HISTÓRIA DA MEDICINA

A MEDICINA NA PASSAGEM DO MILÊNIO


Nota de Direito Autoral:  O texto deste artigo foi publicado em 2009  no livro "À sombra do plátano" pela Editora UNIFESP. A reprodução do mesmo por meio impresso ou eletrônico requer autorização prévia da Editora [http://www.fapunifesp.edu.br fone: (11) 3369-4000]


        No século XX, o progresso da medicina acompanhou de perto o desenvolvimento das demais ciências. Podemos afirmar, sem medo de errar, que a medicina evoluiu mais no século XX do que em toda a história da humanidade. Além do progresso científico, houve, igualmente, uma evolução de conceitos a respeito de saúde e doença; saúde já não é apenas ausência de doença, mas um estado de completo bem-estar físico, mental e social, conforme definição da Organização Mundial de Saúde.
        É também do século XX a compreensão de que a saúde depende de múltiplos fatores, cabendo à medicina parcela importante, porém muito menos decisiva do que se acreditava. É ainda deste século o reconhecimento de que a saúde é um dos direitos fundamentais do homem, cabendo ao Estado zelar pela sua manutenção.
        Temos, portanto, dois enfoques a considerar: o dos avanços científicos e suas conseqüências e o das conquistas sociais, ou seja, do acesso aos bens e serviços que asseguram a saúde.
        Do ponto de vista científico podemos registrar, em uma visão retrospectiva, descobertas notáveis que modificaram os destinos da humanidade. Seria fastidioso enumerar todas elas. Difícil também hierarquizá-las. Citaremos apenas dez, a título de exemplificação, que tiveram, a nosso ver, profunda repercussão na prevenção, no diagnóstico e no tratamento das enfermidades. São elas:

        1. Imunização preventiva
        2. Descoberta dos antibióticos
        3. Isolamento e síntese de hormônios e vitaminas.
        4. Métodos diagnósticos por imagens
        5. Técnicas bioquímicas de alta sensibilidade
        6. Fibroendoscopia
        7. Engenharia genética
        8. Fecundação artificial
        9. Cirurgia cardíaca e transplante de órgãos.
        10. Psicanálise e psicofarmacologia

        A maior contribuição da medicina à saúde neste século foi, sem dúvida, no campo da prevenção das doenças por meio da imunização em massa e das ações desenvolvidas sobre o meio ambiente. Doenças como o tétano, a difteria, a coqueluche, o sarampo, a poliomielite, a febre amarela e, mais recentemente, a hepatite B, já dispõem de vacinas eficazes e podem ser evitadas. A imunização pelo BCG reduziu sensivelmente a incidência de tuberculose.
        Para valorizarmos devidamente a importância da prevenção das doenças por meio da imunização e das ações sobre o meio ambiente, devemos volver os olhos para o passado. Na Idade Média, apenas uma doença - a peste - dizimou em pouco tempo, a quarta parte da população do continente europeu.
        O cólera, que ainda representa permanente ameaça nos países do Oriente, praticamente desapareceu dos países do Ocidente.
        A varíola, enfermidade de ocorrência universal, que não só matava, como desfigurava as pessoas, foi considerada extinta pela Organização Mundial de Saúde, em maio de 1980, confirmando, assim, as proféticas palavras de Pasteur, de que as doenças infecciosas poderiam ser varridas da face da Terra.
        Dentre as grandes endemias ceifadoras de vidas ainda resta a malária. Conhecida desde a antigüidade, a malária aniquilou populações inteiras, mudou o curso das guerras, manteve despovoadas extensas áreas do planeta e decidiu a sorte das Nações. A vitoriosa campanha de Alexandre Magno foi interrompida pela malária, que matou o grande conquistador aos 32 anos de idade. No Império Romano, a malária foi causa do fracasso de muitas expedições e do despovoamento de muitas regiões submetidas ao poder de Roma. Foi, durante o século XX, e ainda continua sendo, um dos maiores obstáculos à ocupação da Amazônia.
        Somente por ocasião da colonização da América os espanhóis aprenderam a usar a quina no combate à malária, com o que se reduziu a taxa de mortalidade por essa endemia. Na segunda Guerra Mundial, movidos pela necessidade de dar proteção aos soldados em ação nos países asiáticos, os norte-americanos desenvolveram medicamentos mais eficazes para o tratamento da malária, ao mesmo tempo em que foram incrementadas as medidas profiláticas de combate ao mosquito transmissor. Com tais medidas, a malária tem sido mantida sob controle.
