LINGUAGEM MÉDICA
PORTUGLÊS:
UM NOVO DIALETO MÉDICO]
Na primeira metade do século XX
predominava no mundo ocidental a literatura médica francesa. A França era o
centro irradiador da cultura. As famílias mais abastadas mandavam seus filhos estudar medicina em Montpelier ou Paris, enquanto os
estudantes que cursavam as nossas faculdades deviam saber francês, pois a
maioria dos livros médicos vinha da França, desde a Anatomia de Testut, até os
livros de Clínica Médica, Clínica Cirúrgica e Obstetrícia. Eram raras as
traduções.
Nessa época, os professores das
Faculdades de Medicina do Brasil esmeravam-se na linguagem, tanto falada como
escrita. Lemos hoje com admiração as páginas que nos legaram Francisco de
Castro, Miguel Couto, Carlos Chagas, Afrânio Peixoto, Rubião Meira, Almeida
Prado e tantos outros.
Numerosos termos médicos vieram para
o português através do francês. Condenavam-se os galicismos desnecessários,
porém acolhiam-se aqueles que vinham enriquecer o acervo do nosso vocabulário
médico.
Apesar da grande influência francesa
na cultura brasileira, o nosso idioma preservou sua identidade e sobreviveu
incólume. Isto porque o francês tem a mesma estrutura, a mesma sintaxe, a mesma
origem da língua portuguesa. São ambas línguas
neolatinas. O enriquecimento da cultura indígena com os livros franceses não
adulterou o nosso vernáculo, como testemunham os escritos médicos da época.
Na década de 40, após a Segunda
Guerra Mundial, teve início a hegemonia da medicina
norte-americana e livros e revistas em inglês foram aos poucos tomando o lugar
das publicações francesas.
Tornou-se necessário aprender inglês
e os Estados Unidos passaram a ser a Meca das novas gerações de médicos, em
busca de aprimoramento técnico.
Coincidentemente, na década de 40 suprimiu-se
Na década de 50 surgiu a televisão
como força avassaladora, monopolizando o tempo e a mente das crianças e dos
jovens, afastando-os progressivamente do hábito da leitura de bons livros, com
reflexos negativos na evolução da nossa cultura e da nossa língua.
Houaiss chama a atenção para o
paradoxo da época atual, em que a explosão vocabular da linguagem técnica
coexiste com a pobreza da linguagem geral em uso pela maioria da população.[1] Acresça-se a isso a dificuldade de combinar
sintaticamente as palavras e será fácil compreender a condição de
semi-alfabetizados dos nossos vestibulandos.
É compreensível, nesta situação, a
marcante influência que passa a exercer em nosso vernáculo um idioma
estrangeiro como o inglês, cujo aprendizado se tornou obrigatório para a leitura
dos livros e periódicos científicos.
A classe médica, habitualmente
displicente no trato da língua, tornou-se presa fácil dessa influência,
incorporando à linguagem médica o vocabulário, a sintaxe e até a semântica da
língua inglesa.
Desenvolveu-se gradualmente um
verdadeiro dialeto, que poderia ser chamado de PORTUGLÊS, ou seja
, uma estrutura linguistica própria da língua inglesa, travestida com a
roupagem da língua portuguesa.
Paradoxalmente, um dos fatores que
mais têm contribuído para a consolidação desse dialeto são as traduções de
livros do inglês para o português. Tivemos ocasião de abordar este assunto ao
ensejo de um comentário sobre a tradução do livro "Gastrointestinal
Diseases", de Sleisenger e Fordtran. [2] Nesse comentário, afirmamos:
"Lamentavelmente, a maioria das traduções de livros médicos que nos são
oferecidas pelas editoras no Brasil, deixam muito a desejar. De maneira geral,
leva-se em conta, nessas traduções, apenas o aspecto técnico do texto, descurando-se
totalmente do aspecto linguistico. Ocorre, entretanto, que até mesmo o aspecto
técnico pode estar prejudicado pela má qualidade da tradução. Para uma boa
tradução são requisitos indispensáveis no tocante à qualificação do tradutor:
a) conhecimento do assunto; b) conhecimento da língua de origem; c) domínio da
língua para a qual o texto vai ser traduzido. Qualquer deficiência em relação a
um dos itens enumerados repercute forçosamente na qualidade da tradução.
Infelizmente, o que mais tem contribuído para a má qualidade das traduções de
livros médicos entre nós tem sido o descaso, a
negligência e o despreparo dos tradutores no manuseio do nosso próprio idioma.
Se, por um lado, as traduções trazem inegável contribuição à cultura médica
O PORTUGLÊS se caracteriza pelo
emprego constante da voz passiva, pela ordem inversa das proposições, pela
sintaxe de colocação, pelos erros de regência verbal, pela adulteração
semântica das palavras e pelas impropriedades léxicas. Eis alguns poucos
exemplos:
"Este sinal é dito ser
patognomônico"(is said to be)
"O resultado estatístico é
mostrado na tabela." (is shown).
"É enfatizado o sintoma
dor no câncer do pâncreas' (It is emphasized).
"Em
adição, observa-se o envolvimento dos músculos." (In
addition, envolvement)
"Esta hipótese é assumida
pelo autor " (aceita, admitida)
"Tem sido mostrado que
os pacientes..." (It has been shown).
"Na doença de Hodgkin os
gânglios cervicais podem ser aparentes" (visíveis, notados à
inspeção).
"Os achados radiológicos são consistentes
com embolia..." (compatíveis).
"Na falência cardíaca há
considerável retenção de fluidos'' (fluidos por líquidos).
"A aproximação
diagnostica" (approach, abordagem)
"O tratamento suportivo ..." (de manutenção)
"A hipertensão arterial severa..."
(grave)
"a inflamação granulomatosa
pode ser um processo concorrente (concomitante, simultâneo).
"A operação proposta está
contra-indicada em pacientes comprometidos'' (de alto risco).
"O clareamento do
antígeno viral... (depuração, eliminação)
"E
importante a aderência do paciente ao tratamento" (adesão,
colaboração).
"Em caso de relapso dos
sintomas... (recidiva).
"A medicação deve ser descontinuada..."
(interrompida)
E assim por diante...
Registramos um fato linguístico
decorrente da contingência histórica em que vivemos sem apontar remédios ou
soluções.
Acreditamos que a única maneira
eficaz de se preservar a identidade da língua vernácula será valorizando o seu
estudo na formação das novas gerações, desde o curso fundamental. Para isso
será necessário, antes de tudo, preparar professores habilitados para a
patriótica tarefa.
Em relação à linguagem médica, é
pelo menos confortador registrar a expansão, nos últimos anos, do movimento editorial
Referências bibliográficas
1. HOUAISS, A. - Estudos vários sobre palavras, livros, autores. Rio de
Janeiro, Paz e Terra, 1979.
5. REZENDE, J.M. – Análises e Resumos. Rev. GoianaMed.,
27:117, 1981.
Publicado no livro Linguagem Médica, 3a. ed.,
Goiânia, AB Editora e Distribuidora de Livros Ltda, 2004..
Joffre M de Rezende
Prof. Emérito da Faculdade de Medicina da Universidade
Federal de Goiás
Membro da Sociedade Brasileira de História da Medicina
e-mail: pedro@jmrezende.com.br
http://www.jmrezende.com.br
10/9/2004.