A CRENÇA NA AUTO-INTOXICAÇÃO POR ESTASE INTESTINAL
E SUA HISTÓRIA
A crença de que as
fezes contêm substâncias tóxicas para o organismo e
de que estas podem ser absorvidas e causar doenças remonta aos antigos
egípcios. No papiro Anonimo Londinense encontra-se o seguinte
trecho:
"Em sua maneira de viver, têm o costume de purgar-se todos os meses do ano, por três dias consecutivos, procurando viver com saúde a custa de eméticos e clisteres, persuadidos de que todos os achaques e enfermidades do homem procedem dos alimentos." [2]
No papiro de Ebers há pelo menos 12 receitas de purgativos, destinados a "liberar o ventre e expelir todas as coisas más que estão no corpo do doente".[3]
Sobre o clister havia a lenda
de que a íbis, ave sagrada dos egípcios, praticava
em si mesma a limpeza da cloaca enchendo o bico de água e introduzindo-o
através do ânus.[4][5] Skinner lembra que o deus Thoth,
da mitologia egípcia, era representado com a cabeça da íbis
e
poderia ser ele, e não a ave, que ensinara o uso do clister para
limpeza do reto.[6]
Estas idéias e conceitos
etiopatogênicos dos egípcios trasladaram-se para a medicina
grega, de início para a escola de Cnidos e, a seguir, para a escola
hipocrática de Cós . Eurifos de Cnidos substituíu
o termo hieroglífico oukhedou pela palavra grega peritomata,
cujo sentido é o de "resíduos".[1]
A crença nos efeitos
benéficos da lavagem intestinal no tratamento das doenças
e como medida higiênica visando preservar a saúde parece ser
intuitiva e comum a várias culturas, que se desenvolveram isoladamente,
sem comunicação entre si.
Na civilização
azteca, por exemplo, as lavagens eram muito utilizadas, sendo designadas
por Notepamaca. Os araucanos, na América do Sul, usavam para
a administração de enemas bolsas fabricadas com estômago
ou bexiga urinária. [7]
Na África Central,
o instrumento utilizado era feito com uma cabaça em forma de funil,
com um orifício na extremidade afilada. O líquido, previamente
colocado no interior do recipiente era injetado, soprando-se na outra extremidade
alargada. A superfície externa da cabaça era decorada com
desenhos artísticos. [8].
Entre os indígenas brasileiros
também era comum o uso de purgativos e de clisteres antes da chegada
dos colonizadores portugueses.[9]
Na medicina hipocrática
o uso de purgativos e clisteres baseava-se em um conceito mais elaborado
de enfermidade, qual seja o desequilíbrio dos humores.
A definição
de humor (khymós, em grego) era de um constituinte básico
do organismo, necessário à manutenção da vida
e da saúde. Inicialmente, o número de humores era indefinido;
posteriormente, seu número reduziu-se a quatro: sangue, fleuma,
bile amarela e bile negra, tal como se encontra no livro Da natureza
do homem, da coleção hipocrática, livro este atribuído
a Polibos, genro de Hipócrates. [10].
O estado de saúde
dependeria da exata proporção e da perfeita miscigenização
dos quatro humores, que poderiam alterar-se por ação de causas
externas ou internas. O excesso ou deficiência de qualquer dos humores,
assim como o seu isolamento ou mistura inadequada, causariam as doenças
com o seu cortejo sintomático.
A recuperação
do enfermo se daria pela eliminação do humor excedente ou
alterado. O médico pode auxiliar as forças curativas da Natureza,
retirando do corpo o "humor em excesso" ou o "humor vicioso", a fim de
restaurar o equilíbrio. Com este objetivo, foram adotados os mesmos
métodos terapêuticos dos egípcios: sangria, purgativos,
eméticos e clisteres.
A doutrina dos quatro humores
foi revitalizada por Galeno no século II d.C.
