ACONTECER
Acontecer é verbo defectivo unipessoal, que só
se conjuga na terceira pessoa e que não possui imperativo: acontece,
acontecem, aconteceu, aconteceram, acontecia, aconteciam, acontecerá,
acontecerão
etc.[1]
Acontecer deriva do verbo
latino contingescere, que tem a mesma raiz de contingencia,
ae,
cujo significado é de um fato imprevisto, que ocorre por acaso ou
por acidente.
Temos em português
contingência
e contingente, vocábulos que preservaram o sentido de incerteza,
de ocorrência eventual, que pode ou não suceder.
O verbo acontecer tem
igualmente esta conotação de inesperado, fortuito, inopinado,
incerto, não previsto, conforme se pode ler em muitos léxicos
clássicos, como os de Moraes,[2] Constâncio,[3] Domingos Vieira,[4]
Cândido de Figueiredo,[5] Augusto Magne[6]
O Novo Aurélio
Século XXI dá as seguintes acepções para
o verbo acontecer: 1. Suceder ou realizar-se inopinadamente. 2. Passar
a ser realidade; ocorrer, suceder, sobrevir. 3. Bras. Ser ou constituir
fato de importância na vida social ou em outros âmbitos. 4.
Suceder, ocorrer. [7]
Por influência da
linguagem jornalística e dos noticiários de televisão,
o verbo acontecer passou a ser usado com tal freqüência,
que praticamente se transformou no único recurso lingüístico
para registar todas as ocorrências, previstas ou não. Vale
citar, a propósito, as cáusticas palavras de Napoleão
Mendes de Almeida em seu Dicionário de Questões Vernáculas:
"Pelo menos no Brasil, fatos
já não ocorrem ("desastre acontecido ontem"), nem se verificam
( "O cerco aconteceu de surpresa"), nem se efetuam ("Operações
acontecidas na bolsa"), nem se realizam ("Casamento que irá acontecer"),
nem se cumprem (..." para que aconteça o que foi prometido"), nem
sucedem ("Outras surpresas aconteceram"), nem se dão ("Os motivos
que aconteceram"), nem resultam ("Nenhum efeito aconteceu"), nem redundam
("Tudo isso aconteceu em seu favor"), nem revertem ("A discussão
aconteceu em nada"), nem se operam ("A detenção aconteceu
ontem"), nem se praticam ("Faltas que aconteceram por descuido"). "É
a pobreza de vocabulário causa do invariável, monótono,
enfadonho
(o grifo é nosso) emprego de certas palavras". "Que aconteceu?
É a nossa língua que passou de flor a escória, a borra
do Lácio".[8]
Como é natural, a
linguagem médica também deixou-se influenciar por este neologismo
semântico e já não é raro encontrarmos noticiário
de congressos, jornadas, cursos, que aconteceram ou vão acontecer
em tal data ou em tal lugar.
O verbo acontecer
deve ser reservado para fatos e ocorrências não programadas.
Acidentes de trabalho acontecem com freqüência; não
são previstos. No Hospital das Clínicas de Goiânia,
em uma campanha preventiva contra acidente de trabalho, foram colocadas
placas em diferentes locais, com os dizeres muito apropriados e ilustrativos
do que acabamos de afirmar: "O acidente não avisa, acontece.".
Seria uma impropriedade
lexical dizer, por exemplo, que "a intervenção cirúrgica
aconteceu
sob anestesia geral". Uma intervenção cirúrgica não
acontece;
ela é programada, planejada segundo técnica preestabelecida
e se realiza, se efetua, se processa, se pratica.
Durante o ato cirúrgico,
no entanto, pode acontecer um acidente anestésico com parada
cardíaca.
Infelizmente, para desespero
do cirurgião e do anestesista.
Referências bibliográficas
1. MACHADO FILHO, A.M. - Coleção "Escrever
Certo", 2.ed., vol. 5. São Paulo, Boa Leitura Ed., 1966, p. 281-282.
2. MORAES SILVA, A. - Dicionário da língua
portuguesa. Lisboa, Typographia Lacerdina, 1813.
3. CONSTANCIO, F.S. - Novo dicionário crítico
e etimológico da língua portuguesa, 3.ed. Paris, Angelo Francisco
Carneiro, 1845.
4. VIEIRA, D. - Grande dicionário português
ou Tesouro da língua portuguesa. Porto, Ernesto Chardron e Bartholomeu
H. de Moraes, 1871-1874.
5. FIGUEIREDO, C. - Novo Dicionário da Língua
Portuguesa. Lisboa, Ed. Tavares Cardoso & Irmão, 1899.
6. MAGNE, A. - Dicionário da língua portuguesa
(A-Al). Rio de Janeiro, INL, 1950.
7. FERREIRA, A.B.H. - Novo dicionário da língua
portuguesa, 3.ed. Rio de Janeiro, Ed. Nova Fronteira, 1999.
8. ALMEIDA, N.M. - Dicionário de questões
vernáculas. São Paulo, Ed. "Caminho Suave" Ltda., 1981.
Publicado no livro Linguagem Médica, 4a. ed., Goiânia, Ed. Kelps, 2011.Joffre M de Rezende
Prof. Emérito da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Goiás
e-mail: pedro@jmrezende.com.br
http://www.jmrezende.com.br