        No Brasil e em outros países sul-americanos, além da malária, constituem importantes causas de mortalidade, a doença de Chagas e a esquistossomose mansoni. Está ainda longe o dia em que ambas estas endemias serão erradicadas. Contudo, a doença de Chagas perde terreno com as medidas profiláticas de combate ao vetor, como as que vêm sendo praticadas no Brasil pelo Ministério da Saúde.
        O controle da esquistossomose mansoni tem avançado graças aos investimentos na melhoria das condições sanitárias das áreas endêmicas e um trabalho educativo continuado junto às populações expostas.
        Contribuíram, também, em larga escala, para a elevação do nível de saúde no século XX, as medidas voltadas para o meio ambiente: o saneamento básico, os hábitos de higiene, a melhoria das habitações, a utilização de fontes de energia em substituição à força animal, o desenvolvimento da indústria na produção de bens e serviços que geram conforto e segurança para o homem.
        Outro considerável avanço, que reduziu drasticamente as taxas de mortalidade, foi a descoberta dos antibióticos. Doenças comuns, que matavam aos milhares, como a pneumonia e a febre tifóide, já não assustam e doenças de difícil tratamento no passado, como a sífilis, a tuberculose e a lepra, são hoje facilmente curáveis.
        É bem verdade as bactérias aprenderam a defender-se, criando resistência aos antibióticos, o que obriga a uma busca continuada de novas substâncias ativas.
        Outra notável conquista no século XX consistiu no isolamento e na determinação da estrutura química da maioria dos hormônios, abrindo caminho para a sua síntese no laboratório. Dois deles merecem destaque pelas suas conseqüências práticas de ordem terapêutica: a insulina, isolada por Banting e Best, e a cortisona e seus derivados, isolados por Kendall e colaboradores. Os descobridores da insulina receberam o prêmio Nobel em 1923 e os da cortisona e seus derivados em 1950.
        A descoberta das vitaminas, por sua vez, trouxe um novo aporte à prevenção e ao tratamento das doenças resultantes de carências específicas desses elementos. O escorbuto, o beribéri, a pelagra, o raquitismo são hoje condições raramente encontradas.
        A descoberta dos raios-X, no final do século XX e sua aplicação com fins diagnósticos no início deste século, constituíram um marco importante na história da medicina.
        Tal foi o impacto causado e o entusiasmo que a nova descoberta despertou, que um professor de medicina chegou a dizer que, depois dos raios-X, os ouvidos dos médicos só serviam para ouvir a anamnese, relegando, assim, ao passado toda a monumental obra de Laennec sobre a ausculta do tórax.
        O sucesso do emprego dos raios-X em medicina levou à busca de outros métodos diagnósticos por imagens e presenciamos em uma geração o aparecimento sucessivo da ultra-sonografia, da tomografia computadorizada e da ressonância nuclear magnética.
        A ultra-sonografia, por sua simplicidade e inocuidade, tornou-se um método de larga aplicação, sobretudo em obstetrícia. A tomografia por computador trouxe uma alta resolução de imagens, permitindo o diagnóstico de lesões não detectáveis pelos métodos anteriores. O avanço representado pela Tomografia computadorizada valeu a Hounsfield e Cormarck o prêmio Nobel de 1979.
        A ressonância nuclear magnética baseia-se em um princípio inteiramente diferente dos raios-X, que consiste em submeter o paciente a um campo magnético capaz de polarizar os prótons dos tecidos e gerar imagens nítidas das áreas magnetizadas. Seu uso em medicina tem-se ampliado e expandido, substituindo exames mais agressivos utilizados em passado recente. Pela descoberta da ressonância magnética e de sua aplicação ao diagnóstico médico, Paul Lauterbur e Pieter Mansfield receberam conjuntamente o prêmio Nobel em 2003.
        Em relação à contribuição do Laboratório ao diagnóstico clínico vale mencionar o desenvolvimento de técnicas de alta sensibilidade, como a do radioimunoensaio, que evoluiu para o método imunoenzimático e que permitiu detectar nos líquidos orgânicos e nos tecidos, substâncias em concentrações infinitesimais, notadamente hormônios, peptídios, neurotransmissores, antígenos e anticorpos. Pela descoberta do radioimunoensaio Rosalyn Yallow recebeu o prêmio Nobel de 1974, tendo sido a segunda mulher a receber essa distinção em Fisiologia e Medicina.
