POR QUE OS TRIATOMÍNEOS SÃO CHAMADOS DE "BARBEIROS"?
Joffre Marcondes de Rezende* e Anis Rassi*
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O inseto transmissor do Trypanosoma
cruzi, causador da doença de Chagas, recebeu no Brasil, em linguagem
popular sertaneja, vários nomes, conforme a região geográfica.
De todos eles, o mais comum nas regiões sudeste e centro-oeste,
é o de barbeiro, onde a doença de Chagas passou a
ser conhecida popularmente como "a doença do barbeiro".O próprio
Chagas usou a expressão "doença do barbeiro" em uma de suas
publicações. [1]
É de se admitir que
a denominação popular de "barbeiro" tenha sido inspirada
no comportamento do inseto, relacionando-o com a profissão de barbeiro.
Duas interpretações
são encontradas na literatura médica: a primeira, mais difundida,
é de que o triatomíneo suga o sangue das pessoas principalmente
na face, por ficar esta parte do corpo descoberta e, portanto, mais acessível
ao ataque. Estabelece-se, assim, uma relação de face com
barba e, desta, com a profissão de barbeiro. A segunda interpretação
é de que, sendo o triatomíneo inseto hematófago, ao
sugar o sangue de suas vítimas à noite, enquanto estas dormem,
pratica verdadeiras sangrias.
Até o século XIX, os profissionais barbeiros, além
de cortar o cabelo e a barba, tinham outras atribuições,
dentre as quais a de fazer sangrias por indicação médica
e, até mesmo, por conta própria. A sangria era, então,
uma panacéia universal que se aplicava a todas as doenças.
Esta atribuição conferida aos barbeiros vem desde a Idade
Média e era comum a todos os países europeus. Em Portugal,
"este ofício já tinha, no século XVI, regimento
próprio dado pelo Senado de Lisboa. Em 1604, Manoel Leitão
publicou uma obra curiosa cujo título é: 'Prática
de barbeiros em quatro tratados, em os quais se trata de como se há
de sangrar e as cousas necessárias para a sangria'..." [2]
No Brasil, relata Lycurgo
Santos Filho em sua "História geral da medicina brasileira",
"o barbeiro foi o indivíduo que, além de cortar o cabelo
e de fazer a barba, praticou a pequena cirurgia da época, isto é,
sangrou - e então foi chamado barbeiro sangrador, ou simplesmente
sangrador - escarificou, aplicou ventosas, sanguessugas e clisteres, lancetou
abscessos, fez curativos, excisou prepúcios, tratou de mordedura
de cobras, arrancou dentes, etc." "Esses humildes e os mais baixo colocados
entre os profissionais da medicina, existiram até o fim do século
XIX". "Em numerosas vilas e povoações, o barbeiro foi, por
muito tempo, o único profissional da medicina existente. Perito
na sangria, o máximo recurso terapêutico do passado, teve
ele sempre uma grande clientela." [3]
Conforme destacou Olympio
Fonseca Filho, Carlos Chagas utilizou as duas interpretações
em seus trabalhos iniciais.[4] No artigo escrito em alemão e publicado
na revista Archiv. für Schiffs-und Tropen Hygiene, em 1909,
assim se refere à origem do nome de barbeiro dado ao inseto: "Diese
Wanze saugt Blut, und zwar mit Vorliebe im Gesicht, weswegen sie beim Volke
"Barbier" (barbeiro) genannt wird..." (Este percevejo suga o sangue
de preferência no rosto, razão pela qual passou a ser chamado
popularmente barbeiro). [5]
Já no artigo publicado
em português, em 1910, na revista Brazil Médico, adota
a segunda interpretação e assim a justifica: "Denominavam-no
os naturaes da zona "barbeiro", nome este cuja razão inductiva nos
parece encontrar no facto de serem os barbeiros, especialmente no interior
do Paiz, incumbidos de praticar sangrias e aplicar sanguessugas, com objectivo
therapeutico. Nessa função de sangradores dos barbeiros encontrou
o povo um simile applicável às abundantes sucções
de sangue realizadas pelo insecto, dahi dando-lhe a denominação".[6]
Chama a atenção
neste trecho a expressão "...cuja razão inductiva...".
Tem-se a impressão de que Chagas empregou a primeira versão,
colhendo-a de terceiros. Com a sua lucidez, refletindo sobre a questão,
encontrou maior analogia entre o inseto e a profissão de barbeiro
no passado, no tocante à prática da sangria e não
a de fazer a barba.
