AMBROISE PARÉ
O CIRURGIÃO QUE NÃO
SABIA LATIM
A profissão médica
no século XVI compreendia três classes: em primeiro lugar
situavam-se os médicos, que possuíam maiores conhecimentos
teóricos, usavam o latim em seus escritos e consideravam-se a elite
da profissão. Vinham a seguir os cirurgiões, que tratavam
feridas e traumatismos externos, faziam amputações, praticavam
a talha para tratamento da litíase vesical, lancetavam abscessos
e usavam o cautério. Por último estavam os cirurgiões-barbeiros,
que faziam sangrias, aplicavam sanguessugas e ventosas, barbeavam seus
freguezes e, por vezes, concorriam com os cirurgiões abrindo abscessos
e fazendo curativos.
Ambroise Paré viveu de
1510 a 1590. Não era médico e iniciou sua carreira como aprendiz
de cirurgião-barbeiro na cidade de Laval, no interior da França.
Ainda jovem transferiu-se para Paris e, aos 19 anos, conseguiu o que mais
desejava - trabalhar no Hotel Dieu. Ali praticou durante 4 anos como auxiliar
de cirurgia, vendo, observando e participando do tratamento de feridos.
Demonstrou, desde o início, sua habilidade cirúrgica e interesse
em aprender. Capacitou-se de tal maneira na prática da cirurgia
que foi indicado como cirurgião militar do exército francês,
participando das campanhas da Itália de 1536 a 1545.
Sua primeira grande contribuição
à medicina ocorreu quando contava 26 anos de idade e relaciona-se
ao tratamento dos feridos por arma de fogo.
Até o século
XVI acreditava-se que as feridas produzidas por armas de fogo eram envenenadas.
Conforme ensinava Vigo, conceituado cirurgião e traumatologista
italiano, as mesmas deviam ser cauterizadas com ferro em brasa ou óleo
fervente para combater a ação tóxica da pólvora.
O prestígio de Vigo no meio médico europeu pode ser avaliado
pelo fato de sua obra Practica in chirurgia, publicada em 1514,
ter alcançado 30 edições. Seus princípios terapêuticos
eram considerados a última palavra da ciência e jamais eram
contestados.
Uma casualidade concorreu
para que Ambroise Paré se insurgisse contra este tipo de tratamento
e vamos narrá-la com suas próprias palavras:
"No ano do Senhor de 1536,
Francisco, Rei de França, mandou um poderoso exército para
lá dos Alpes. Eu era, no exército real, o cirurgião
do Senhor de Montejan, general de infantaria. Os inimigos tinham tomado
os desfiladeiros de Suza, o castelo de Villane e todos os demais caminhos,
de modo que o exército do rei não era capaz de expulsá-los
de suas fortificações senão pela luta. Houve neste
embate, de ambos os lados, muitos soldados com ferimentos produzidos pelas
armas mais diversas, sobretudo por bala. Na verdade, não estava
muito versado, naquela época, em questões de cirurgia, nem
estava acostumado a fazer curativos em ferimentos por arma de fogo. Lera
que os ferimentos por arma de fogo estavam envenenados; portanto, para
seu tratamento era útil queimá-los ou cauterizá-los
com óleo fervente misturado com um pouco de teriaga. Mas ainda que
não desse crédito ao remédio, quis, antes de correr
o risco, ver se os outros cirurgiões que estavam comigo na tropa
usavam qualquer outro curativo para esses ferimentos. Observei e verifiquei
que todos usavam o curativo prescrito.
Aconteceu que, certa
vez, devido à multidão de feridos, faltou óleo. Então,
porque ficassem alguns sem curativo, fui forçado, porque podia parecer
que não queria fazer nada e não podia deixá-los sem
tratamento, aplicar uma mistura feita de gema de ovos, óleo de rosas
e terebentina.
Durante aquela noite
não pude dormir porque estava com o espírito conturbado e
o curativo da véspera, que eu julgava impróprio, perturbava
os meus pensamentos e temia que no dia seguinte ia encontrá-los
mortos ou a pique de morrer devido ao veneno da ferida que não tratara
com óleo fervente. Portanto, acordei cedo e, fora de qualquer expectativa,
notei que aqueles tratados sem o óleo estavam descansados, porque
livre da violência de dor e suas feridas não estavam inflamadas
nem tumefeitas; entretanto, os outros, queimados pelo óleo fervente,
estavam febris, atormentados com muitas dores e tumefeitas as partes que
cercavam as feridas.
