TIRÓIDE, TIREÓIDE
Uma das questões mais
polêmicas em terminologia médica tem sido a que diz respeito
à denominação da cartilagem e da glândula tiróide.
Deve ser tiróide
ou
tireóide?
Esta questão foi
exaustivamente estudada pelo Prof. Idel Becker, em seu livro Nomenclatura
Biomédica no Idioma Português do Brasil, onde se encontram
as inúmeras razões pelas quais se deve optar pela forma tiróide.[1]
A riqueza das fontes citadas em apoio da forma tiróide fazem do
erudito trabalho do Prof. Becker leitura obrigatória para quantos
desejarem aprofundar-se no assunto. Neste breve escorço serão
apenas ressaltados alguns pontos que nos esclarecem quanto à origem
da controvérsia.
Há, em grego, duas
palavras muito semelhantes - thýra e thyreós -
que significam, respectivamente, porta e escudo. Thyreós pode
significar ainda uma grande pedra servindo de porta.
A cartilagem é conhecida
desde Galeno (século II DC), ao passo que a glândula só
foi descrita em 1656, por Wharton, quem usou em latim thyro e não
thyreo.
A idéia de que o
nome da cartilagem se deve à semelhança com um escudo tem
sido aceita mesmo por lexicógrafos que grafam a palavra sem a letra
e
na segunda sílaba. Assim, por exemplo, vamos encontrar no Lexicon
Medicum, de Blancard (1718), o seguinte registro: Thyroidae glandulae
sunt numero duae..."."Thyroides est scutiformiscartilago laryngis..."
[2]
Os escritos originais de
Galeno se perderam e o texto foi preservado através de cópias
e traduções. Em sua tradução francesa das obras
de Galeno, Daremberg usa
thyreoïde
e observa: "Les anatomistes
de nos jours écrivent thyroïde, comme si ce mot venant de thyra
(porte) et non de thyreós (espèce de bouclier)".[3]
Littré e Robin, em
seu Dictionnaire de Médecine escrevem: "Thyreoïde.
De thyreós, bouclier, et eides, ressemblance. On écrit ordinairement
thyroïde, mais thyroïde viendrait de thyra, porte".[4]
Bloch e Wartburg também
atribuem a forma
thyroïde
a um erro de transcrição,
porém consideram-na vitoriosa, como se deduz do seguinte trecho.
"Thyroïde. Empr. du grec thyroeides, qui a la forme d’une porte:
pris par confusion par suite d’une faute de copiste dans Oribase, à
la place de thyreoeides, qui a la forme d’un bouclier. Littré a
essayé, mais vainement de rectifier le mot fr. en thyreoïde".[5]
Dentre os léxicos
modernos encontra-se no Webster's a seguinte explicação eclética.
"Thyroid, from greek thyreoeides, shaped like a shield, from thyreós,
shield shaped like a door (from thyra, door) + eides -oid".[6]
Em alemão a glândula
tiróide é chamada schilddrüse, de schild,
escudo, e drüse, glândula, o que define a aceitação
da etimologia baseada em thyreós. De maneira coerente muitos
termos relativos à cartilagem ou à glândula são
escritos com a raiz thyreo. Contudo, modernamente já se emprega
a raiz thyro para designar a própria glândula (Thyroidea)
e em alguns cognatos como thyroxin, thyronin, thyrogen, thyroidektomie,
thyroideus.[7]
Em francês, apesar
das tentativas de mudança capitaneadas por Daremberg e por Littré,
prevalece a raiz thyro para a cartilagem e a glândula, assim
como para a maioria dos termos cognatos. Manuila e col., em seu Dictionnaire
de Médecine et de Biologie averbam 41 vocábulos com a
raiz
thyro,
10 com thyreo e 7 com ambas as formas.[8]
Em inglês usa-se de
preferência
thyro
para todos os compostos. Assim também
em italiano.
Em espanhol emprega-se exclusivamente
a raiz thyro. E o Dicionario da Real Academia Española,
19ª ed., dá a seguinte etimologia: "Tiróides
- do gr. Thyroeides, semejante a una porta."[9]
A controvérsia transpôs-se
há já algum tempo para a língua portuguesa.
A forma tiróide
antecedeu
à
tireóide, sendo a única registrada nos dicionários
de Constancio (1845), Faria (1856), Lacerda (1874) e Vieira (1874).
A forma tireóide,
contudo, teve defensores entre os mais destacados nomes da literatura médica
brasileira, como Francisco de Castro, Ramiz Galvão e Pedro Pinto.
Em 1930, a Academia Brasileira
de Letras designou uma Comissão para elaborar o seu dicionário
da língua portuguesa. Na sessão de 24 de abril de 1930 a
Comissão aprovou o parecer de Medeiros e Albuquerque, propondo a
grafia tiróide.[10]
A decisão da Comissão
foi contraditada por ilustres médicos da época. Mangabeira-Albernaz,
em trabalho extenso e erudito, procurou demonstrar as falhas da argumentação
de Medeiros e Albuquerque (que não era médico), concluindo
pela correção da forma tireóide.[11]
Desde então, ambas
as formas vêm sendo utilizadas e são aceitas pelo Vocabulário
Ortográfico da Academia Brasileira de Letras.[12]
Fazendo-se um levantamento
dos trabalhos médicos brasileiros indexados nas três últimas
décadas, observa-se uma reversão de tendência a partir
de 1980, talvez por influência da literatura médica de língua
inglesa. Em 49 trabalhos indexados a partir de 1980, 28 empregaram a raiz
tiro
e 21 tireo.[13] Por vezes encontram-se artigos em cujos títulos
foram utilizados ambas as formas,[14] o que, evidentemente, deve ser evitado.