Depois de Hipócrates,
Galeno foi o personagem que maior influência exerceu no curso da
História da Medicina. Seus ensinamentos, contidos na extensa obra
que deixou escrita, foram aceitos como definitivos e intocáveis
durante a Idade Média, até o Renascimento, ou seja, cerca
de 1.300 anos.
Galeno não somente
aceitou a doutrina da patologia humoral com os seus quatro humores, como
a expandiu em seus desdobramentos relativamente à patologia e à
terapêutica. A preocupação em retirar do corpo o conteúdo
nocivo que estaria causando a doença, para a recuperação
da saúde do enfermo, tornou-se um dogma. E, para alcançar
este objetivo nada melhor do que a sangria, os purgativos, vomitórios
e lavagens intestinais. Secundariamente poderiam ser usados também
os revulsivos, como a ventosa, e os sudoríferos. [11]
No período de obscurantismo
da Idade Média em que a medicina se estagnou na Europa, floresceram
no Oriente, entre os povos persas e árabes, importantes centros
de estudos médicos como Jundi Shapur, Ispahan e Bagdá. As
obras de Aristóteles, Hipócrates e Galeno, entre outras,
foram traduzidas para o árabe.
O maior expoente da medicina
nesse período foi Avicena, que viveu de 980 a 1037 d.C. Avicena
resumiu toda a ciência médica de sua época, acrescida
de observações próprias, em um tratado denominado
Canon
da medicina. Este tratado foi posteriormente traduzido para o latim
e serviu por muito tempo como livro-texto, ao lado das obras de Hipócrates
e Galeno, nos países europeus.
Avicenna esposou a doutrina
da patologia humoral e dos quatro humores, dedicando um capítulo
sobre O uso dos eliminantes: purgação, emese, ventosas,
flebotomia e sanguessugas. Neste capítulo, os purgativos ocupam
o primeiro lugar na hierarquia dos eliminantes, como demonstra a seguinte
passagem :
"Quando o laxativo deixa
de agir e induz o aparecimento de dores em cólica, desconforto abdominal
e o paciente sente-se mal, com alterações da visão,
tonturas e cefaléia, devemos recorrer aos enemas e supositórios..."
"Se o enema é
ineficaz e aparecem sintomas mais graves, como rigidez, movimento dos globos
oculares ou ânsia de vômito, então a sangria torna-se
necessária". [12]
Avicenna descreveu, para
administração de clister, uma garrafa de couro que se comunicava
com um tubo, instrumento este que também foi usado Império
Romano.[6]
Embora mantida na Idade
Média, quando as maiores preocupações deixaram de
centrar-se no corpo e seu funcionamento e se deslocaram para o plano espiritual
ou retornaram ao misticismo primitivo, houve um arrefecimento da teoria
da auto-intoxicação até o século XVI. A sangria,
os purgativos e as lavagens intestinais, todavia, continuaram a ser os
principais recursos terapêuticos utilizados pelos médicos
no tratamento das mais diversas doenças. O uso dos purgativos se
justificava ainda como medida profilática, sobretudo nos casos de
obstipação intestinal, em que, pelo menos teoricamente, é
maior a absorção das supostas toxinas fecais. A obstipação
passou a ser combatida de modo obsessivo e a ela se atribuíam os
mais diversos males e sintomas decorrentes da auto-intoxicação,
especialmente o "mau humor" das pessoas.