Em trabalho posterior, publicado
em inglês em 1920, em uma nota de rodapé, faz o seguinte comentário:
"In portuguese barbero,
the native name for the infecting bug which bites the face".[7] (Em
português, barbeiro, nome popular do inseto transmissor, o
qual pica a face). Não há nesta nota nenhuma afirmação
de que o nome barbeiro (barbero, no original, certamente
por erro tipográfico) decorre do fato do inseto picar a face.
Como Chagas assinalou, "a
grande maioria das infecções agudas têm sido verificadas
em crianças, as mais das vezes no primeiro ano de existência".[8]
Em 28 casos agudos por ele descritos, com idade conhecida, a criança
mais idosa tinha quatro anos. O mesmo se verificou na casuística
de outros autores. No Centro de Estudos de Bambuí do Instituto Oswaldo
Cruz, segundo revisão feita por Dias, em 300 casos com período
inicial conhecido, 236 (78,6%) estavam na primeira década de vida.
[9] Mazza, na Argentina, refere que, dos 1.232 casos agudos reunidos pela
MEPRA (Misión de Estudios de Patologia Regional Argentina), 823
(66,8%) eram crianças com menos de 10 anos de idade.[10] Rassi et
al., em 1958, relataram 18 casos agudos, dos quais 11 (61,1%) tinham idade
abaixo de 10 anos.[11]
Ora, as crianças
e as mulheres são imberbes e a barba em homens adultos certamente
é um empecilho e não um atrativo para o inseto. Faz muito
mais sentido comparar a sucção de sangue pelo inseto com
o ato da sangria do que atribuir-lhe o nome de barbeiro simplesmente porque
a face das pessoas lhe é mais acessível.
Simone Kropf, pesquisadora
da Casa de Oswaldo Cruz e autora do melhor estudo até agora realizado
sobre a história da doença de Chagas, [12] cita duas frases
lapidares de Emmanuel Dias, que se completam e apontam para a correlação
entre o barbeiro e a sangria: "O caboclo dorme tranqüilo, ignorando
que o barbeiro que lhe chupa o sangue (o grifo é nosso)
traz consigo um germe invisível que lhe roubará a saúde
e a vida". "Em vista do grande número de triatomas que pode haver
nas cafuas (já vimos algumas com mais de 2.000!), imagine-se o mal
que isso representa para a pobre e desnutrida gente que mora nessa classe
de habitações".
"Os triatomíneos",
segundo
Lorenzo, sugam grandes quantidades de sangue que, dependendo da sua
fase de vida, podem atingir volumes equivalentes a 10 vezes o seu próprio
peso corporal. E isso tudo, em menos de 30 minutos!" [13]
Apesar de todas as evidências
que relacionam o inseto com a sangria e a aplicação de sanguessugas,
praticadas pelo "barbeiro sangrador", a interpretação que
tem merecido a preferência dos autores e estudiosos da doença
de Chagas é a que atribui o nome de "barbeiro" ao simples fato do
inseto picar mais vezes a face do que outras partes do corpo, ignorando-se
a interpretação dada por Chagas em seu trabalho de 1910.
Carlos Chagas Filho, na
biografia de seu pai, escreve: "Como na região do planalto a
noite é sempre mais fria, a única parte não coberta
pelos andrajos da população sem recursos é a face.
Daí o nome de barbeiros que recebem esses insetos". [14]
Pelo menos na primavera
e verão, é comum as pessoas não se cobrirem, deixando
outras partes do corpo descobertas, especialmente os membros superiores,
que ficam expostos ao ataque do inseto.
E é exatamente nos
meses quentes do ano que os triatomíneos têm maior atividade
e são registrados maior número de casos agudos. Em 280 dos
300 casos relatados por Dias, 196 (70%) ocorreram nos meses de outubro
a março dos anos de 1937 a 1955. [9] Este fato explica a ocorrência
de chagomas de inoculação em outras partes do corpo, especialmente
no antebraço, indicando o local de porta de entrada do Trypanosoma
cruzi.