Conforme ressalta o Prof.
Becker, em seu estudo já citado, é preferível tiróide
à
tireóide,
não somente pela inexistência de provas da alegada razão
etimológica, como também por ser a forma hoje usada em outras
línguas de cultura.
A razão principal,
no entanto, está na Nomina Anatomica, cuja nomenclatura
tem validade internacional, e que, a partir de 1960, em sucessivas edições,
adotou de vez a raiz thyro-. A mais recente edição
da
Nomina, publicada em 1998 sob o título de Terminologia
Anatomica, mantém a denominação em latim de cartilago
thyroidea para a cartilagem e glandula thyroidea para a glândula.[15]
A opção pela
raiz thyro-
em latim pela Federação Internacional
das Associações de Anatomistas (IFFA) demonstra a fragilidade
do argumento de que Galeno teria comparado a cartilagem a um escudo e não
a uma porta de dois batentes. Acredito que não mais se justifica
o argumento etimológico tantas vezes utilizado em defesa da forma
vernácula de tireóide.
Apesar disso, na tradução
da Terminologia Anatomica para a língua portuguesa, a Comisssão
de Terminologia da Sociedade Brasileira de Anatomia traduziu Glandula
thyroidea em latim por Glândula tireóide em português,
alterando a raiz thyro- para tireo-, o que nos parece uma
incongruência. De igual maneira procedeu em relação
às glândulas paratiróides.
As novas substâncias
isoladas da tiróide, como a tironina e a tiroxina
têm seus nomes de batismo consagrados com a raiz tiro-.
No futuro, certamente irá
prevalecer, também em português, a forma tiróide,
tanto para a glândula como para a cartilagem.
Do mesmo modo serão
escritos sem a vogal
e
na segunda sílaba todos os cognatos,
como tiroidectomia, tiroglobulina, tirotrópico, hipertiroidismo,
paratiróide, etc.
Alguns poucos termos, tais
como atireose, tireoprivo, tireostático, provavelmente resistirão
por mais tempo à mudança ou preservarão a raiz tireo,
a exemplo do francês.
Referências bibliográficas
1. BECKER, I.. - Nomenclatura biomédica. São
Paulo, Liv. Nobel, 1968, p. 314-329.
2. BLANCARD. S. - Lexicon medicum graeco-latino-germanicum,
5.ed., Hallae Magdeburgicae, 1718, p.321.
3. DAREMBERG, Ch. - Oeuvres de Galien. Paris, Baillière,
1854, vol.1, p. 484 (NT).
4. LITTRÉ, E., ROBIN, Ch.. - Dictionnaire de médecine,
de chirurgie, de pharmacie, de l’art, vetérinaire et des sciences
qui s'y rapportent, 13.ed. Paris, Baillière et Fils, 1873.
5. BLOCH, O. VON WARTBURG, W. - Dictionnaire étymologique
de la langue française, 7.ed. Paris, Presses Universitaires de France,
1986.
6. WEBSTER'S THIRD NEW INTERNATIONAL DICTIONARY - Chicago,
Enciclopedia Britanica Inc., 1966.
7. ZATKIN, M. & SCHALDACH, H. - Wöterbuch der
Medizin, 15. ed., . Berlin, Ullstein Mosby, 1992.
8. MANUILA, A., MANUILA, L., NICOLE, M. & LAMBERT,
H. - Dictionnaire français de médecine et de biologie. Paris,
Masson & Cie., 1970.
9. REAL ACADEMIA ESPAÑOLA - Diccionario de la
lengua española, 19.ed. Madrid, 1970.
10. RIBEIRO, L. - Vocabulário médico. Folha
méd. 21: 245-249, 1942.
11. MANGABEIRA-ALBERNAZ, Paulo: Questões de linguagem
médica. Rio de Janeiro, Liv. Atheneu, 1944, p. 9-29.
12. BIREME - Index medicus latino americano, 1980-87.
13. ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS - Vocabulário
ortográfico da língua portuguesa, 3a. ed. Rio
de Janeiro, Imprensa Nacional, 1999.
14. AMARAL, R.L. - Cirurgia da tiróide: o autotransplante
da paratireóide para evitar o hipoparatireoidismo. Rev. Ass.
Méd. Rio Grande do Sul 27: 462-465, 1983.
15. FEDERATIVE COMMITTEE ON ANATOMICAL TERMINOLOGY. -
Terminologia anatomica. Stuttgart, Georg Thieme Verlag, 1998, p.58 e 74.
16. SOCIEDADE BRASILEIRA DE ANATOMIA. Terminologia anatômica.
São Paulo, Ed. Manole Ltda., 2001, p. 90
Joffre M de Rezende
Prof. Emérito da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Goiás
Membro da Sociedade Brasileira de História da Medicina
e-mail: pedro@jmrezende.com.br
http://www.jmrezende.com.br