Depois de ter experimentado
isto muitas vezes em diversos outros feridos, considerei muito a respeito
que nem eu nem ninguém devíamos cauterizar qualquer ferido
por arma de fogo".
Por sugestão de Sylvius,
que conhecera no Hotel-Dieu, Paré divulgou em 1545 o seu método
em um livro intitulado La methode de traiter les playes faites par hacquebutes
et autres bastons à feu..., o qual foi mal recebido no meio
médico por ter sido escrito em francês por um cirurgião-barbeiro
ignorante, que não sabia latim. Por ter sido escrito em francês,
entretanto, o livro tornou-se acessível e foi traduzido para outras
línguas. Em poucos anos o método de Paré foi adotado
por outros cirurgiões, não só na França, como
na Alemanha e na Itália.
A segunda importante contribuição
de Paré no campo da cirurgia diz respeito à hemostasia dos
vasos sangüíneos nas amputações de membros. A
conduta usada para deter a hemorragia nesses casos consistia na cauterização
com ferro incandescente, procedimento que causava enorme dor nos operados
e ocasionava lesões de difícil cicatrização.
O próprio Paré utilizou-se deste método clássico
até 1552, quando passou a usar pinças e ligar os vasos com
fios, tal como se pratica hoje.
Para defender-se das críticas contra o novo método, considerado
temerário, Paré citava Hipócrates, Galeno, Avicena
e outros autores clássicos que, em seus livros, recomendavam ligar
as veias em lugar da cauterização com o ferro incandescente.
Indiferente às críticas
dos meios científicos, Paré prosseguiu em seu trabalho, fazendo
suas próprias observações e desenvolvendo e aperfeiçoando
as técnicas cirúrgicas. Em 1552 Paré tomou parte em
outra expedição militar e Henrique II, rei da França,
impressionado com sua habilidade cirúrgica, designou-o cirurgião
ordinário do Rei. Este fato trouxe prestígio a Paré
e dois anos depois ele foi admitido na Confraria de S. Cosme, que congregava
os mais notáveis cirurgiões da França. Foi-lhe concedido
o título de Mestre em Cirurgia, apesar da oposição
de alguns membros do colegiado, que não admitiam que alguém
que não soubesse latim pudesse pertencer à Confraria.
Henrique II faleceu de um
traumatismo craniano, sob os cuidados de Paré e Vesalius. Ocupou
o trono Francisco II, que reinou apenas 18 meses e foi sucedido por Carlos
IX, quem, não somente manteve a posição de Paré,
como o promoveu em 1562 à condição de Primeiro Cirurgião
do Rei. Paré serviu ainda ao rei Henrique III, sucessor de Carlos
IX.
Paré teve uma vida
de intensa atividade. Inventou novos instrumentos cirúrgicos, idealizou
membros artificiais e o reimplante de dentes, reviveu a versão podálica
de Sorano, bem como a operação de lábio leporino e
foi o primeiro a perceber que a sífilis era causa de aneurisma da
aorta. Apesar de não ser médico publicou um tratado sobre
a peste e outras doenças e combateu o uso supersticioso de pó
de múmia como medicamento, o que estava em moda na época
e chegou a fazer parte do receituário médico.
Em 1564 publicou Dix
livres de la Chirurgie e, em 1575, aos 65 anos de idade, reuniu todos
os seus trabalhos sob o título Les Oeuvres de M. Ambroise Paré,
avec les figures et les portraits de l'Anatomie que
des instruments de chirurgie et de plusieurs monstres.
Suas obras continham matéria
não relacionada à cirurgia e como Paré não
era médico, a Faculdade de Medicina tentou, sem êxito, impedir
a publicação da primeira e da segunda edição.
Paré viveu mais 15 anos, durante os quais foram publicadas mais
quatro edições de suas obras, e faleceu quando estava preparando
a quinta edição, aos 80 anos de idade. Outras edições
se sucederam e Ambroise Paré passou a ser considerado o pai da moderna
cirurgia.
Paré, demonstrando
humildade e espírito religioso dizia sempre, referindo-se a seus
pacientes: Eu o tratei, Deus o curou.
Paré era tido como
huguenote (nome pelo qual eram conhecidos na França os protestantes
calvinistas) e escapou de ser morto na noite de S. Bartolomeu, a 23 de
agosto de 1572, porque o próprio rei Carlos IX, que ordenara a matança,
o ocultou no palácio.
Joffre M de Rezende
Prof. Emérito da Faculdade de Medicina da Universidade
Federal de Goiás
Membro da Sociedade Brasileira de História da Medicina
e-mail: pedro@jmrezende.com.br
http://www.jmrezende.com.br
10/09/2002