HISTÓRIA DA MEDICINA

CARLOS CHAGAS (1879-1934)

A CENTELHA DO GÊNIO


        Carlos Ribeiro Justiniano das Chagas ou, simplesmente Carlos Chagas, como ficou conhecido, é sempre lembrado por seu feito extraordinário da descoberta da Tripanosomíaseamericana, em 1909.
        A importância desta descoberta de Carlos Chagas, tanto do ponto de vista científico, como de saúde pública, foi de tal magnitude que, de certo modo, ofuscou suas muitas outras realizações como médico, cientista, pesquisador, professor, sanitarista e administrador. Podemos afirmar que, mesmo sem a descoberta da Tripanosomíase americana, seu nome estaria consagrado na galeria dos grandes vultos da medicina brasileira.
        Sua trajetória de vida, em breves palavras, pode ser assim resumida: nasceu em 9 de julho de 1878, na Fazenda do Bom Retiro, município de Oliveira, no interior do estado de Minas Gerais. Foi o primeiro dos quatro filhos de José Justiniano Chagas e Mariana Cândida Ribeiro de Castro. Órfão de pai aos 4 anos, aos 7 foi interno do Colégio dos Jesuítas em Itu, no Estado de São Paulo. Um ano depois era dali transferido para S. João del Rei, onde se educou no Colégio Santo Antônio, tendo como principal mentor o Padre João Sacramento, considerado na época um grande educador e humanista.
        Era desejo de sua mãe que o filho primogênito fosse engenheiro e por isso foi Carlos Chagas estudar na famosa Escola de Minas de Ouro Preto. Aos 16 anos de idade, achando-se em Oliveira, encontrou seu tio Carlos Ribeiro de Castro, médico recém-chegado do Rio, que exerceu sobre ele decisiva influência, aconselhando-o a deixar a engenharia pela medicina.
        Em 1897 matriculou-se na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro.
        Como estudante revelou-se um dos mais brilhantes alunos, (na gíria estudantil era conhecido como de "duas velas"), tornando-se querido de seus mestres, dentre os quais Aloysio de Castro e Miguel Couto. Sua tese de doutoramento, obrigatória na época ao término do curso médico, foi elaborada no Instituto de Manguinhos, sob orientação de Oswaldo Cruz, e versava sobre "Estudos hematológicos no impaludismo."
        Iniciou sua vida profissional como clínico, porém, em 1905, por indicação de Oswaldo Cruz, aceitou o oferecimento para trabalhar na Cia. Docas de Santos, cidade onde grassava uma epidemia de malária. Ali, aos 26 anos, realizou a primeira campanha anti-palúdica bem sucedida no Brasil, quando demonstrou que a transmissão do plasmódio é intradomiciliar e não às margens de pântanos e rios, como se acreditava. Com essa descoberta abriu caminho para a moderna profilaxia da malária. De volta ao Rio, outra missão idêntica lhe foi confiada na baixada fluminense com igual êxito. Em 1907 foi nomeado Assistente do Instituto de Manguinhos, cuja denominação oficial era de Instituto de Patologia Experimental. Em 1908 foi incumbido de combater a malária no vale do Rio das Velhas, em Minas Gerais, onde a Estrada de Ferro Central do Brasil estava construindo um novo trecho ferroviário.
        Em companhia de Belisário Pena, seguiu para Lassance, uma estação ferroviária próxima às obras de engenharia e em pouco tempo realizaram com sucesso o controle da malária na região. Em seus estudos de malária identificou uma cepa de Plasmodium falciparum responsável pelos casos graves da doença e descobriu uma espécie de anofelino de hábitos diurnos a que denominou Celia brasilienses.
        Em Lassance tomou conhecimento da existência do "barbeiro" nas cafuas da região, construídas de pau-a-pique e paredes barreadas, em cujas frestas se colonizavam os triatomíneos. Ao apresentar-lhe o inseto, Cantarino Motta, engenheiro-chefe das obras de construção da ferrovia, mencionara a possibilidade do "barbeiro" causar doença no homem, à semelhança do mosquito da malária. Foi a centelha que despertou o gênio de Carlos Chagas para as investigações que se seguiram e que culminaram com a descoberta da Tripanosomíase americana.
        Sua descoberta constitui um caso único na história da medicina em que o mesmo pesquisador revela, a um só tempo, uma nova doença, seu agente etiológico, o T. cruzi com seu ciclo biológico, o inseto transmissor, o mecanismo de transmissão, os animais reservatórios do parasito e o quadro clínico da enfermidade, compreendendo uma fase aguda pós-infecção e sua evolução para uma fase crônica.
        Teve ainda a intuição de tratar-se de uma endemia grave, própria da zona rural, disseminada por todo o sertão brasileiro e certamente existente em outros países do continente americano com as mesmas condições precárias de habitação, adequadas à domiciliação dos triatomíneos hematófagos.
        A grande descoberta da Tripanosomíaseamericana, não somente o imortalizou, quando contava apenas 30 anos de idade, como projetou internacionalmente o Instituto Oswaldo Cruz como centro de pesquisa científica em biologia e medicina. No ano seguinte foi admitido, em caráter de exceção, como membro da Academia Nacional de Medicina, na ausência de vaga.