Os séculos XVII e XVIII foram o período de maior abuso dos
purgativos, clisteres e sangria, especialmente na França. Bouvard,
primeiro médico de Luis XIII, que reinou de 1610 a 1643, aplicou
212 clisteres e sangrou seu real cliente 47 vezes .[5]
Luis XIV, que teve um reinado
de 52 anos (1643-1715), bem mais longo do que o do seu antecessor, chegou
a tomar purgativos, prescritos por seus médicos, cerca de 2.000
vezes. [5] Durante o seu reinado, o uso de clisteres tornou-se generalizado
e muitas damas chegavam a tomar mais de um clister no mesmo dia, perfumando
a água com rosas, laranja, bergamota e angélica.[6]
A aplicação
de clisteres, na maioria das vezes, não era função
do médico e sim dos boticários, que se especializavam nessa
prática e obtinham um bom rendimento com a mesma. O instrumento
utilizado era uma seringa com capacidade para conter a quantidade desejada
de líquido, o qual era injetado no reto, sob pressão, comprimindo-se
o êmbolo ou pistão. Posteriormente a seringa foi substituída
pelo irrigador, de metal esmaltado ou porcelana e, finalmente, pela bolsa
de borracha.
Voltaire, com a sua incomparável
verve, responsabilizou a "prisão de ventre" de alguns personagens
famosos por importantes acontecimentos históricos, conforme se lê
em seu conto Os ouvidos do conde de Chesterfield e o capelão
Goudman. Neste conto Voltaire expõe com detalhes a fisiopatologia
então aceita para explicar a auto-intoxicação e suas
conseqüências.
Três filósofos,
narra Voltaire, discutiam "qual o primeiro móvel de todas as ações
dos homens".
"Goudman, a quem sempre
lhe doera a perda de seu cargo e de sua bem-amada disse que o princípio
de tudo era o amor e a ambição. Grou que vira mais terras,
disse que era o dinheiro; e o grande anatomista Sidrac assegurou que era
a privada."
"Eis como o sábio
Sidrac provou a sua tese: - Sempre observei que todos os negócios
deste mundo dependem da opinião e da vontade de uma principal personagem,
seja o rei, ou o primeiro-ministro, ou alto funcionário. Ora, essa
opinião e essa vontade são o efeito imediato da maneira como
os espíritos animais se filtram no cérebro e daí até
a medula alongada; esses espíritos animais dependem da circulação
do sangue; esse sangue depende da formação do quilo; esse
quilo elabora-se na rede do mesentério; esse mesentério acha-se
ligado aos intestinos por filamentos muito delgados; esses intestinos,
se assim me é permitido dizer, estão cheios de fezes. Ora,
apesar das três fortes túnicas de que cada intestino está
revestido, é tudo perfurado como uma peneira; pois tudo na natureza
é arejado, e não há grão de areia, por imperceptível
que seja, que não tenha mais de quinhentos poros". "Que acontece,
então, a um homem com prisão de ventre? Os elementos mais
tênues, mais delicados de suas fezes se misturam ao quilo nas veias
de Asellius, vão à veia porta e ao reservatório de
Pecquet; passam para a subclávia; penetram no coração
do homem mais galante, da mulher mais faceira. É uma orvalhada de
fezes que se lhe espalha por todo o corpo. Se esse orvalho inunda os parênquimas,
os vasos e as glândulas de um atrabiliário, o seu mau humor
transforma-se em ferocidade; o branco de seus olhos se torna de um sombrio
ardente; seus lábios colam-se um ao outro; a cor do rosto assume
tonalidades baças. Ele parece que vos ameaça; não
vos aproximeis; e, se for um ministro de Estado, guardai-vos de lhe apresentar
um requerimento. Informai-vos hàbilmente de seu criado se Sua Senhoria
defecou pela manhã."
"Isto é mais importante
do que se julga. A prisão de ventre tem produzido às vezes,
as mais sanguinolentas cenas. Meu avô, que morreu centenário,
era boticário de Cromwell; contou-me muitas vezes que fazia oito
dias que Cromwell não ia à privada quando mandou degolar
o seu rei."
"Todas as pessoas um
pouco a par dos negócios do continente sabem que o Duque de Guise
foi várias vezes avisado de que não incomodasse Henrique
III no inverno, enquanto estivesse soprando o nordeste. Em tal época,
era com extrema dificuldade que o referido monarca satisfazia suas necessidades.
