O ATO MÉDICO ATRAVÉS DA HISTÓRIA
Definição
e conceito do ato médico
O ato médico deve
ser definido como todo procedimento da competência e responsabilidade
exclusivas do médico no exercício de sua profissão,
em benefício do ser humano individualmente ou da sociedade como
um todo, visando à preservação da saúde, a
prevenção das doenças, a identificação
dos estados mórbidos, o tratamento e a reabilitação
do enfermo.
A função principal
do médico, em toda a história da humanidade, tem sido a de
cuidar e tratar dos enfermos, quando melhor se caracteriza o ato médico.
Nesta função o ato médico consiste basicamente na
formulação do diagnóstico e na instituição
do tratamento mais indicado para o paciente.
A formulação
do diagnóstico deve fundamentar-se na história clínica
passada e presente do paciente, ou seja, na anamnese, no exame físico
do paciente, na evolução do quadro clínico e na interpretação
crítica dos exames complementares porventura necessários,
sejam estes exames de laboratório, registros gráficos ou
métodos de imagem. Firmado o diagnóstico sindrômico
e, se possível, etiológico, o ato médico seguinte,
o de maior responsabilidade, consiste na tomada de decisão quanto
à melhor conduta terapêutica a ser seguida, que poderá
ser de ordem clínica, cirúrgica, ou mesmo psiquiátrica.
Em muitas ocasiões,
o paciente poderá necessitar do concurso de um especialista, ou
ser hospitalizado, ou submetido a uma intervenção cirúrgica
ou a procedimentos invasivos que encerram algum risco calculado.
Nos casos de tratamento
clínico a prescrição é da competência
e responsabilidade exclusivas do médico, muito embora a sua execução
possa ser efetuada por outro profissional da área de saúde.
Em qualquer caso, o paciente
deve receber a orientação e os esclarecimentos necessários
sobre a sua doença, respeitando-se a sua autonomia em decidir se
aceita ou não as medidas propostas, tanto na fase de elaboração
do diagnóstico, quanto do tratamento.
Finalmente, o ato médico
mais enaltecedor é o do profissional que reconhece as suas próprias
limitações ou dos equipamentos de que dispõe para
a condução do caso e encaminha o paciente a um serviço
mais bem aparelhado em recursos humanos e técnicos, que possam proporcionar-lhe
o que de melhor a medicina possa oferecer-lhe.
O ato médico, tal
como foi conceituado, não deve confundir-se com os procedimentos
de outros profissionais que atuam na área de saúde, sejam
de nível médio ou superior. O médico se distingue
dos demais profissionais da área de saúde por sua formação
acadêmica de maior amplitude e abrangência, que o capacita
a ter uma visão global do organismo humano em sua totalidade, desde
a sua estrutura anatômica ao funcionamento dos diferentes órgãos;
a conhecer a natureza dos agentes patogênicos; a ter a percepção
de sinais e sintomas que possam indicar alterações da saúde
e conduzir ao diagnóstico de uma doença ou de uma lesão
inaparente.
Impossível alcançar
esta visão sem a aquisição de conhecimentos fundamentais
de anatomia normal e patológica, fisiologia, fisiopatologia, farmacologia,
semiologia, clínica médica e cirúrgica, doenças
infecciosas e parasitárias, ginecologia e obstetrícia, pediatria,
epidemiologia, medicina preventiva e social, medicina legal e psiquiatria.
Não importa o número
e a classificação das disciplinas que compõem a grade
curricular do curso médico nas diferentes faculdades; o essencial
é que durante o curso de graduação o médico
tenha adquirido o lastro de conhecimentos necessários ao exercício
da medicina, qualquer que seja a especialidade que escolher. O especialista,
sem esta base comum em sua formação deixa de ser um médico
e passa a ser um técnico. A par disso, espera-se que tenha assimilado
durante o curso o comportamento ético e a noção de
responsabilidade inerentes à profissão médica e que
esteja consciente da necessidade de manter-se permanentemente atualizado,
já que a medicina não cessa de progredir e de oferecer novos
recursos diagnósticos e terapêuticos.
O desenvolvimento da medicina
levou à sua fragmentação em diferentes especialidades.
Esta é uma contingência histórica com a qual temos
de conviver e saber tirar proveito em favor dos pacientes. Todavia, qualquer
que seja a especialidade escolhida ou as habilidades que tenha de adquirir
para as tarefas que lhe cabe executar, o médico especialista deverá
considerar-se integrante de uma equipe em busca de um diagnóstico
ou da melhor conduta terapêutica a ser instituída, compartilhando
dos deveres e das responsabilidades de toda a equipe.
