RECURRENTE, RECORRENTE
Qualquer léxico nos
esclarece que recorrente é adjetivo, derivado do verbo recorrer,
com o sentido de ‘voltar atrás’, ‘retornar ao ponto de partida’.
E indica a sua procedência latina: recurrens.
Em medicina, desde Galeno,
no século II d.C., que o adjetivo latino recurrens é
utilizado como termo descritivo de um tipo de febre, cuja característica
principal é a de retornar após períodos de normalização
da temperatura. A malária quartã foi chamada por Aulus Gellius
(127-175 d.C.) de recurrens quartis diebus febris.[1]
Em nomenclatura anatômica
temos o nervo laríngeo inferior ou recurrente (nervus recurrens),
assim chamado por Vesalius por seu trajeto ascendente até a laringe,
parecendo retornar ao tronco vagal de onde procede. Temos ainda as artérias
recurrentes, ramos, respectivamente, da artéria radial, da artéria
cubital e da artéria tibial.
Na descrição
dos tipos de febre encontramos inúmeras classificações.
Em muitas delas figura o tipo recurrente. Amato Neto assim define
a febre recurrente: "início abrupto e alternância de fases
curtas de hipertermia com outras de ausência de alteração".[2]
Dá como exemplo a febre que ocorre na doença de Hodgkin,
conhecida como de Pel-Ebstein, por ter sido descrita por estes dois autores.
A denominação
de febre recurrente foi também aplicada a um grupo restrito
de doenças causadas por espiroquetas do gênero Borrelia,
em virtude de sua evolução por períodos febris que
aparecem a intervalos de dias, podendo haver três ou quatro recaídas.
Descrevem-se duas variedades de febre recurrente:
1) Febre recurrente européia,
epidêmica, cujo agente etiológico é a Borrelia recurrentis,
transmitida
por piolhos.
2) Febre recurrente africana,
endêmica (Tick fever), causada pela Borrelia duttoni
e transmitida por carrapatos.[3]
A variedade européia,
epidêmica, foi primeiramente descrita na Grã Bretanha sob
o nome de relapsing fever, cuja melhor tradução para
o português teria sido febre recidivante e não a que
foi adotada de febre recurrente. Atribui-se a prioridade de sua
descrição a Henderson, médico de Edimburg, quem, em
1843, a diferenciou de febre tifóide. Contudo, Major faz recuar
essa prioridade a John Rutty, médico irlandês que viveu de
1698 a 1775.[4]
O agente causal da doença
só foi identificado em 1873, por Obermeier, que o isolou do sangue
de um paciente febril.[5]
A questão linguística
que defrontamos é saber se devemos escrever recorrente (com o
) ou recurrente (com u) quando se trata de termo médico.
Os dicionários do
século passado (Moraes, 1813; Constancio, 1845; Faria, 1856; Vieira,
1871; Lacerda, 1874) são unânimes em separar os dois termos:
Recorrente - que interpõe
recurso.
Recurrente - termo
de medicina (nervo, artéria, febre).
O registro de recorrente
com
as duas acepções começa a aparecer a partir do dicionário
de Caldas Aulete-Santos Valente (1881). Alguns léxicos modernos,
dentre os quais o Aurélio, nem sequer consignam a forma recurrente.[6]
Excetua-se o Vocabulário Ortográfico
da Academia Brasileira
de Letras, que registra as duas formas como adjetivos de ambos os gêneros.[7]
Na evolução
do latim vulgar para o português é normal a transformação
da vogal u em o. Neste caso, entretanto, a palavra não provém
do latim vulgar e sim do latim erudito, médico, não se justificando
a mudança pretendida.
Autores clássicos
da medicina brasileira sempre usaram recurrente (com u).
Dentre eles podemos citar Miguel Couto,[8] Carlos Chagas e Evandro Chagas,[9]
Eugênio Coutinho,[10] Vieira Romeiro,[11] Pedro A. Pinto.[12]
Assim, muito embora a Nomenclatura Anatômica
da Língua Portuguesa tenha adotado recorrente
como tradução
do latim recurrens, seria preferível a manutenção
da forma recurrente sempre que nos referirmos a elementos anatômicos,
tipo de febre, ou à doença causada por espiroquetas do gênero
Borrelia.
Referências bibliográficas
1. SARAIVA, F.R.S. - Dicionario latino-português,
9.ed. Rio de Janeiro, Liv. Garnier, 1993.
2. AMATO NETO, V. - Febre de origem indeterminada. São
Paulo, Liv. Atheneu, 1969, p.21.
3. BIER, O. - Bacteriologia e Imunologia, 19.ed., São
Paulo, Melhoramentos, 1978, p.613-614.
4. MAJOR, R.H. - Classic descriptions of diseases, 3.ed.
Springffield, Charles C. Thomas, 1945, p. 223
5. MORTON, L.T. - A medical bibliography (Garrison and
Morton), 4.ed. London, Gower, 1983. p. 712
6. FERREIRA, A.B.H. - Novo dicionário da língua
portuguesa, 3.ed. Rio de Janeiro, Ed. Nova Fronteira, 1999.
7. ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS - Vocabulário
ortográfico da língua portuguesa, 3. ed. Rio de Janeiro,
Imprensa Nacional, 1999.
8. COUTO, Miguel: Clínica médica, 3.ed.
Rio de Janeiro, Flores & Mano Ed., 1936, p. 192
9. CHAGAS, C., CHAGAS, E. - Manual de doenças
tropicais e infectuosas, vol 1. Rio de Janeiro, Officinas Graphicas da
Empreza Laemmert. Ltda., 1935, p. 186
10. COUTINHO, E. - Tratado de clínica das doenças
infectuosas e parasitárias, 4.ed. Rio de Janeiro, 1947, p. 223
11. ROMEIRO, J.V. - Semiologia médica, 3.ed..
Rio de Janeiro, Jacintho Ribeiro dos Santos, 1928, p. 80.
12. PINTO, P.A. - Dicionário de termos médicos,
8. ed. Rio de Janeiro, Ed. Científica, 1962.
Publicado no livro Linguagem Médica, 3a. ed., Goiânia, AB Editora
e Distribuidora de Livros Ltda, 2004..
Joffre M de Rezende
Prof. Emérito da Faculdade de Medicina da Universidade Federal
de Goiás
Membro da Sociedade Brasileira de História
da Medicina
e-mail: pedro@jmrezende.com.br
http://www.jmrezende.com.br
10/9/2004.