Chagas chama a atenção
para o fato de ser a picada do inseto praticamente indolor e relata ter
observado "a continuação do sono mais calmo de crianças,
em
cujo corpo (o grifo é nosso) sugavam Conorhini, adultos
e ninfas, em número aproximado de vinte" [15]
Também Belisário
Penna, na seguinte passagem, chama a atenção para a grande
espoliação de sangue causada pelo barbeiro como o principal
aspecto de sua convivência com o ser humano:
"Certa ocasião
apanhei em flagrante de sucção sangüínea, sobre
o corpo de uma criança (o grifo é nosso) de quatro anos,
16 ninfas e oito barbeiros adultos, além de cinco, na cama, já
repletos de sangue. Todos esses exemplares estavam infectados. Ora, um
‘barbeiro’ adulto ou a ninfa desenvolvida chupa facilmente um grama de
sangue. Sabendo-se que eles abrigam-se aos milhares nas cafuas, pode-se
imaginar a sangria diária a que estão sujeitos os habitantes
de tais antros, já não levando em conta a inoculação
do terrível parasito". [16]
Instituições
governamentais da área da saúde têm demonstrado preferência
pela primeira interpretação, não se referindo a que
foi dada por Chagas em seu trabalho de 1910, que nos parece a mais bem
fundamentada.
No excelente artigo sobre
"tripanossomos", veiculado no portal Doença de Chagas, do Instituto
Oswaldo Cruz, deparamos com o seguinte trecho: "Por picar os habitantes
na face enquanto dormiam, esse hemíptero era conhecido vulgarmente
pelo nome de "barbeiro".[17]
Em matéria de divulgação
científica do Instituto Evandro Chagas encontramos a seguinte explicação:
"este parasito é eliminado em suas fezes e, pelo contato com
o local da picada (que se dá geralmente no rosto, daí o nome
de barbeiro)..." [18)
Também a Superintendência
de Controle de Endemias do Estado de São Paulo (SUCEN) procede da
mesma forma: "A picada não é dolorosa não acordando
o indivíduo e a fazem em geral no rosto porque este fica descoberto
durante o sono, daí o nome de barbeiro".[19]
Samuel Pessoa, expoente
da parasitologia no Brasil, adota igualmente a mesma interpretação:
"picam em geral o rosto, porque fica descoberto durante o sono; daí
o seu nome de barbeiro" [20]
Ricardo Veronesi, professor
de Medicina Tropical, em seu modelar tratado de doenças infecciosas
e parasitárias, abona a mesma origem para o nome do inseto: "A
denominação de "barbeiro" é devida à predileção
que os insetos têm para picar o rosto". [21]
Os poucos léxicos
da língua portuguesa, tanto os de termos médicos como os
dicionários gerais, que registram o verbete "barbeiro" com a acepção
de inseto hematófago, bem como a origem do nome popular a ele atribuído,
seguem a mesma orientação:
Dicionários médicos:
Paciornik - "Barbeiro
[Frequentemente pica a face, razão pela qual recebe esse nome].
[22]
Serravalle - "Barbeiro
- nome popular dado ao triatomíneo por sugar preferentemente o rosto".[23]
J.L.Soares - " Barbeiro
- Inseto hemíptero...hematófago, de hábitos noturnos
e que costuma atacar as pessoas quando estas se encontram dormindo, picando-lhes
a face, daí o nome"[24].
Dicionários gerais:
Silveira Bueno - "Barbeiro.
Nome vulgar do percevejo transmissor do mal de Chagas. O nome provém
de picar o percevejo o rosto, o pescoço da vítima". [25]
Michaelis - "...saem
à noite para picar as pessoas, geralmente na face, fato que deu
origem ao seu nome (barbeiro), que é o mais vulgar". [26]
Esta explicação
é também encontrada em publicações estrangeiras,
certamente colhida por seus autores em fontes bibliográficas nacionais.
Como exemplo citamos o artigo "L'oeuvre de Carlos Chagas (1879-1934)",
publicado na revista Presse Medicale, em 1955: "Nocturnes et
très voraces, ces Reduvidae piquent les parties découvertes
et souvant au visage, d'où leur nom vernaculaire de 'barbeiros'"
(Noturnos
e muito vorazes, estes Reduvidae picam as partes descobertas e muitas
vezes na face, donde o nome de barbeiros na língua vernácula."[27]
Pesquisando a palavra "barbeiro"
em vários sites na Internet, encontramos esta pérola:"Posteriormente
(Chagas) foi informado por um engenheiro, o Dr. Cantarino Motta, de que
havia um insecto, a que o povo dava o nome de "barbeiro", pelo facto de
morder
de preferencia no rosto e cortar a barba."(!)[28] O autor do artigo,
aparentemente sem experiência com a doença de Chagas, procurou
justificar o nome de "barbeiro", acrescentando ao inseto a aptidão
de também cortar a barba do paciente (quando houver, evidentemente).
