HEMATIA, HEMÁTIA, HEMÁCIA, HEMÁCEA
Silveira Bueno, em seu Grande
Dicionário Etimológico-Prosódico da Língua
Portuguesa, faz o seguinte comentário sobre a palavra hematia:
"Boa parte dos médicos pronuncia, erradamente, hemácia. A
verdadeira pronuncia é hematia, rimando por exemplo com tia,
doentia, etc. A razão é a seguinte: sendo a palavra de cunho
científico, formada de elemento grego (haima, atos,
sangue),
mas não tendo existido nesta língua, o vocábulo
haimatia
como
muitos pensam, não foi conhecido do latim e, portanto, não
pode sofrer as influências da prosódia deste idioma. O acento
tônico continuou, portanto, paroxítono e em palavras paroxítonas
não se dá a assibilação do t
antes de ia, continuando a ser simples dental forte e surda.
Como consequência, a prosódia não pode ser outra
senão esta he-ma-ti-a com acento na vogal". E, mais adiante: "Ainda
é tempo de corrigirem os médicos o seu erro de pronúncia".[1]
Perdoe-me o ilustre professor,
mas creio que não é mais possível os médicos
corrigirem a forma e pronúncia da palavra hemácia,
a qual já se encontra definitivamente incorporada ao vocabulário
médico.
A palavra hemácia
(ou
hematia) nos veio do francês hématie, vocábulo
introduzido na linguagem médica em 1812, por Gruitheisen.[2]
O termo não prevaleceu
entre os médicos de língua inglesa, que continuam preferindo
red
blood cell ou erythrocyte. Em italiano usa-se emazia e
emazie,
e em espanhol hematíe, no gênero masculino.
A maioria dos léxicos,
tanto em português como em francês, ensinam que a palavra é
derivada do grego haîma, atos, sangue. Esta etimologia,
contudo, pode ser questionada.
José Inez Louro,
helenista e autoridade em Linguística médica, admite
que a palavra tanto pode ser tirada do genitivo haimatos,
como do diminutivo haimátion, gota de sangue.
Tanto num como noutro caso,
o vocábulo hematia é incorreto. Entende este autor
que os substantivos concretos formados com o sufixo ia são
proparoxítonos e cita como exemplos artéria, amônia,
acácia, etc. Em sua opinião a palavra hemácia corresponde
à forma plural do diminutivo haimátion (haimátia),
devendo, portanto, manter o acento grave em português.
A troca do t
do grupo ti (ou tei) grego ou latino para c
em português encontra exemplo em palavras como profecia, acrobacia,
egípcio, sincício etc.[3]
Mangabeira Albernaz esposa
a mesma idéia de que a palavra hemácia deriva diretamente
do diminutivo haimátion, e não do genitivo
haimatos.[2]
Em dois dos mais acreditados
léxicos de grego, o Dictionnaire grec-français, de
Bailly, e o Greek-eglish lexicon, de Liddell e Scott, encontra-se
o vocábulo haimátion, diminutivo de haîma,
com o significado de "um pouco de sangue".[4][5]
Vemos, por conseguinte,
que se pode defender a forma hemácia com argumentos de ordem
linguística. O argumento maior, entretanto, está na
ampla aceitação de hemácia pela classe médica.
É excepcional o uso, nos textos médicos atuais, da forma
hemátia
e, menos ainda, da forma hemat(í)a.
Alguns dicionários
de língua portuguesa averbam hemácia como forma paralela
de hemátia. O dicionário de Aulete-Garcia registra
a forma hemácia, assinalando ser a mesma preferível
no Brasil.[6] O dicionário Michaelis e o Dicionário
da Academia de Ciências de Lisboa abonam hemátia com
remissão para hemácia, o que pressupõe preferência
para esta última forma.[7][8] O léxico de Francisco Borba,
de usos do português no Brasil, bem como o Dicionário de
termos técnicos em medicina e saúde, de Luis Rey,
só registram hemácia.[9,10}
A forma hemácea
tem
sido empregada ultimamente em alguns poucos textos, especialmente de natureza
não científica, sem qualquer justificativa. A mesma não
é encontrada nos principais léxicos de língua portuguesa
e tampouco no Vocabulário Ortográfico da Academia Brasileira
de Letras, que, de modo geral, registra todas as variantes de uma palavra
em uso.
Em uma pesquisa nos arquivos
eletrônicos da Internet encontramos a seguinte proporção
das diferentes formas usadas em língua portuguesa:[11]
Hemácia - 565
Hemácea
- 44
Hematia
- 7
Hemátia
- 4
Referências bibliográficas
1. BUENO, F.S. - Grande dicionário etimológico-prosódico
da língua portuguesa. São Paulo, Ed. Saraiva, 1963/1967
2. MANGABEIRA-ALBERNAZ, P. - Questões de linguagem
médica. Rio de Janeiro, Liv. Atheneu, 1944, p. 31-41.
3. LOURO, J.I. - Questões de linguagem técnica
e geral. Porto, Ed. Educação Nacional, 1941, p. 81-83.
4. BAILLY, A. - Dictionnaire grec-français, 16.
ed. Paris, Lib. Hachette, 1950.
5. LIDDELL, H.G., SCOTT, R. - A greek-english lexicon,
9.ed., Oxford, Claredon Press, 1983.
6. AULETE, F.J.C., GARCIA, H. - Dicionário contemporâneo
da língua portuguesa, 3.ed. Rio de Janeiro, Ed. Delta, 1980.
7. MICHAELIS - Moderno dicionário da língua
portuguesa. São Paulo, Cia. Melhoramentos, 1998.
8. ACADEMIA DAS CIÊNCIAS DE LISBOA - Dicionário
da língua portuguesa contemporânea. Lisboa, Ed. Verbo, 2001.
9. BORBA, F.S. – Dicionário de usos do português
do Brasil. São Paulo, Editora Ática, 2002.
10. REY, L. - Dicionário de termos técnicos
de medicina e saúde. Rio de Janeiro, Guanabara Koogan S.A., 1999.
11. INTERNET. Disponível em http://www.google.com.br/.
Acesso em 31/01/2003.
Publicado no livro Linguagem Médica, 3a. ed., Goiânia, AB Editora
e Distribuidora de Livros Ltda, 2004..
Joffre M de Rezende
Prof. Emérito da Faculdade de Medicina da Universidade Federal
de Goiás
Membro da Sociedade Brasileira de História
da Medicina
e-mail: pedro@jmrezende.com.br
http://www.jmrezende.com.br