ANEDÓTICO, ANECDÓTICO
Na literatura médica de língua inglesa,
o adjetivo anecdotal tem o sentido de "não publicado" ou,
se publicado, "sem comprovação científica", "sem verificação
experimental."
Vejamos alguns exemplos colhidos em publicações
recentes:
"The clinical evidence in support of these claims
is anecdotal... [1]
"Treatment methodology is chosen based on anecdotal
experience...[2]
"Liver abnormalities seem a very rare association
in Turner's syndrome, only reported in a few anecdotal cases". [3]
"For many years anecdotal case reports have suggested
that pancreatic cancer aggregates in same families". [4]
"Anecdotal reports claim the vitamin E speeds wound
healing and improves the cosmetic outcome of burns and other wounds".[5]
"Anecdotal long term survival of patients with unresectable
liver metastases treated with systemic chemotherapy has been reported".[6]
Em dicionários especializados da língua inglesa, o significado de anecdotal como termo médico acha-se bem definido: Vejamos três deles:
CHURCHILL'S MEDICAL DICTIONARY
Anecdotal. Based on casual observation rather than
systematic study or controlled scientific experimentation."[7]
DORLAND'S ILLUSTRATED MEDICAL DICTIONARY
"Anecdotal. [Gr. anekdotos not published] based
on description of unmatched individual cases rather than on controlled
studies."[8]
SEGEN, J.C. - (The dictionary of modern medicine)
"Anecdotal. Unsubstantiated, as in anecdotal patient response
to unproven cancer therapy, or anecdotal cause-an-effect relationship between
a noxious environmental element and clinical diseases" [9]
Anecdotal tem sido traduzido em português
por anedótico. Seria uma tradução correta?
Tanto anecdotal em inglês, como anedótico
em português provêm do francês
anecdote, que,
por sua vez remonta ao grego anékdota,
plural
neutro do adjetivo anékdotos, formado
do prefixo an, negação, e ékdotos, publicado.
Etimologicamente, portanto, significa não publicado, inédito;
ékdotos,
por seu turno, formou-se do prefixo ek, para fora +
dotos,
do verbo dídomi, dar, oferecer. [10,11]
Acompanhando-se a evolução semântica
da palavra anedota em nosso idioma, verifica-se que, inicialmente,
o seu significado era conforme à sua etimologia. Assim, encontra-se
no dicionário de Moraes, de 1813, a seguinte definição:
"Anecdóta, s. f. Historia, ou successo, que
estava escondido, não sabido, não publicado".[12]
Assim também no dicionário de Constâncio,
de 1845:
"Anecdota, s. f. (do Gr. an,
privativo,
e ékdotos,
de
ek,
ex
Lat.
e dídomi,
dar, contar), narração
de successo não publicado ainda, successo ignorado, ainda não
divulgado".[13]
O sentido de jocosidade, de burlesco, da palavra
anedota, começa a aparecer a partir do léxico de Domingos
Vieira, de 1871, que registra uma segunda acepção, a de "conto
engraçado".[14]
As duas acepções vão sobreviver,
porém, na linguagem falada e mesmo na escrita a nova acepção
vai aos poucos eclipsando a primeira.
Cândido de Figueiredo, já na primeira
edição de seu dicionário (1899) define anecdota como
"narração rápida de um fato jocoso; particularidade
divertida, histórica ou imaginária", não mencionando
a primitiva acepção.[15]
Daí por diante vai prevalecer para anedota
o sentido de historia curta e divertida, de facécia, de pilhéria.
Nos dois mais modernos léxicos da língua
portuguesa, que são o Michaelis e o Aurélio século
XXI, encontram-se as seguintes definições para anedota
e
anedótico.
No Michaelis:
"anedota sf (gr anékdotos)1.
Relato abreviado de uma particularidade histórica. 2. No uso mais
comum, historieta de efeito cômico; pilhéria, piada.
A.
gráfica: cartum.
"anedótico adj (anedota + -ico2).