A versão de que o
nome de "barbeiro" se deve à maior facilidade que o inseto encontra
em sugar o sangue na face de suas vítimas acha-se disseminado em
praticamente todas as publicações e sites da Internet,
destinados a veicular à população em geral, informações
sobre a doença de Chagas.
São raras as referências
à segunda interpretação, mesmo na literatura científica.
Mazzotti, do Instituto de
Salubridad y Enfermedades Tropicales, do México, discutindo os dois
nomes mais vulgares dos triatomídeos na América Latina, refere-se
ao nome de "barbeiro" e, sem citar Chagas, admite como mais provável
que o nome proceda da função dos barbeiros de praticar a
sangria, no passado. Em suas próprias palavras:
"En Brasil se usa el
término "barbeiro" para las "vinchucas" y dicen los parasitólogos
brasileños que esto proviene de la tendencia que tienen a picar
en la cara, como si fuesen barberos. Convendria comprobar experimentalmente
este asserto, pues cabría la duda sobre si el término "barbeiro"
pudo haber sido aplicado por los primeros colonizadores portugueses no
precisamente a causa de que asociasen la presencia de estos insectos com
el afeite de su barba, sino recordando más bien el importante papel
de los barberos de aquella época que era o de sangradores"[29]
Na literatura médica
brasileira por nós consultada, encontramos apenas três referências,
além da original de Chagas: a primeira de Edgard de Cerqueira Falcão,
quando se refere a Carlos Chagas no livro Opera Omnia de Gaspar Vianna:
"Na
localidade de Lassance, onde se fixara, instalando modesto laboratório
de pesquisas num vagão de estrada de ferro, que lhe servia ao mesmo
tempo de residência, teve oportunidade de verificar abundante quantidade
de certo inseto hematófago domiciliar, conhecido pela denominação
vulgar de barbeiro, dadas as verdadeiras sangrias que praticavam nos indivíduos
por eles picados".[30]
A segunda de Herman Lent,
publicada na revista Ciência Hoje, em 1982, em que ele diz:
"Ali, os habitantes locais falavam de um grande inseto sugador de sangue,
que chamavam de ''barbeiro', talvez lembrando com essa denominação
o trabalho dos barbeiros, que, no interior do país, ainda realizavam,
à época, sangrias e aplicações de sanguessugas
e ventosas". [31]
A terceira referência
é de Simone Kropf, que menciona as duas versões e cita o
trabalho original de Carlos Chagas de 1910. [12]
Apesar de estar generalizada
e ser admitida sem discussão a explicação de que o
nome de "barbeiro" se deve ao fato do inseto sugar de preferência
a face, somos de parecer que esta interpretação é
equivocada e que a verdadeira é a que foi sugerida por Carlos Chagas
em seu trabalho de 1910. Não somente por "razão inductiva",
como ele se expressou, mas pela lógica e evidência dos fatos,
e pela história da medicina brasileira até o fim do século
XIX, em que o "barbeiro", além de cortar cabelo e barba, era um
auxiliar ou substituto do médico no interior do País, fazendo
sangrias e aplicando sanguessugas nos enfermos.
Esperamos que, em futuras
publicações, os autores levem em conta a interpretação
correta dada por Chagas em 1910 quanto à origem do nome popular
de "barbeiro" dado ao triatomíneo transmissor do Trypanosoma
cruzi.
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* Professor Emérito da Faculdade de Medicina da Universidade
Federal de Goiás
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25. Bueno, F.S. - Grande dicionário etimológico-prosódico
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26. Michaelis - Moderno dicionário da língua
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28. Ciancio, N. - Como Chagas descobriu a moléstia
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29. Mazzotti, L. Sobre los nombres vulgares de los triatomídeos.
Rev. Goiana Med. 5:457-460, 1959.
30. Falcão, E.C. - Opera Omnia de Gaspar Vianna.
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por Herman Lent (1982, pp. 44-5)
31. Lent, H.- Eles transmitem a doença de
Chagas. Ciência Hoje, 1(2):45-49, 1982
Agradecimento: Agradecemos à Dra. Simone Kropf a colaboração na pesquisa das referências bibliográficas.
Joffre M de Rezende
Prof. Emérito da Faculdade de Medicina da Universidade Federal
de Goiás
Membro da Sociedade Brasileira de História
da Medicina
e-mail: pedro@jmrezende.com.br
http://www.jmrezende.com.br
03/01/2008