. PINTO, P.A. - Dicionário de termos médicos,
8. ed. Rio de Janeiro, Ed. Científica, 1962.
8. PINTO, P.A. - Nugas e rusgas da linguagem portuguesa.
Rio de Janeiro, Rev. dos Tribunaes, 1919, p. 105.
9. VASCONCELOS, E., BOTELHO, G. - Cirurgia do megaesôfago.
São Paulo, Cia. Editora Nacional, 1937.
10. CORREIA NETO, A. - Patogenia, diagnóstico
e tratamento do megaesôfago (mal de engasgo). São Paulo, Cia.
Editora Nacional, 1935.
11. FERREIRA, A.B.H. - Novo dicionário da língua
portuguesa, 3.ed. Rio de Janeiro, Ed. Nova Fronteira, 1999.
12. MICHAELIS - Moderno dicionário da língua
portuguesa. São Paulo, Cia. Melhoramentos, 1998.
13 ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS - Vocabulário
ortográfico da língua portuguesa, 3. ed. Rio de Janeiro,
Imprensa Nacional, 1999.
14. AULETE, F.J.C., GARCIA, H. - Dicionário contemporâneo
da língua portuguesa, 3.ed. Rio de Janeiro, Ed. Delta, 1980.
15. HOUAISS, A., VILLAR, M.S. - Dicionário Houaiss
da língua portuguesa. Rio de Janeiro, Objetiva, 2001
16. FEDERATIVE COMMITTEE ON ANATOMICAL TERMINOLOGY. -
Terminologia anatomica. Stuttgart, Georg Thieme Verlag, 1998.