Suas matérias lhe subiam à cabeça; era capaz, então,
de todas as violências. O Duque de Guise não levou a sério
tão avisado conselho. Que lhe aconteceu? Seu irmão e ele
foram assassinados."
"Carlos IX, seu predecessor,
era o homem mais entupido do reino. Tão obstruídos estavam
os condutos de seu cólon e de seu reto, que por fim o sangue lhe
jorrou pelos poros. Bem se sabe que esse temperamento adusto foi uma das
causas da matança de São Bartolomeu".
"Pelo contrário,
as pessoas que têm bom aspecto, as entranhas aveludadas, o colédoco
fluente, o movimento peristáltico fácil e regular, que todas
as manhãs, depois de comer, se desobrigam de uma boa evacuação,
tão fàcilmente como os outros cospem; essas pessoas favoritas
da natureza são brandas, afáveis, graciosas, benevolentes,
serviçais. Um ‘não’ na sua boca tem mais graça do
que um ‘sim’ na boca de um entupido. Tal é o domínio da privada."[13]
A partir do século
XIX, depois de Pasteur e Koch, foram identificadas bactérias patogênicas
como agentes etiológicos de muitas doenças de causa até
então desconhecida. O entusiasmo pela microbiologia foi tamanho
que se chegou a pensar que, se não todas, pelo menos a maior parte
das enfermidades fossem produzidas por micróbios. Nesse contexto
era natural que se considerasse a auto-intoxicação intestinal
como resultante da ação de bactérias . Os resíduos
alimentares que formam as fezes são um excelente meio de cultura
e o cólon um ambiente apropriado ao crescimento e colonização
de numerosas espécies bacterianas, dentre as quais estariam aquelas
produtoras de toxinas.
Hoje sabemos que em determinadas
condições patológicas que debilitam a barreira mucosa,
as bactérias podem atravessar a parede do cólon, causando
peritonite espontânea e outras infecções viscerais.
[14][15] Na época, entretanto, toda preocupação estava
centrada na absorção das toxinas bacterianas.
A observação
clínica de que, na insuficiência hepática grave, o
fígado perde a sua função "desintoxicante" e manifesta-se
o quadro clínico da encefalopatia hepática constituía
uma evidência do acerto da teoria da auto-intoxicação,
sobretudo porque o paciente melhora com a aplicação de lavagens
intestinais.
A obstipação
com a estase fecal prolongada seria um fator condicionante de maior absorção
das toxinas, razão pela qual os laxantes deveriam ser usados, não
somente como tratamento, mas também como medida preventiva da auto-intoxicação.
Metchnikoff e seus discípulos
atribuíam às bactérias anaeróbias a putrefação
intestinal e consideravam o indol como a principal substância tóxica
produzida no intestino. O indol, entretanto, resulta principalmente do
metabolismo do grupo dos bacilos coliformes.[16]
Segundo Metchnikoff, a flora
anaeróbia é inibida pela flora acidófila produtora
de ácido lático e, nesse sentido, recomendava o uso habitual
de coalhada.
No início do século
XX, a doutrina da auto-intoxicação por estase intestinal
ganhou nova dimensão, alicerçada em argumentos pseudocientíficos
defendidos ou compartilhados por autores de prestígio na comunidade
médica. E com uma agravante: aos purgativos e clisteres acrescentou-se
o tratamento cirúrgico.
Com a descoberta dos raios-X
em 1895, tornou-se possível visualizar o trato gastrointestinal
em radiografias contrastadas, com o paciente de pé. Conforme ressaltou
Barclay, em 1936, a única anatomia a que os cirurgiões estavam
habituados era a do cadáver e dos livros-texto, em que as vísceras
são representadas com o corpo em posição horizontal.[17]
Os exames radiológicos
mostravam, muitas vezes, as vísceras abdominais com localização
topográfica e morfologia diferentes daquelas consideradas normais.