        A fibroendoscopia representou, tanto quanto a radiologia, um dos mais notáveis progressos nos métodos diagnósticos. A endoscopia com aparelhos metálicos e rígidos constituía um método pouco satisfatório por suas próprias limitações.
        Em 1958 Hirschowitz e colaboradores publicavam o primeiro trabalho sobre a utilização de fibra óptica em endoscopia, resolvendo um dos problemas aparentemente insolúveis - o da curvatura da luz para obtenção de imagens. Vinte anos depois, a fibroendoscopia foi superada pela videoendoscopia.
        Um campo extraordinariamente promissor é o da engenharia genética, cuja história teve início com a determinação por Francis Crick e James Watson, da estrutura do DNA, base de toda matéria viva e responsável pela transmissão do código genético. Teve seqüência com a descoberta por Werner Aber, das chamadas enzimas de restrição, capazes de clivar a molécula do DNA. Com essas duas descobertas tornou-se possível alterar o código genético de uma célula, introduzindo na mesma um segmento do DNA de outra célula inteiramente diferente.A célula mais utilizada para implante do DNA recombinante tem sido a bactéria Escherichia coli, de que já resultaram pelo menos três aplicações práticas importantes: a produção de insulina, de interferon e de vacina da hepatite B.
        O assunto é tão revolucionário que mereceu amplo debate nos meios científicos e políticos dos EE. UU. e da Europa na década de 70, pelo temor de disseminação na natureza de bactérias modificadas. Prevê-se ampla utilização da engenharia genética na produção de uma grande variedade de hormônios, enzimas e vacinas.
        A fecundação artificial do óvulo no Laboratório e o implante intra-uterino do ovo fecundado é uma façanha sem paralelo na história da reprodução humana, que nos faz lembrar o Admirável Mundo Novo de Huxley. Com efeito, o caminho está aberto para que se possa conseguir, no futuro, o desenvolvimento do embrião fora do ventre materno.
        Outra conquista impressionante foi a clonagem de animais pela manipulação celular, tornando possível a clonagem de seres humanos. Somente questões de natureza moral poderão impedir o prosseguimento das experiências nesse sentido.
        Descoberta surpreendente foi também a potencialidade das células-tronco em se diferenciarem em qualquer tecido do organismo e sua utilização na terapêutica de muitas doenças degenerativas.
        Não poderíamos deixar de incluir, nesta abordagem, ainda que de maneira sucinta, os admiráveis progressos verificados com a Cirurgia, especialmente com a Cirurgia cardíaca, a neurocirurgia e a oftalmologia. Tais progressos tornaram-se possíveis graças ao concurso de outras disciplinas, como a anestesiologia, a neurofisiologia, a bacteriologia, a imunologia.
        Em face do progresso alcançado, a duração do ato cirúrgico deixou de ter importância, e o bom cirurgião já não é aquele que opera com rapidez, mas o que executa com perfeição a sua tarefa. A moderna anestesia, com os morfinomiméticos, a monitorização das funções vitais, o controle da volemia, os relaxantes musculares, deixa o cirurgião operar com tranqüilidade.
        O coração, antes intocável, tornou-se um órgão acessível à Cirurgia, graças à introdução da circulação extra-corpórea, permitindo a correção das malformações congênitas, a revascularização e outros tipos de operações. A neurocirurgia e a oftalmologia muito se beneficiaram com o uso dos raios LASER.
        O uso de próteses tende a expandir-se em diferentes especialidades pela disponibilidade de materiais inertes e duráveis, incapazes de provocar reações teciduais.
        Os transplantes de órgãos, inicialmente de rim e atualmente também de coração, pulmão, fígado, tecido pancreático e medula óssea, já não constituem novidade. Outros órgãos, certamente, poderão ser substituídos no futuro.
        O sucesso dos transplantes se deve, antes de tudo, à imunologia, pela descoberta dos antígenos de histocompatilidade, e à farmacologia, pela obtenção de drogas imunossupressoras.