Pertencente ou relativo a anedota. 2. Que contém anedotas. 3. Fútil.
4. Grotesco."[16]
No Aurélio:
"anedota. [Do gr. anékdotos,
'inédito',
pelo fr. anecdote.] S.f. 1. Relato sucinto de um fato jocoso ou
curioso. 2. Particularidade engraçada de figura histórica
ou lendária. 3. P.ext. Piada (3).
"anedótico. [De anedota + -ico2.]
Adj. Relativo a, ou que encerra anedota".[17]
Com a evolução semântica que
se operou em relação à palavra anedota, anedótico
em português esvaziou-se de seu sentido primitivo, do qual procede
o significado de anecdotal na terminologia médica da língua
inglesa.
Ao traduzir anecdotal para o português
devemos transmitir a idéia de que se trata de um fato não
documentado, sem credibilidade do ponto de vista científico, e não
de uma pilhéria ou de um relato de efeito cômico, como sugere
o adjetivo anedótico em português.
Referências bibliográficas
1. PRESCOTT, L.F. - Paracetamol, alcool and the liver.
Brit.
J. Clin. Pharmacol. 49: 291-301, 2000
2. VELMAHOS, G.C., GOMEZ, H., FALABELLA, A., et al. -
Operative management of civilian rectal gunshot wounds: simpler is better.
World
J. Surg. 24: 114-118, 2000
3. FLOREANI, A., MOLARO, M., BARAGIOTTA, A., et al. -
Chronic cholestasis associated with Turner's syndrome. Digestion 60:
587-589, 1999.
4. HRUBAN, R.H., PETERSEN, G.M., GOGGINS, M., et al.
Familial pancreatic cancer. Ann. Oncol. 10 supl.4 69-73, 1999.
5. BAUMANN, L.S., SPENCER, J. - The effects of topical
vitamin E on the cosmetic appearance of scars. Dermatol. Surg. 25: 311-315,
1999.
6. MERIMSKY, O., TERRIER, P., STANCA, A. et al. Liver
metastases from extremity soft tissue sarcoma. Am. J. Clin. Oncol. 22:
70-72, 1999
7. CHURCHILL'S MEDICAL DICTIONARY. New York, Churchill
Livingstone, 1989.
8. DORLAND'S ILLUSTRATED MEDICAL DICTIONARY, 28.ed. Philadelphia,
W. B.Saunders Co., 1994.
9. SEGEN, J.C. - The dictionary of modern medicine. Basel,
Ed. Roche, 1994
10. OXFORD ENGLISH DICTIONARY (Shorter), 3.ed. Oxford,
Claredon Press, 1978.
11. BAILLY, A.: Dictionnaire grec-français, 16.
ed. Paris, Lib. Hachette, 1950.
12. MORAES SILVA, A. - Dicionário da língua
portuguesa. Lisboa, Typographia Lacerdina, 1813.
13. CONSTANCIO, F.S. - Novo dicionário crítico
e etimológico da língua portuguesa, 3.ed. Paris, Angelo
Francisco Carneiro, 1845.
14. VIEIRA, D. - Grande dicionário português
ou Tesouro da língua portuguesa.Porto, Ernesto Chardron e Bartholomeu
H. de Moraes, 1871-1874.
15. FIGUEIREDO, C. - Novo Dicionário da Língua
Portuguesa. Lisboa, Ed. Tavares Cardoso & Irmão, 1899.
16. MICHAELIS: Moderno dicionário da língua
portuguesa. São Paulo, Cia. Melhoramentos,1998.
17. FERREIRA, A.B.H. - Novo dicionário da língua
portuguesa, 3.ed., Rio de Janeiro, Ed. Nova
Fronteira, 1999
18. HOUAISS, A. Elementos de bibliologia. Rio de Janeiro,
Instituto Nacional do Livro, 1967
19. ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS: Vocabulário
ortográfico da língua portuguesa, 3. ed. Rio de Janeiro,
Imprensa
Nacional, 1999.