        Nos anos seguintes dedicou-se ao estudo da nova doença, em todos os seus aspectos contando com a participação de competentes colaboradores como Gaspar Viana e Eurico Vilela.
        Em 1912 realizou uma excursão à Amazônia onde pôde observar de perto a penúria e o desamparo em que viviam as populações ribeirinhas e os seringueiros, vítimas da malária, leishmaniose, hanseníase e outras doenças. Ele próprio adquiriu a malária na região.
        Em 1917, com o falecimento de Oswaldo Cruz, Carlos Chagas foi nomeado pelo Presidente da República, Venceslau Brás, Diretor do Instituto. Na sua administração o Instituto expandiu suas instalações, criou novas seções, concluiu o Hospital Evandro Chagas para doenças infecciosas e parasitárias, diversificou suas atividades, ampliou seu quadro de pesquisadores e técnicos, incentivou o intercâmbio científico, tornando a instituição conhecida e respeitada no exterior.
        Em 1920 Chagas foi nomeado diretor do Departamento Nacional de Saúde Pública, cargo que exerceu cumulativamente com o de Diretor do Instituto Oswaldo Cruz, recusando-se a receber os proventos relativos a este último.
        Na direção daquele Departamento encontrou a oportunidade de iniciar a luta pelo saneamento do Brasil com que sonhava. Para tanto criou as Inspetorias de combate à tuberculose, à lepra, à sífilis, de proteção à infância, de higiene do trabalho, com atuação em todo o território nacional. Orientou a legislação e os regulamentos de saúde pública; promoveu a formação e criou a carreira de médico sanitarista, dando-lhe condições de trabalho em tempo integral. Fundou a primeira escola de enfermagem de nível superior, a escola Ana Nery, no Rio de Janeiro, que serviu de modelo para as demais, e regulamentou a profissão de enfermeiro.De 1920 a 1926 estabeleceu as diretrizes básicas da medicina sanitária no País.
        Em 1926, com a aprovação da Congregação da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, Chagas foi nomeado pelo presidente da República, Arthur Bernardes, Professor da cadeira de Medicina Tropical, recém-criada naquela Faculdade, em reconhecimento ao seu "notório saber".
        Nem todas as manifestações, entretanto, foram de louvor. Em 1922, movidos talvez pela inveja, Afrânio Peixoto e os companheiros de Chagas no Instituto, Figueiredo Vasconcelos e Parreiras Horta contestaram, na Academia Nacional de Medicina, a importância de sua descoberta, o que deu origem a uma polêmica acirrada, que extravasou para a imprensa leiga e a sociedade. Embora vitorioso, o episódio muito o amargurou.
        No exterior seu nome e sua obra tiveram o merecido reconhecimento. Em 1912 recebeu o prêmio Schaudinn, do Instituto de Moléstias Tropicais de Hamburgo; em 1926, a Universidade de Harvard conferiu-lhe o título de Artium Magistrum, honoris causa. O rei Alberto, da Bélgica, concedeu-lhe a Comenda da Ordem da Coroa daquele país e o rei da Espanha as comendas da Ordem de Afonso XIII e da Ordem de Isabel, a Católica. Recebeu ainda o título de membro honorário das academias de medicina de New York, Paris, Roma e Madrid e de Doutor Honoris Causa das Faculdades de Medicina de Paris, Bruxelas, Hamburgo, Lima, além de outras condecorações na Itália, França, Romênia. Só não recebeu o prêmio Nobel para o qual fora indicado em 1921, o que se atribui ao preconceito existente na época em relação aos países do terceiro mundo e, possivelmente, a informações pouco convincentes que teriam sido enviadas do Brasil à Fundação Nobel sobre a importância da sua descoberta.
        Carlos Chagas era casado com D. Íris Lobo, tendo o casal dois filhos, Evandro e Carlos, que trilharam o mesmo caminho do pai. Evandro teve destacada atuação no Instituto Oswaldo Cruz, dedicando-se ao estudos das grandes endemias. Infelizmente, faleceu vítima de trágico acidente de aviação aos 35 anos de idade, em 8 de novembro de 1940, no mesmo dia em que se completavam seis anos da morte de seu pai. Carlos Chagas Filho foi professor titular da Faculdade de Medicina da Universidade do Brasil e notabilizou-se por suas pesquisas sobre bioeletrogênese. Organizou e coordenou dois congressos internacionais sobre doença de Chagas, o primeiro em 1959, por ocasião do cinquentenário da descoberta da Tripanosomíase e o segundo em 1979, em comemoração ao centenário do nascimento de Carlos Chagas. É também de sua autoria a biografia de Carlos Chagas, sob o título de "Meu pai."(Ed. Casa de Oswaldo Cruz, 1993)
        Chagas faleceu de morte súbita, na noite de 8 de novembro de 1934, em sua residência, quando preparava uma aula sobre... doença de Chagas! Contava então 55 anos de idade. Foi sua última lição: a de que não se ministra uma aula sem antes prepará-la.
 
 

Modificado de Ética Revista 5 (2):26-27,2007