        Ao lado dos progressos tecnológicos devemos incluir, entre as grandes idéias que iluminaram o século XX, os estudos de Freud. As descobertas de Freud sobre o comportamento humano, com suas motivações instintivas e inconscientes, representam um marco na história da medicina.
        A psicofarmacologia, por sua vez, trouxe progressos consideráveis no manuseio dos doentes mentais, terminando com os quadros dolorosos de reclusão e isolamento de muitos enfermos em celas dos hospitais psiquiátricos.
        Dois grandes desafios aguardam solução: o câncer e a síndrome de imunodeficiência adquirida (AIDS).
        Os conhecimentos sobre o câncer têm aumentado sem cessar. Muito já se sabe sobre a sua natureza e os fatores que predispõem ao seu aparecimento. É indubitável que se trata de uma doença da célula e o domínio do câncer só será possível quando a ciência conhecer melhor, em nível molecular, este universo bioquímico que é uma célula viva. Enquanto isto não ocorrer, a medicina deve prosseguir aperfeiçoando as armas de que dispõe atualmente: medidas preventivas, diagnóstico precoce e tratamento por meio da cirurgia, radioterapia, quimioterapia e imunoterapia.
        Em relação à AIDS existe um temor exacerbado em conseqüência de tratar-se de uma doença nova, letal, vinculada à atividade sexual. A exemplo do que já ocorreu com outras viroses é de esperar-se que seja desenvolvida uma vacina dentro dos próximos anos.
        Em decorrência de todos os progressos alcançados pela medicina no século XX, sobretudo em função das ações preventivas, surgiram algumas conseqüências que devem ser devidamente avaliadas.
        Uma delas foi a do aumento da duração da vida. Não é um médico quem o diz, mas um economista. "A medicina moderna reduziu drasticamente as taxas de mortalidade". Em conseqüência, a duração média da vida humana estendeu-se até próximo de seus limites fisiológicos.
        Na maioria dos animais a duração da vida é de 5 a 6 vezes a do período de crescimento. Na mesma proporção o homem deveria viver de 90 a 108 anos. Sendo um ser biologicamente frágil, em comparação com outros mamíferos, o homem é mais suscetível às doenças e sofre mais intensamente as ações agressivas do meio ambiente, o que tende a reduzir a duração de sua vida. Contudo, a expectativa de vida vem aumentando progressivamente.
        Tomando os EE. UU. como exemplo de país desenvolvido, vemos que a esperança de vida ao nascer, naquele país, era de 35,5 anos em 1800; passou para 40 anos em 1850, 50 anos em 1900, 69 anos em 1950, 74 em 1985 e 77,7 em 2005.
        É evidente que a esperança de vida ao nascer não é a mesma em todos os países e dentro de um mesmo país varia com a região considerada. Enquanto na Etiópia a expectativa de vida em 2005 era de 48,8 anos no Japão alcançava 81,6 anos. Em igualdade de condições é sempre maior no sexo feminino do que no masculino.
        No Brasil, segundo dados do IBGE, a expectativa de vida era de 33,4 anos em 1910; passou para 52 anos em 1950, 63,4 anos em 1985, 66,8 anos em 2000 e 71,7 em 2005.
        Se por um lado o aumento da vida média expressa uma conquista real do ser humano, por outro lado trouxe problemas de ordem familiar, social e econômica, que somente agora começam a preocupar. O número crescente de idosos passou a representar um pesado encargo para as famílias e para a sociedade como um todo, em virtude das doenças crônicas degenerativas próprias da velhice e das medidas especiais de proteção que devem ser dispensadas aos mesmos.
        Segundo a Organização Mundial de Saúde, em pelo menos quatro países a duração média de vida já ultrapassou 75 anos: Suíça, Holanda, Suécia e Japão.
        No Japão, que possui a média de vida mais elevada do mundo, o problema é crucial. Há uma década, a imprensa divulgou a notícia de que o Governo japonês decidiu incentivar a emigração de idosos para outros países. O plano se intitulava Silver Columbia 1992 e tinha como justificativa, segundo as autoridades japonesas, proporcionar melhores condições de vida aos aposentados, de vez que com a pensão que recebem em moeda japonesa poderiam viver melhor fora de seu país.