Além disso verificou-se que a mobilidade, o diâmetro e o tempo
de esvaziamento dos diversos segmentos do tubo digestivo não obedeciam
ao mesmo padrão.
Como os pacientes encaminhados
para exame radiológico eram sintomáticos, os sintomas por
eles apresentados passaram a ser atribuídos a pretensas anormalidades.
O estômago hipotônico e hipocinético, com a grande curvatura
alcançando a cavidade pélvica; o cólon transverso
descrevendo uma curva acentuada; o ceco móvel, o rim deslocado de
sua posição anatômica, indicavam, sem dúvida,
uma fixação deficiente que deveria ser corrigida pelo médico.
Assim surgiram as cintas e faixas para levantar as vísceras "caídas"
e as intervenções para fixação dos órgãos,
as "pexias": gastropexia, colopexia, nefropexia, histeropexia.
Admitia-se que as angulações
de alças, segmentos aparentemente subestenóticos, trânsito
lento, ou dolicocólon, constituíam obstáculos à
eliminação das fezes, propiciando a estase intestinal responsável
pela auto-intoxicação.
Além das "pexias",
outros tipos de intervenções cirúrgicas passaram a
ser praticados, tais como ressecções parciais, derivações,
e até mesmo colectomia total.
Por incrível que
pareça em nenhum momento se cogitou de investigar se as pessoas
normais, assintomáticas, apresentavam alterações semelhantes
às descritas nos pacientes sintomáticos.
Foi paladino do tratamento
cirúrgico para correção da estase intestinal Sr. Arbuth
Lane, renomado ciurgião inglês, autor do livro The operative
treatment of chronic intestinal stasis [18]. Segundo ele, o cólon
poderia ser comparado a um reservatório ou cano de esgoto que se
esvazia facilmente nos quadrúpedes. No homem, por ser bípede,
o trânsito é dificultado pela gravidade, ao tracionar os pontos
de fixação do intestino e produzir estrangulamentos.
O maior obstáculo
ao livre trânsito das fezes, segundo Lane, estaria situado na junção
retossigmoidiana, causa do alongamento e dilatação do cólon
sigmóide. O ceco móvel, por sua vez, poderia eventualmente
produzir angulação em relação ao íleo
terminal, assim como formação de aderências. A estase
ileal poderia ascender ao jejuno, ao duodeno e até ao estômago.
As conseqüências
da estase fecal, explicava Lane, são de ordem local e sistêmica.
A flora intestinal se modifica, com supercrescimento de bactérias
coliformes e anaeróbias produtoras de toxinas. Com o aumento da
pressão no interior do cólon, essas bactérias ascendem
e proliferam no intestino delgado, duodeno e até mesmo no estômago,
causando dispepsia e mau hálito.
A absorção
de toxinas bacterianas debilita o organismo, em especial a camada muscular
e a mucosa do estômago, resultando em ulceração gástrica,
duodenal e, eventualmente, câncer gástrico. Quando em pequena
quantidade, as toxinas absorvidas são eliminadas pelo fígado
e pelos rins; quando em maior quantidade, entretanto, seus efeitos sistêmicos
se fazem sentir.
Moynihan, outro grande cirurgião
contemporâneo de Lane, assim descreve o quadro clínico da
auto-intoxicação de maior gravidade:
"Trata-se geralmente de paciente do sexo feminino de aspecto doentio, esquálida, tórax achatado, hálito acre, mãos frias e pegajosas. A pele é áspera, de cor terrosa; presença de acne e suor malcheiroso. Queixa-se de dispepsia, dor após as refeições, flatulência e obstipação rebelde. Os músculos da parede abdominal são flácidos e atróficos e todas as vísceras que eles devem manter suspensas estão pendentes em maior ou menor grau. Psicologicamente, é comum haver completa ausência de alegria de viver; a paciente é mal-humorada, lamurienta e, por vezes desconfiada e introspectiva"[19]
Outras conseqüências
maléficas foram atribuídas à auto-intoxicação,
desde a calvície à epilepsia. Um autor relatou dois casos
de epilepsia curados pela colectomia parcial.