Esboça-se atualmente
em vários países a política de incentivo à
formação do médico geral ou clínico geral no
mesmo patamar de valorização do especialista, ou seja em
nível de pós-graduação. Neste sentido, o médico
geral seria a primeira instância a quem deveria recorrer o enfermo,
que seria encaminhado, sempre que necessário, ao especialista mais
indicado.
A participação
da enfermeira ou de outro profissional da área de saúde na
execução do ato médico não exime o médico
da sua inteira e total responsabilidade por qualquer dano causado ao paciente.
Evolução histórica do ato médico
Nos tempos primitivos, em
que a medicina tinha o caráter mágico-sacerdotal, e as doenças
eram atribuídas a causas sobrenaturais, o ato médico consistia
de magias, ritos e encantamentos de toda ordem, associados a práticas
empíricas tradicionais.
Somente no século
V a.C., com o surgimento da medicina hipocrática na Grécia,
foi a mesma separada da religião, das crenças irracionais
e do apelo ao sobrenatural. Desde então, por caminhos tortuosos,
com avanços e recuos, chegou à Idade Média, quando
tiveram início os cursos médicos oficiais. Até então,
o ensino da arte médica era informal e se fazia de mestre a aluno
através das gerações, como consta do juramento de
Hipócrates.
Conforme ressaltou Bullough,
em seu livro The development of medicine as a profession, a medicina
só foi institucionalizada a partir da Idade Média, após
a fundação da escola de Salerno e das primeiras universidades
européias1. Dentre elas teve atuação destacada
a de Pádua, onde se formaram e ensinaram grandes personagens que
revolucionaram a medicina, como Vesalius, Morgagni, Harvey e outros.
Também na medicina
árabe do oriente, que se encontrava em seu apogeu em plena Idade
Média, houve preocupação com a institucionalização
e fiscalização da profissão médica e, no ano
931 d.C., as autoridades governamentais promoveram em Bagdá o primeiro
exame público para credenciamento dos médicos em exercício.
Diz a história que compareceram a este exame 860 candidatos.2
Embora na antigüidade
clássica, alguns procedimentos cirúrgicos fossem executados
por médicos, a cirurgia permaneceu relegada a segundo plano por
muitos séculos, entregues a profissionais sem formação
acadêmica, os chamados cirurgiões-barbeiros. A Universidade
de Paris chegou ao ponto de proibir aos médicos, sob juramento,
a prática da cirurgia.
Somente no século
XIX, após a descoberta da anestesia geral, a introdução
da antissepsia por Lister e a descoberta dos microorganismos patogênicos
responsáveis pela infecção pós-operatória,
a cirurgia foi reintegrada à medicina e adquiriu o status de
uma de suas mais importantes especialidades.
A separação
legal entre a medicina e a farmácia como profissões independentes
se processou gradualmente a partir da Idade Média e com características
próprias em cada país. Em nenhum caso, entretanto, se permitiu
atribuíu legalmente ao farmacêutico a prescrição
de medicamentos, considerada um ato privativo do médico.3
A odontologia, por sua vez,
remonta à antigüidade e sua vinculação à
medicina é menos evidente do que no caso da farmácia. A extração
de dentes não constituía uma atividade própria dos
médicos e sim dos cirurgiões-barbeiros.
A moderna odontologia teve
o seu berço na França, no século XVIII, com o médico
Pierre Fauchard, cognominado "pai da moderna odontologia", quem inovou
as técnicas e o instrumental usado pelos dentistas. Viveu de 1678
a 1761, tendo escrito um tratado sobre patologia oral, intitulado Le
chirurgien dentiste, que serviu de guia para o desenvolvimento
da especialidade no continente europeu.4
As primeiras escolas de
odontologia, independentes de cursos ministrados em escolas médicas,
foram fundadas no século XIX nos Estados Unidos e na França,
o que conferiu à odontologia a condição de profissão
autônoma de que goza atualmente. Em alguns países, no entanto,
como em Portugal e na Itália a odontologia ainda é considerada
uma especialidade médica e o odontólogo deve ser médico
antes de se dedicar à odontologia.
O profissional que mais
de perto sempre colaborou com a profissão médica na realização
do ato médico é o enfermeiro. É comum nos referirmos
à enfermeira em lugar de enfermeiro, tendo em vista o predomínio
do sexo feminino na profissão. Sua condição de profissão
de nível superior é relativamente recente e teve origem na
Inglaterra a partir da fundação da primeira escola de enfermagem
por Florence Nightingale, em 1860, após a guerra da Criméia.5
A profissão de enfermagem
tem adquirido crescente prestígio por sua atuação
cada vez mais ampla em todos os setores de saúde onde atua, em especial
nos estabelecimentos hospitalares. A profissão de enfermagem conta
hoje com o concurso de profissionais de nível médio, técnico
e auxiliar de enfermagem, podendo dedicar-se a tarefas de maior complexidade
e responsabilidade.
