LINGUAGEM MÉDICA
 

SHUNTAR OU XUNTAR?

        Uma das consequências do crescente progresso da medicina, especialmente em relação aos métodos diagnósticos e procedimentos terapêuticos, é a necessidade de se criarem novos termos e expressões.

        Os neologismos surgem quase sempre em inglês, por ser esta a língua de comunicação científica internacional, na qual se concentra a maioria das publicações médicas dos países desenvolvidos.

        Do inglês, os novos termos e expressões devem ser traduzidos ou adaptados a outros idiomas, o que constitui um processo normal de enriquecimento do acervo lexical em todas as línguas de cultura. Neste processo, no entanto, procura-se preservar, sempre que possível, a identidade do idioma que incorpora o neologismo.

        A nossa condição de país subdesenvolvido e a postura de alienação de nossas elites em relação às nossas raízes culturais latinas, têm resultado na absorção pura e simples dos novos termos e expressões, com distorções semânticas e sem a preocupação de procurar seus equivalentes em português ou de adaptá-los corretamente do ponto de vista morfológico.

        Muitas vezes trata-se de uma palavra nova que não tem correspondente em português. Neste caso, a mesma deverá, sempre que possível, ser adaptada ao nosso idioma, sem descaracterizá-la. E quando isso não for possível, deve-se utilizar a palavra original, tomada de empréstimo, grifada ou entre aspas.

        Estas considerações vêm a propósito do pretenso verbo shuntar, o qual seria equivalente ao verbo inglês to shunt, do substantivo shunt, cujo significado em português é o de derivação, de desvio de trajeto, e que é empregado em cirurgia vascular para designar a derivação da corrente sangüínea de um vaso para outro.

        Do mesmo modo que shunt, outras palavras inglesas como show, short (vestuário), shopping são correntemente usadas no Brasil na sua forma original e encontram-se registradas nos léxicos como empréstimos do inglês. O dígrafo sh é inteiramente estranho à língua portuguesa. O seu aportuguesamento comporta dois caminhos: ou substituir sh por x, a exemplo de xampu (shampoo) e xerife (sheriff), ou por ch, à maneira de chute (do inglês shoot). Em qualquer dos casos será acrescentada a vogal e ao final da palavra. O verbo em português correspondente ao inglês to shunt seria, portanto, xuntar (ou chuntar).

        Causa estranheza que a Academia Brasileira de Letras tenha incorporado o neologismo shuntar ao seu Vocabulário Ortográfico, sem a necessária adaptação à língua portuguesa, mantendo o dígrafo sh.[1]

        Justificar-se-ia o novo verbo? Não seria preferível, no caso, lançar mão de outro recurso linguístico, utilizando-se de termos vernáculos, como derivação ou anastomose? Ou, alternativamente, empregar apenas o substantivo inglês shunt, precedido de um verbo indicativo de ação, como fazer, realizar, efetuar? Diríamos: O shunt deve ser feito; devemos realizar o shunt; efetuamos o shunt, etc., de modo a deixar claro que se trata de palavra importada, não adaptada ao português.
Cabe aos cirurgiões a palavra final.
 

Referência bibliográfica

1. ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS: Vocabulário ortográfico da língua portuguesa, 3a. ed. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1999.

 Publicado no livro Linguagem Médica, 3a. ed., Goiânia, AB Editora e Distribuidora de Livros Ltda, 2004..  

Joffre M de Rezende
Prof. Emérito da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Goiás
Membro da Sociedade Brasileira de História da Medicina
e-mail: pedro@jmrezende.com.br
http://www.jmrezende.com.br

10/9/2004.