        A outra resultante da maior sobrevivência da espécie humana é a chamada explosão demográfica. O crescimento da população mundial está se processando em escala geométrica. No início da era cristã a população mundial era de aproximadamente 250 milhões. Dezesseis séculos mais tarde este número havia aumentado para 400 milhões. Em 1800, a população da Terra atingia 1 bilhão de pessoas e 150 anos depois 2,5 bilhões. A partir de 1950 houve um crescimento acelerado. Em 1985 chegamos a 4 bilhões e 700 milhões, e em 2005 6,5 bilhões. Para o ano de 2050 a ONU estima que a população mundial será de 9,1 bilhões.
        Haverá, segundo a OMS, uma grande diferença na composição da população dos países desenvolvidos em relação aos países em desenvolvimento. Naqueles a população estará envelhecida, enquanto nestes últimos. Com maior taxa de natalidade haverá um predominância de jovens.
        As profecias pessimistas de Malthus no século XIX foram desacreditadas pelo aumento da produção de alimentos. Não é preciso, entretanto, ser profeta, nem economista, para entender que a Terra tem recursos limitados e que esses recursos tendem a reduzir-se pela atividade predatória do homem e pela poluição ambiental.
        O que distingue o homem de outros animais é a razão. Não se pode esperar que a limitação do crescimento populacional se dê pela competição biológica como nos insetos e animais inferiores.
        Preconceitos ideológicos e religiosos têm obstado uma visão realista desse problema. Menciona-se, freqüentemente, a desigual distribuição de renda como responsável por todos os males e dificuldades nos países capitalistas. Dificuldades existem, também, nos países socialistas. Na reforma agrária realizada na China de Mao-Tse-Tung tocou uma gleba de 1/2 hectare para cada camponês. É óbvio que se a população fosse a metade da existente, cada um receberia o dobro do que recebeu.
        A Igreja, embora admita planejamento familiar, tem-se mostrado contrária a muitos dos métodos anticoncepcionais por ela considerados antinaturais.
        Além do crescimento rápido da população mundial, observa-se em todos os países, a sua urbanização crescente pela migração interna em direção às grandes cidades. O problema é mais agudo nos países em desenvolvimento, nos quais as cidades crescem a uma taxa de 5,5% ao ano.
        Conforme previu a Organização Pan-americana de Saúde, 80% da população brasileira no ano de 2000 concentrava-se nas cidades e apenas 20% residiam na zona rural. As duas cidades mais populosas do mundo são hoje a capital do México e a cidade de São Paulo.
        Este rápido crescimento da população e a formação de grandes aglomerados urbanos criam dificuldades às ações de saúde, relacionadas com alimentação, moradia, trabalho, lazer, assistência médica, com repercussões negativas nos grupos de menor renda que vivem na periferia das cidades. Gera, por outro lado, uma nova patologia derivada de agentes que agridem a saúde e tendem a reduzir a média de vida.
        Dentre eles mencionaremos a poluição ambiental, o stress, a vida sedentária, acidentes de trânsito e de trabalho, o uso do fumo, do álcool e das drogas.
        A poluição ambiental é uma conseqüência da ação do próprio homem e inclui o solo, as águas e a atmosfera. A contaminação do solo por agrotóxicos não somente rompe o equilíbrio ecológico, como representa permanente ameaça à saúde do homem. A poluição das águas fluviais pelos detritos industriais destrói a fauna ictiológica e torna a água imprópria para o consumo. A poluição da atmosfera por gases e resíduos das grandes indústrias e dos veículos automotores introduz nos pulmões substâncias cancerígenas de ação retardada e está causando o aquecimento do planeta, o que tem sido motivo de grande apreensão. Pairando sobre todas estas formas de poluição a ameaça da radioatividade conseqüente ao uso da energia atômica.
        O estado de tensão em que vive o homem nas grandes cidades, em atividades altamente competitivas, contribui para a maior incidência da hipertensão arterial, coronariopatias e distúrbios os mais diversos, como insônia, cefaléia, dispepsia etc. A vida sedentária, por sua vez, repartida entre o escritório, o automóvel e a televisão, predispõe à obesidade, ao diabetes e a doenças vasculares.
        Os acidentes de trânsito, nas estradas e nas ruas, representam atualmente a terceira causa de morte nos países desenvolvidos, somente ultrapassada pelas doenças cardiovasculares e neoplasias. O Brasil tem, proporcionalmente ao número de veículos, uma das mais elevadas taxas de mortalidade por acidentes de trânsito, afora os milhares de deficientes físicos que ficam inutilizados por toda a vida. Um aspecto agravante é o de que a maioria dos acidentes ocorre com jovens entre 17 a 28 anos, o que representa perda ainda maior para a Nação.