As demais profissões
da área de saúde têm, todas, uma interface com a medicina,
gozando de maior ou menor autonomia de ação em sua área
de trabalho, na dependência da legislação e regulamentação
vigentes em cada nação.
O ato médico no Brasil
No Brasil, a presença
atuante do médico só se tornou realidade no século
XIX. Lycurgo Santos Filho, em sua História Geral da Medicina
Brasileira, dá-nos um retrato fiel do que foi a medicina
no período colonial.
Pouquíssimos eram
os médicos que aqui aportavam. Eram chamados físicos e tidos,
em sua maioria, como cristãos-novos, ou seja, judeus recém-convertidos
ao catolicismo para fugir à Inquisição. Em maior número
vieram os cirurgiões, dos quais havia três categorias: os
"cirurgiões-barbeiros", os "cirurgiões aprovados" e os "cirurgiões
diplomados". Predominavam os "cirurgiões-barbeiros", que praticamente
monopolizavam a prática da medicina nos séculos XVI e XVII.
Logo os nativos, quase sempre mestiços ou mulatos, aprenderam o
ofício e se tornaram também "cirurgiões-barbeiros".
Sem nenhum preparo, iniciavam-se como aprendizes e após alguma prática
eram examinados e recebiam a carta que os habilitava ao exercício
da profissão. Praticavam tratamento de fraturas e luxações,
curavam feridas, faziam sangria, aplicavam ventosas e sanguessugas e extraíam
dentes.
Tiveram papel relevante
no atendimento médico à população, tanto indígena
como de escravos e colonizadores, os jesuítas e os boticários.
Como não havia ainda cursos de farmácia, os boticários
aprendiam o ofício nas próprias boticas, prestavam exame
perante o físico-mor e recebiam carta de habilitação.
Para a manipulação dos remédios, baseavam-se em coleções
manuscritas de receitas e, a partir do final do século XVIII, na
Farmacopéia Geral de Portugal, impressa em 1794. Na ausência
de médico, o boticário prescrevia ele mesmo a medicação,
tal como ainda hoje ocorre com o farmacêutico nas pequenas localidades
do interior.
Além das categorias
já mencionadas, havia ainda o "barbeiro", o mais humilde dos profissionais.
Além do corte de cabelo e barba, fazia sangria, aplicava ventosas,
sanguessugas e clisteres, lancetava abscessos e fazia curativos. Era muito
procurado pela faixa mais pobre da população. Os partos ficavam
entregues às "comadres" (parteiras sem nenhum preparo) e por toda
parte enxameavam os curandeiros e charlatães de toda ordem.6
Esta situação
só começou a se modificar com a vinda de D. João VI
para o Brasil, quando foram criadas, em 1808, as duas escolas médico-cirúrgicas,
uma na Bahia e outra no Rio de Janeiro. Na realidade, somente a partir
de 1832, quando as duas escolas foram transformadas em Faculdades de Medicina,
começaram a se formar médicos brasileiros, os quais, aos
poucos foram assumindo o exercício da medicina em concorrência
com os "cirurgiões-barbeiros" e os curandeiros. As famílias
mais abastadas mandavam seus filhos estudar na Europa e muitos médicos
brasileiros formaram-se em Coimbra, Slamanca, Montpelier e Edinburgh.
O número de médicos
no Brasil só aumentou no século XX, com a criação
de novas escolas médicas. Em 1900 havia no País apenas três
faculdades de medicina: a do Rio de Janeiro, a de Salvador, e a de Porto
Alegre, esta última fundada em 1898. Em 1950 já eram 15,
que diplomavam cerca de 2.000 médicos por ano.
A enfermagem era tradicionalmente
exercida pelas Irmãs de Caridade nas Santas Casas de Misericórdia
existentes nas principais cidades e, nos hospitais particulares, por atendentes
treinadas em serviço. O curso superior da moderna enfermagem só
teve início em 1921 por iniciativa de Carlos Chagas, quando Diretor
do Departamento Nacional de Saúde, com a fundação
da Escola Ana Neri, que serviu de modelo para as demais.
A classe médica,
até os anos 50, sempre se conduziu como profissão liberal,
sem tomar consciência da necessidade de se organizar como categoria
profissional na defesa de seus mais legítimos interesses e da própria
profissão.
