LINGUAGEM MÉDICA
ENVELOPE VIRAL
Os vírus são
constituídos basicamente de um núcleo de DNA ou RNA, circundado
por uma camada proteica, denominada capsídio ou cápside,
formada de unidades chamadas capsômeros. Determinados vírus
possuem ainda uma segunda capa de revestimento externo, a que se denomina
em inglês e francês, de envelope, de natureza proteica,
glicoproteica e lipídica, derivada principalmente da membrana
das células do hospedeiro.[1][2]
Deveríamos manter,
também em português, a denominação de envelope?
A palavra envelope,
de origem francesa (enveloppe), foi introduzida em português
no final do século passado, como um galicismo desnecessário,
competindo com sobrescrito e sobrecarta. Os léxicos
de Moraes Silva [3], Constâncio [4], Faria [5], Domingos Vieira [6],
Lacerda [7] e Aulete [8] não a registram. Adolpho Coelho a menciona
como um termo francês "a que se deve preferir sobrescrito".[9] Aparece
em 1940 no Dicionário de Galicismos, de Carlos
Goes, que opta por sobrecarta.[10]
Apesar da resistência
dos puristas da língua, a palavra envelope foi assimilada
e adaptada ao português, substituindo sobrescrito e sobrecarta.
"Atualmente não
há que pensar em galicismo no uso desta palavra", conclui Napoleão
Mendes da Almeida.[11]
O seu significado, no entanto,
restringe-se ao de sobrecarta. Outra única acepção
foi registrada por Laudelino Freire em seu Grande e NovíssimoDicionário
da Língua Portuguesa e, depois dele, por outros lexicógrafos,
a saber: "placa fina de ferro que forma o invólucro externo das
caldeiras das locomotivas e recobre uma camada de asbesto ou de outra substância
atérmica".[12]
Do francês, a palavra
envelope
passou
para o inglês no início do século XVIII, tendo sido
incorporada e adaptada ao léxico deste idioma, com a grafia de envelope
ou
envelop.
Tal como em francês, a palavra envelope, em inglês,
caracteriza-se por sua extensa polissemia, com múltiplas acepções,
sendo usada em sentido genérico como sinônimo de camada, capa,
cobertura, envoltório, invólucro. Em biologia é empregada
para designar qualquer estrutura que recobre outra, seja substância
química, matéria orgânica, membrana, túnica,
tegumento, etc.[13][14]
Assim, ao ser descrita a
camada de revestimento externo que envolve o capsídio, nada mais
natural que fosse a mesma chamada, em inglês, de envelope.
A simples transposição,
neste caso, do vocábulo envelope para o português é
uma falsa tradução. É um exemplo típico do
que se convencionou chamar nas traduções de falsos cognatos
- palavras morfologicamente semelhantes nos dois idiomas, porém
diferentes do ponto de vista semântico.
Envelope, em inglês,
não é apenas envelope, mas também invólucro,
receptáculo, capa, cobertura externa, bolsa, adverte Agenor Soares
dos Santos em seu Guia Prático de Tradução
Inglesa.[15] Cita este autor, como exemplo, a seguinte frase em inglês:
"The
envelope of air around the earth",
que, certamente, deve ser traduzida por "a camada de ar em torno da
Terra" e não por "o envelope de ar em torno da Terra". Veja-se
a semelhança com o seguinte trecho que se lê à página
7 do livro
Clinical Virology, de Debré e Celers: "Certain
viruses possess an envelope around the capsid...".[1]
No livro Virologia,
de D. Falke, traduzido do alemão para o português, e revisto
pela Profa.. E. Kirchner, do Instituto de Medicina Tropical da Universidade
de São Paulo, foi usado envoltório, em lugar de envelope.[2]
A menos que se queira enriquecer
o PORTUGLÊS que hoje domina a linguagem médica, ou atribuir
à palavra envelope uma nova acepção, transformando-a
em termo de biologia com significado específico no campo da virologia,
a melhor tradução será envoltório ou,
como alternativa, invólucro.
Outra denominação
que poderia ser usada, muito mais científica e universal, adaptável
a todos os idiomas de cultura, é a de peplos, proposta por
Lwoff e Tournier.[15] Peplos é uma palavra grega que
significa manto.[17] À semelhança do capsídio, o peplos
também seria formado de unidades - os peplômeros.
O termo peplos encontra-se
registrado nos melhores dicionários médicos da atualidade.[18][19]
Refeerências bibliográficas
1. DEBRÉ, R., CELERS, J. - Clinical virology. Philadelphia,
W.B. Saunders Co., 1970, P. 7.
2. FALKE, D. - Virologia. São Paulo, EPU-Spring-Edusp,
1979, P. 4.
3. MORAES SILVA, A. - Dicionário da língua
portuguesa. Lisboa, Typographia Lacerdina, 1813.
4. CONSTANCIO, F.S. - Novo dicionário crítico
e etimológico da língua portuguesa, 3.ed. Paris, Angelo Francisco
Carneiro, 1845.
5. FARIA, E. - Novo dicionário da língua
portuguesa, 2 ed. Lisboa, Typographia Lisbonense, 1856.
6. VIEIRA, D. - Grande dicionário português
ou Tesouro da língua portuguesa. Porto, Ernesto Chardron e Bartholomeu
H. de Moraes, 1871-1874.
7. LACERDA, J.M.A.A.C. - Dicionário enciclopédico
ou Novo dicionário da língua portuguesa. Lisboa, F. Arthur
da Silva, 1874.
8. AULETE, F.J.C. - Dicionário contemporâneo
da língua portuguesa. Lisboa, 1881.
9. COELHO, F.A. - Dicionário manual etimológico
da língua portuguesa. Lisboa, P. Plantier Ed., 1890.
10. GOES, C. - Dicionário de galicismos. Rio de
Janeiro, 1940
11. ALMEIDA, N.M. - Dicionário de questões
vernáculas. São Paulo, Ed. "Caminho Suave" Ltda., 1981.
12. FREIRE, L. - Grande e novíssimo dicionário
da língua portuguesa, 3.ed. Rio de Janeiro, José Olympio
Ed., 1957.
13. OXFORD ENGLISH DICTIONARY (Shorter), 3.ed. Oxford,
Claredon Press, 1978.
14. WEBSTER’S THIRD NEW INTERNATIONAL DICTIONARY. Chicago,
Enciclopedia Britanica Inc., 1966.
15. . SANTOS, A.S. - Guia prático de tradução
inglesa. São Paulo, Cultrix-Edusp, 1981, p. 175.
16. LWOFF, A.,TOURNIER, P. - The classification of viruses.
Ann. Rev. Microbiol. 20:45-74, 1966.
17. BAILLY, A. - Dictionnaire grec-français, 16.
ed. Paris, Lib. Hachette, 1950.
18. DORLAND'S ILLUSTRATED MEDICAL DICTIONARY, 28th
ed. Philadelphia, W.B. Saunders Co., 1994.
19. STEDMAN – Dicionário médico, 25.ed.
(trad.). Rio de Janeiro, Ed. Guanabara Koogan S.A., 1996.
Publicado no livro Linguagem Médica, 3a. ed., Goiânia, AB Editora
e Distribuidora de Livros Ltda, 2004..
Joffre M de Rezende
Prof. Emérito da Faculdade de Medicina da Universidade Federal
de Goiás
Membro da Sociedade Brasileira de História
da Medicina
e-mail: pedro@jmrezende.com.br
http://www.jmrezende.com.br
10/9/2004.