        Os acidentes de trabalho são outra causa importante de mortalidade, sobretudo nos países em desenvolvimento, onde há menor oferta de mão-de-obra e menor segurança nos ambientes de trabalho. A Organização Pan-americana de Saúde estimou para a América Latina em 10 milhões o número de acidentes de trabalho no ano de 1984, com 50.000 mortes. Deste total 10% cabem ao Brasil.
        Finalmente os três grandes males da nossa civilização: o fumo, o álcool e as drogas.
        O fumo é considerado pela Organização Mundial de Saúde como a principal causa evitável de doenças e de morte prematura na atualidade, sendo responsável por 90% dos casos de câncer de pulmão, 99% dos casos de câncer de laringe, 75% dos casos de bronquite e enfisema, 25% dos casos de coronariopatias, e 4 a 5 milhões de óbitos em todo o mundo, dos quais 180.000 a 200.000 no Brasil, país considerado um excelente mercado pelos fabricantes de cigarros. Para dar idéia da dimensão do consumo, somente em 1981 foram consumidos em nosso país 135 bilhões de cigarros. O consumo atual é calculado em 143 bilhões de unidades. Em 1989 o IBGE estimou em 31,7% o índice de fumantes no País.
        Observa-se atualmente a preocupação em não permitir a propaganda incentivadora do hábito de fumar e em divulgar os males decorrentes do tabaco, com o que tem reduzido o índice de fumantes. Preocupa, no entanto, a constatação de que o consumo de cigarros vem aumentado entre os jovens.
        As Nações que desenvolveram campanhas contra o tabagismo concluiram que os impostos arrecadados com a fabricação do cigarro eram insuficientes para cobrir as despesas com as enfermidades produzidas pelo fumo.
        O alcoolismo é outro mal difundido em todo o mundo. O uso imoderado de bebidas alcoólicas é responsável por grande parte de acidentes, mortes violentas, absenteismo e doenças como a cirrose hepática e a pancreatite crônica.
        A cirrose já é a quarta causa de morte no EE. UU., enquanto nos países da Europa sua incidência é elevada, proporcional ao consumo de bebidas alcoólicas.
        No Brasil, embora não existam dados estatísticos precisos, o consumo de bebidas alcoólicas per capita tem aumentado a cada ano, especialmente em relação à cerveja e à aguardente de cana. Segundo dados do IBGE, o Brasil produziu em 1979 3 bilhões de litros de cerveja e em 1999, 8 bilhões. O consumo per capita aumentou de 25 litros em 1979 para 48,4 litros em 1999. A produção de aguardente de cana foi de 692 milhões de litros em 1979 e de 1,3 bilhão de litros.em 2004, dos quais 99% destinados ao consumo interno.
        O uso de drogas, a toxicomania, talvez seja o maior flagelo dos tempos modernos e será o maior desafio aos governos e à sociedade no século XXI. O número de usuários de drogas tem aumentado em todo o mundo, sobretudo entre os jovens.
        A maconha, tida por inócua, é também uma droga perigosa. Segundo relatório da Organização Pan-americana de Saúde, divulgado em 1986, seu uso contínuo causa dependência psíquica, reações de regressão, apatia e lesões cerebrais.
        Depois da maconha, a droga mais utilizada é a cocaína, cujo consumo tem aumentado em todo o mundo, apesar da guerra movida aos produtores clandestinos e aos traficantes. A cocaína causa dependência, lesões permanentes da função cerebral e morte súbita por dose excessiva, como tem ocorrido com freqüência. Numa escalada progressiva, a busca de alucinógenos mais potentes como LSD e heroína, que desintegram a personalidade e abreviam a vida.
        Por este inventário que acabamos de fazer fica evidente que os progressos da medicina no século XX reduziram as taxas de mortalidade, eliminaram a maioria das doenças infecciosas, aumentaram a esperança de vida e criaram condições para uma melhor qualidade de vida.