A Associação
Médica Brasileira, fundada em 1951, tomou iniciativa nesse sentido
quando organizou o seu I Congresso na cidade de Ribeirão Preto,
em 1956, sob a liderança do Prof. Hilton Rocha e Jairo Ramos. Houve
inicialmente a tentativa de se fundar a Ordem dos Médicos, à
semelhança da Ordem dos Advogados, mas a idéia não
vingou e foi substituída pela dos Conselhos de Medicina, Federal
e Regionais, criados no governo do Presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira
pela lei 3.268, de 30 de setembro de 1957.
Somente a partir do funcionamento
dos Conselhos, a classe médica passou a contar com um fórum
adequado para discussão das questões éticas da medicina.
A interface da medicina com as demais profissões da área de saúde.
O desenvolvimento da medicina,
aliado ao crescimento da população e à maior demanda
por serviços públicos e privados de atenção
à saúde fez com que surgissem várias outras profissões
na área de saúde, além da medicina, farmácia,
odontologia e enfermagem.
O número, as denominações
e as atribuições de cada uma dessas profissões variam
com a legislação de cada país. No Brasil, conforme
levantamento realizado por Girard e col.,7 são reconhecidas
atualmente 14 categorias de profissionais de nível superior e 43
de nível médio na área de saúde. De nível
superior são os médicos, farmacêuticos, odontólogos,
enfermeiros, médicos veterinários, biólogos, biomédicos,
nutricionistas, fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais, fonoaudiólogos,
profissionais em educação física, psicólogos
e assistentes sociais.
Das 43 profissões
de nível médio que atuam na área de saúde,
somente oito têm legislação específica. São
elas: técnico em enfermagem, auxiliar de enfermagem, visitador sanitário,
técnico em radiologia, técnico em óptica, técnico
em laboratório de prótese dentária, massoterapeuta
e técnico em segurança do trabalho. As demais foram reconhecidas
através de pareceres, resoluções e portarias.
A tendência é
de seu número aumentar no futuro, tanto as profissões de
nível superior como as de nível médio, em decorrência
da subdivisão do trabalho a setores cada vez mais restritos, tal
como está acontecendo com as especialidades médicas.
A regulamentação
legal das profissões de nível superior de criação
mais recente deixam a desejar no tocante aos direitos, atribuições,
deveres e limitações dos profissionais nas suas respectivas
áreas de atuação. Na realidade, transferem ao Conselho
Federal e aos Conselhos Regionais de cada uma delas a competência
de promover sua auto-regulamentação em seus Códigos
de Ética e resoluções normativas da própria
corporação.
Com esta sistemática
era de prever-se a ocorrência, como já tem ocorrido, de pontos
de atrito por superposição de funções, meios
e modos de atuar. Sendo profissões autônomas de nível
superior, devem ser consideradas no mesmo nível da profissão
médica e não subordinadas a esta, porém com a competência
de cada uma delas regulamentada em em lei. A definição das
atribuições exclusivas do médico está sendo
objeto de um projeto de lei em tramitação no Congresso Nacional.
Em nosso entendimento, todas
as profissões que atuam na área de saúde são
dignas, úteis e necessárias e não surgiram por acaso;
são fruto do atual estádio da civilização e
muito podem contribuir para o bem-estar da população, tanto
na preservação da saúde, como no tratamento e recuperação
dos enfermos. Devemos todos trabalhar em harmonia visando ao bem comum.
Referências bibliográficas
1- BULLOUGH, V.L., The development of medicine as a profession.
Basel, S.Karger, 1966
2- MAJOR, R.H., A history of medicine. Oxford, Blackwell
Scientific Publications, 1954.
3- COWEN, D. L.; HELFOND, W. W., Pharmacy. An ilustrated history,
New York, N. Abrams Inc., 1988.
4- RING, M. E., História Ilustrada da Odontologia (trad.),
São Paulo, Ed. Manole Ltda., 1998
5- MOLINA, T. M., Historia de la Enfermeria, 2a. ed., Buenos Aires,
Intermedica Ed., 1973.
6- SANTOS FILHO, L. – História geral da medicina brasileira.
São Paulo, Hucitec/Edusp, 1991
7- GIRARDI, S.N., FERNANDES JR., H., CARVALHO, C.L. – A regulamentação
das profissões de saúde no Brasil. Internet, disponível
em
http://www.ccs.uel.br/espacoparasaude/v2n1/RPSB.htm
Adaptado da entrevista ao jornal do Conselho Federal de Medicina,
setembro de 2001.
Joffre M de Rezende
Prof. Emérito da Faculdade de Medicina da Universidade
Federal de Goiás
Membro da Sociedade Brasileira de História da Medicina
e-mail: pedro@jmrezende.com.br
http://www.jmrezende.com.br