LINGUAGEM MÉDICA
 

INFARTO, ENFARTE

 

Embora de uso corrente, sobretudo fora dos meios acadêmicos, enfarte não é o mesmo que infarto. Idel Becker e Mangabeira-Albernaz, ambos médicos e filólogos, estudaram detidamente esta questão e concluiram pelo que acabamos de afirmar.[1][2]

O termo infarto já existia na língua portuguesa muito antes de enfarte, constando dos dicionários de Vieira (1871) e de Lacerda (1874). Somente a partir de 1881, com a publicação do dicionário de Caldas Aulete (1881) começa a aparecer a forma enfarte com o mesmo sentido de infarto.

Infarto vem do latim infarctus e não de fartar ou enfartar, como entendem alguns autores. Pedro Pinto, que grafa enfarto em lugar de infarto, diz: "É errônea a terminação e adotada a conta de étimo fantástico. Não se liga ao verbo enfartar e sim ao latim infarctus".[3]

Dentre os léxicos brasileiros, um dos poucos que define corretamente enfarte e infarto é o de Silveira Bueno.(1963)  Nele encontramos:  

"ENFARTE - s.m. Engorgitamento, repleção excessiva".

"INFARTO - s.m.. Área necrosada de um tecido por falta de circulação". 

Também o Dicionário Escolar da Língua Portuguesa, editado pelo Ministério da Educação, esclarece suficientemente a questão. Lê-se no citado dicionário:  

"ENFARTE, s.m. Ingurgitamento; inchação, o mesmo que enfartação e enfartamento; (Med.) divulgou-se amplamente essa designação para mencionar a necrose em consequência de supressão da circulação de um território vascular, que mais propriamente se deverá dizer infarto".

"INFARTO, s.m. (Med.) Área hemorrágica ou necrótica por falta de circulação. Embora o Vocabulário da Academia Brasileira de Letras consigne somente enfarte, é de se adotar para este sentido exclusivamente a forma infarto, que corresponde exatamente ao quadro histopatológico que se quer designar, ao passo que enfarte significa ingurgitamento, inchação".[4]

Quando o latim era a língua adotada em textos científicos, o termo infarctus designava uma consolidação de humores em uma parte do corpo.[5] Foi somente após os trabalhos de Virchow sobre trombose e embolia (1856) que infarto passou a ser empregado para caracterizar a lesão necrótica do tecido causada por uma obstrução vascular.

A trombose e o infarto podem ocorrer em qualquer órgão, porém, dada a importância da trombose coronariana, quando se diz simplesmente infarto subentende-se infarto do miocárdio.

Segundo Major, o primeiro autor a descrever a trombose da artéria coronária foi Hammer, em 1878. Dock, em 1896, empregou a expressão infarto agudo do coração e Osler, em 1910, referiu-se ao infarto agudo do miocárdio (acute infarct of myocardium).[6]

Posteriormente, autores de língua inglesa passaram a usar myocardial infarction.[7]

O termo enfarte é de uso bem antigo em português, porém sempre com o sentido de aumento de volume, enchimento, repleção, tumefação.

Veja-se, por exemplo, o que se encontra no Dicionário de Medicina Popular, de Chernoviz: [8] 

"Enfarte do baço - V. Hipertrofia".

"Enfarte do estômago - V. Embaraço do estômago".

"Enfarte do fígado - V. Hipertrofia".

"Enfarte do testículo - Inflamação crônica do testículo. V. orquite crônica".

No passado usou-se enfarte do estômago como sinônimo de indigestão. A dificuldade no diagnóstico diferencial entre distúrbios gástricos e cardíacos, na era que antecedeu ao advento do eletrocardiografia, poderia, talvez, levar ao uso generalizado de enfarte para ambas as condições. No presente só se justifica o uso de enfarte e seus cognatos, como enfartar, enfartado, enfartamento, com o sentido de ingurgitamento, tumefação, aumento de volume, repleção. Ex.: enfartamento ganglionar; gânglios enfartados.

A forma infarto está definitivamente consagrada na literatura médica brasileira. Em 1.574 trabalhos indexados na BIREME com a palavra no título do artigo, encontram-se apenas seis com a forma enfarte, duas com enfarto e duas com infarte.[9]

A forma enfarte está sendo usada atualmente apenas na imprensa leiga.

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1.        BECKER, I. Nomenclatura biomédica no idioma português do Brasil, 1968, p. 212-213.

2.       MANGABEIRA-ALBERNAZ, P. Enfarte ou infarto? A polêmica continua em foco. Rev. paul. Med. 80: 171-2, 1973.

3.        PINTO, P.A. Dicionário de termos médicos, 1962.

4.        BUENO, F.S-MEC/FENAME. Dicionário escolar da língua portuguesa, 1980.

5.        SKINNER, H.A. The origin of medical terms, 1961.

6.        MAJOR, R.H. Classic descriptions of disease, 1945, p. 424-434.

7.        FRIEDBERG, C.K. Diseases of the heart, 1950, p. 401-500.

8.        CHERNOVIZ, P.L.N. Dicionário de medicina popular, 1890.

9.        BIREME. Internet. Disponível em http://bases.bireme.br/cgi-bin/wxislind.exe/iah/online/  Acessado em  06/12/2009.

 

 

Publicado no livro Linguagem Médica, 4a. ed., Goiânia, Ed. Kelps, 2011.  

Joffre M de Rezende
Prof. Emérito da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Goiás
e-mail: pedro@jmrezende.com.br
http://www.jmrezende.com.br