        Fica evidente, também, que forças adversas tentam anular as vitórias conseguidas e que novos desafios se apresentam para o século XXI, decorrentes do crescimento acelerado da população, da sua concentração em grandes aglomerados urbanos, da ação predatória do homem na natureza, da poluição ambiental e de hábitos nocivos à saúde.
        Outro aspecto que deve ser abordado é o da elevação crescente dos custos da atenção médica em decorrência da sofisticada tecnologia incorporada aos métodos diagnósticos e terapêuticos.
        Tornou-se necessária a instituição de sistemas de seguro-saúde para fazer face às despesas com a doença, bem como a participação crescente do Estado para assegurar o acesso das populações de menor renda aos serviços de saúde.
        Cada país organizou o seu próprio sistema de saúde na dependência da orientação político-ideológica dominante e dos recursos econômicos disponíveis. A medicina deixou de ser uma profissão liberal e os médicos, em sua maioria, se transformaram em assalariados, funcionários do Estado ou prestadores de serviço a empresas e cooperativas de seguro-saúde.
        Há uma tendência irreversível para que o Estado assuma progressivamente todos os Serviços de Saúde, independentemente do regime político vigente. A Inglaterra se antecipou nessa direção, estruturando o seu Sistema de Saúde nos moldes dos países socialistas.
        No Brasil há um esforço nesse sentido com a implantação de SUS (Serviço Único de Saúde), que presta assistência médica à população de baixa renda..
        O total de recursos alocados pelo Estado para o Setor de Saúde depende não só da situação econômica, como principalmente da decisão política de cada país. Dentre os países latino-americanos o Brasil se encontra em uma situação intermediária, com 107 dólares per capita para o ano de 2006, acima da média da América Latina, enquanto a média dos países desenvolvidos é de 380 dólares.
        O rápido crescimento demográfico, aliado à deterioração econômica dos países em desenvolvimento, tem dificultado a extensão das ações de saúde à população desses países. Milhões de pessoas em todo o mundo, sobretudo do chamado terceiro mundo, vivem marginalizadas, carentes de alimentação, sem casa para morar, sem usufruir das medidas de saneamento, desassistidas na doença e sem acesso às grandes conquistas da medicina.
        Preocupada com esta situação, a ONU fez realizar em 1978, em Alma-Ata, na União Soviética, uma reunião da qual participaram 134 países, para debater o tema Saúde para todos no ano 2000. Todos os 134 países participantes subscreveram um documento, conhecido como Declaração de Alma-Ata, no qual se comprometeram a desenvolver esforços para proporcionar a todas as pessoas, no ano 2000, pelo menos a atenção primária à saúde.
        Embora fosse um projeto ambicioso, quase utópico, a Declaração de Alma-Ata serviu pelo menos para que os Governos se conscientizassem das suas responsabilidades.
        O Brasil, um dos poucos países que não se fez representar oficialmente naquela histórica reunião, subscreveu posteriormente a Declaração de Alma-Ata.
        A maior dificuldade de se atingir a meta proposta tem sido a do financiamento dos Serviços de Saúde. É óbvio que os gastos com armamento bélico em todo o mundo seriam mais que suficientes para proporcionar saúde para todos. Seria utópico, entretanto, pretender usar essa fonte de recursos.
        Chegamos, assim, ao século XXI empolgados pelo enorme progresso alcançado pela medicina e ao mesmo tempo aturdidos pelas conseqüências advindas desse mesmo progresso e pelos novos desafios que se nos apresentam.
        Chegamos a ele frustrados ao verificar que nem todos os homens, mulheres e crianças desfrutam das mesmas oportunidades de vida e saúde e das conquistas da medicina.
        Usando uma expressão de Lain Entralgo podemos resumir as perspectivas da medicina para o século XXI em duas palavras: poder e perplexidade.
 

Fontes bibliográficas

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GOODFIELD, J. Brincando de Deus: a engenharia genética e a manipulação da vida. São Paulo, Itatiaia/EDUSP, 1981.
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WOLTERECK, H. La vejez, segunda vida del hombre. México, Fondo de Cultura Económica, 1962.
 

*Adaptado do livro "Vertentes da medicina", São Paulo, Ed. Giordano, 2001, p. 65-78.

Joffre M de Rezende
Prof. Emérito da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Goiás
Membro da Sociedade Brasileira de História da Medicina
e-mail: pedro@jmrezende.com.br
http://www.jmrezende.com.br
20/02/2006