Lane raramente se contentava
com as "pexias", preferindo as operações de curto-circuito
(by pass), a colectomia parcial ou a colectomia total. Os
resultados pós-operatórios eram sempre bons:
"os doentes ganham peso e adquirem saúde, melhorando sua qualidade de vida. À apatia e languidez sucedem a alegria de viver e o interesse pelas coisas."[19]
As operações
de curto-circuito, as ressecções parciais e a colectomia
total para tratamento da estase intestinal foram recebidas com entusiasmo
na Europa e nos Estados Unidos e eram praticadas em centenas de hospitais,
com uma mortalidade operatória de, no mínimo, 16,5%, verificada
no Guy’s Hospital de Londres. [20]
Nem todos, entretanto, estavam
de acordo com a teoria da auto-intoxicação e o tratamento
cirúrgico da estase intestinal. Algumas vozes se levantaram contra.
Hertz, em 1913, e Einhorn,
em 1914, classificaram de absurda a teoria da auto-intoxicação.
"Se não precisássemos do cólon, que é um órgão de considerável comprimento", dizia Einhorn, "não o possuiríamos, ou ele teria se atrofiado, o que não ocorreu".[21]
Bassler, em 1914, advertiu
sobre a necessidade de um estudo mais aprofundado do assunto e atribuiu
os bons resultados proclamados pelos cirurgiões ao efeito placebo.[22]
Alvarez, em 1919, considerou
a teoria da auto-intoxicação um simples modismo, sem nenhuma
base científica.
"A moda, sob o manto da ignorância, muda como o vestuário. Diante de casos de difícil entendimento, temos sempre a tendência de recorrer a diagnósticos mal definidos, tais como ‘excesso de ácido úrico’, ‘malária tifóide’, ‘distúrbio do sistema nervoso autônomo'. É o que sucede atualmente com a fantasia da auto-intoxicação e da infecção focal".[23]
O mesmo autor demonstrou
que a cefaléia e a lassidão atribuídas à auto-intoxicação
poderiam ser produzidas colocando-se um tampão na ampola retal.
A simples retirada do tampão abolia os sintomas.
Com a eclosão da
I Grande Guerra (1914-1918) o interesse dos cirurgiões voltou-se
para os traumatismos e ferimentos e os clínicos passaram a ocupar-se
prioritariamente das disenterias, febre tifóide e outras doenças
epidêmicas que acompanham as guerras.[20]
Aos poucos, o tratamento
cirúrgico da estase intestinal foi sendo abandonado. Os conceitos
sobre a natureza das enfermidades foram se modificando graças ao
avanço dos conhecimentos de fisiologia e patologia, com imediato
reflexo na terapêutica. O uso de purgativos e clisteres, no entanto,
ainda persistiu por muito tempo.
O escritor Humberto de Campos
narra em seu livro de memórias que, na sua infância, era costume
aplicar clisteres nas crianças enfermas e descreve sua própria
experiência, relatando que ao receber um "clister de água
de pimenta com outros ingredientes corria para o mato e"..."ficava a olhar
com inveja os passarinhos...que não conheciam aqueles recursos da
medicina caseira." [24]
Na segunda metade do século
XX já não mais se usava a sangria e os clisteres e purgativos
perderam muito de seu prestígio. Todavia, em pleno século
XXI ainda perdura a crença nos benefícios advindos da limpeza
intestinal como meio de evitar as doenças e preservar a saúde.
