LINGUAGEM MÉDICA
CLAREAMENTO
A evolução
semântica de uma palavra em cada idioma independe de sua raiz etimológica.
Clear, em inglês,
e claro,
em português, provêm, ambos, do adjetivo latino
clarus.
O verbo to clear, em inglês, correspondente a clarear,
em português, tem, dentre suas múltiplas acepções,
o sentido de eliminar, remover, limpar, livrar-se ou desembaraçar-se
de alguma coisa. Esta acepção inexiste em português
em relação ao verbo clarear, que, segundo o Aurélio,
tem
os seguintes significados: 1. Tornar claro, iluminar, aclarar. 2. Abrir
espaços ou clareiras em; rarear. 3. Tornar inteligível; facilitar
a compreensão de. 4. Tornar mais claro o tom de 5. Tornar (a voz)
mais límpida, mais nítida. 6. Fazer-se dia. 7. Passar (o
tempo, o dia) de nublado a claro. 8. Tornar-se (mais) claro; aclarar-se.
9. Tornar-se (a voz) mais límpida ou nítida. 10. Encher-se
de clareira, ou de lacunas. 11. Tornar-se lúcido, penetrante, ou
perspicaz; aclarar-se. 12. Tornar-se inteligível.[1]
De clear, em
inglês, derivam
clearing
e clearance; de claro,em
português,
clareamento.
Em odontologia o termo clareamento
é
corretamente usado referindo-se aos diferentes processos e técnicas
para clarear os dentes, torná-los mais alvos, mais brancos.
Corresponde a bleaching, em inglês, e não a
clearing.
Clearing e clearance
têm
o sentido genérico de remoção, limpeza, eliminação,
desembaraço. Em linguagem médica,
clearance é usado para expressar
a eliminação de determinada substância por unidade
de volume e de tempo. Assim, clearance da uréia, da creatinina,
do ferro etc. Com este sentido o termo clearance é também
usado em outros idiomas, que o tomam de empréstimo ao inglês.
Ultimamente, tanto clearing
como clearance
vêm sendo indevidamente traduzidos em português
por clareamento.
Exemplifiquemos com o refluxo
gastroesofagiano. Em condições normais, quando ocorre o refluxo,
as contrações peristálticas do esôfago removem
o líquido refluído, fazendo-o retornar ao estômago.
Esta limpeza do esôfago, que procura livrar-se do conteúdo
ácido, denomina-se em inglês
esophageal clearance (ou
clearing),
expressão
que tem sido traduzida por clareamento do esôfago.
Booth e col.[2] desenvolveram
um teste para avaliar a eficiência do peristaltismo esofagiano na
manutenção do pH intraesofagiano, conhecido em inglês
por acid clearing test. Este teste é freqüentemente
referido em português como teste de clareamento ácido
ou simplesmente teste de clareamento.
Em outras condições
patológicas nas quais há eliminação progressiva
de substâncias estranhas ao organismo, tais como antígenos
virais ou bacterianos, toxinas, fármacos ou metabólitos,
vem sendo igualmente utilizado o termo clareamento para expressar
a eliminação de tais substâncias do meio interno.
A tradução
vernácula correta de clearance ou clearing é
depuração.
Antes da hegemonia da medicina norte-americana eram correntes as expressões
depuração
da uréia, depuração da creatinina, depuração
do ácido hipúrico etc. Depurar tem o sentido de tornar
puro, limpar.
No caso, por exemplo, do
tratamento da hepatite crônica em que se consegue a viragem sorológica
com eliminação do vírus, devemos nos referir à
depuração do antígeno e não ao clareamento
do
antígeno.
Mesmo se não quisermos
empregar o termo depuração em determinadas situações,
não nos assiste o direito de traduzir clearing ou clearance
por clareamento, um falso cognato que não encontra respaldo
na lexicografia da língua portuguesa.
No caso do refluxo gastroesofagiano,
em lugar de
clareamento do esôfago, teste de clareamento
ácido, fator de clareamento, tempo de clareamento, seriam mais
apropriadas expressões vernáculas como limpeza do esôfago,
teste, fator ou tempo de remoção do conteúdo ácido
do esôfago.
A rigor, quando nos expressamos
em português, só é possível clarear o
esôfago pela iluminação, como ocorre durante a esofagoscopia.
Somente o colonialismo científico em que
vivemos justifica a adulteração semântica do vernáculo
com pseudotraduções como esta de clareamento. Seria
preferível usar-se, em destaque, a própria palavra inglesa.
Apesar de tudo, é bem provável que tenhamos de incorporar
ao vocabulário médico este novo termo, que vem enriquecer
o nosso portuglês.
Referências bibliográficas
1. FERREIRA, A.B.H. - Novo dicionário da língua
portuguesa, 3.ed. Rio de Janeiro, Ed. Nova Fronteira, 1999.
2. BOOTH, D.J., KEMPERER, W.T., SKINNER, D.B. - Arch.
Surg.
96:731-734, 1968
Publicado no livro Linguagem Médica, 4a. ed.,
Goiânia, Ed. Kelps, 2011.
Joffre M de Rezende
Prof. Emérito da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Goiás
e-mail: pedro@jmrezende.com.br
http://www.jmrezende.com.br