O método atualmente adotado para tal fim denomina-se hidroterapia
do cólon ou colonterapia e utiliza-se de moderna tecnologia por
meio de aparelhos que injetam e removem automaticamente grande quantidade
de água no cólon, promovendo sua limpeza. Embora sem aprovação
da medicina oficial [25][26], é largamente usado como "medicina
alternativa" em vários países, especialmente nos EE.UU. e
paises europeus. A figura abaixo mostra quatro tipos desses aparelhos,
fabricados, respectivamente, na Itália(1), Espanha(2), Brasil(3)
e Inglaterra(4).
É aceito pela maioria
dos especialistas em gastroenterologia e coloproctologia que a limpeza
intestinal, seja por meio de purgativos, seja por lavagens, deve restringir-se
a determinadas situações clínicas, como na cirrose
hepática descompensada, nos casos de fecaloma, na pseudooclusão
intestinal, ou como preparo para exame radiológico ou endoscópico
do cólon, não se justificando o seu uso em indivíduos
normais como meio de conservar a saúde e evitar doenças.
Apesar disso, ela é utilizada em várias clínicas de
diversos países com essa finalidade. No Brasil, por intermédio
do Prof. Marcus Tulio Haddad, tomamos conhecimento da existência
em bairro nobre da cidade do Rio de Janeiro, de uma Clínica que
se propõe a combater a auto-intoxicação decorrente
da estase intestinal pela hidroterapia do cólon ou colonterapia.
De um folder dessa Clínica extraímos as seguintes
informações:
"Como nos alimentamos
em média 3 vezes ao dia, deveríamos evacuar de 2 a 3 vezes
ao dia, de preferência após cada refeição, devido
ao reflexo gastrocólico. Como isso não acontece pode-se acumular
grande quantidade de material fecal. Assim, os detritos que deveriam ser
eliminados permanecem no intestino grosso durante muito tempo gerando material
tóxico que será novamente absorvido pelo organismo, produzindo
uma ‘auto-intoxicação’ ou toxemia. Como resultado, são
desencadeados processos degenerativos que levam a desequilíbrios,
envelhecimento precoce e algumas doenças.".
As principais indicações
da hidroterapia do cólon, constantes do mesmo folder são:
"prisão de ventre, flatulência; em processos de desintoxicação;
estresse, cansaço, irritabilidade; auxiliar no tratamento da pele
(acne); prevenção do câncer do intestino; enxaquecas,
etc."
Há algumas falácias
nas razões alegadas para a prática da chamada colonterapia
ou hidroterapia do cólon. O organismo possui mecanismos fisiológicos
próprios de neutralização e eliminação
de possíveis toxinas endógenas; não é
função da mucosa do cólon absorver nutrientes,
mas apenas água; a digestão de proteínas e a
absorção de peptídios e aminoácidos se dá
no intestino delgado e não no cólon; a flora bacteriana normal
do cólon é necessária do ponto de vista biológico;
as fezes não permanecem aderidas à mucosa em pessoas sadias.
Por outro lado, os inconvenientes
da hidroterapia do cólon a considerar são o desconforto,
a possiblidade de introdução de microorganismos patogênicos,
a eventual absorção excessiva de água com desequilíbrio
hidroeletrolítico, e os traumatismos que podem ocorrer no reto.
Os reais benefícios não foram até agora cientificamente
comprovados e baseiam-se unicamente em relatos de casos, depoimentos pessoais,
opinião de médicos que utilizam o processo e muita divulgação
promocional.
O importante é o
funcionamento intestinal em ritmo regular, o que depende basicamente da
alimentação. A obstipação deve ser corrigida,
não com laxantes ou clisteres, mas com a ingestão de maior
quantidade de fibras vegetais, as quais podem ser suplementadas, quando
necessário, com medicamentos à base exclusivamente de fibras
naturais.
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Publicado na revista Brasília Médica, 40:33-32,
2003
Joffre M de Rezende
Prof. Emérito da Faculdade de Medicina da Universidade
Federal de Goiás
Membro da Sociedade Brasileira de História da Medicina
e-mail: pedro@jmrezende.com.br
http://www.jmrezende.com.br