EIJKMAN, O DETETIVE DO BERIBÉRI
A descoberta da etiologia
do beribéri por Eijkman, em 1889, encerra lances próprios
de um enredo policial.
O beribéri era conhecido,
desde antes de Cristo, na China e países do oriente.
O primeiro relato científico
no ocidente se deve a Bontius (1592-1631), quem descreveu casos por ele
observados no sudeste asiático. Em seu trabalho, escrito em latim
e publicado 11 anos após sua morte, usou a denominação
de beri-beri.1
O nome beribéri,
adotado na terminologia médica, provém do cingalês
(sinhalese), língua originária da India e atualmente
uma das línguas oficiais do Ceilão (Sri Lanka), onde é
falada por cerca de 11 milhões de pessoas (Salles, Katzner). Nessa
língua, o superlativo é formado pela repetição
da palavra. Beri quer dizer fraco e beri-beri, extremamente
fraco.2
No Japão a doença
era chamada kakke
e acometia principalmente os marinheiros. O barão
de Takaki, entre 1882 e 1884, conseguiu reduzir sua incidência na
marinha japonesa melhorando a alimentação nas embarcações
com a introdução de outros pratos além do arroz polido.
No século XIX, a
Indonésia era possessão holandesa e o governo holandês,
preocupado com as doenças que grassavam em suas colônias,
especialmente o beribéri, decidiu enviar uma Comissão para
estudar in loco o beribéri. Pensava-se que se tratasse de
uma doença infecciosa e por isso os membros dessa Comissão
foram antes realizar um estágio em Berlim, no Laboratório
de Koch, para dominar as técnicas bacteriológicas em uso.
Vivia-se uma época de novas e sucessivas descobertas de bactérias
patogênicas, responsáveis por doenças há muito
conhecidas e de causa ignorada.
Lá encontraram-se
com Christian Ejkman, que estivera anteriormente em Java e que se mostrou
igualmente interessado no estudo do beribéri. Eijkman foi incorporado
à Comissão e voltou à antiga colônia holandesa
em missão oficial.
Em 1886 os membros da Comissão
desembarcaram na ilha de Java, em Batávia (hoje Jacarta, capital
da Indonésia), onde desenvolveram suas pesquisas. Descreveram o
curso clínico da doença, em especial em relação
às suas manifestações neurológicas, e isolaram
um micrococo que acreditaram fosse o agente infeccioso causador do beribéri.
Os membros da Comissão
retornaram à Holanda, deixando Eijkman em Batávia para continuação
das pesquisas 3.
Eijkman foi indicado para
diretor da Escola Médica de Java e prosseguiu suas observações
sobre o beribéri. Logo percebeu que o micrococo isolado não
poderia ser o agente causal do beribéri, pois não preenchia
os postulados de Koch, ou seja, o isolamento do germe, a reprodução
experimental da doença por ele causada e o seu reisolamento.
Nesse ínterim, observou
o aparecimento de uma doença no biotério do Laboratório,
onde os frangos apresentavam sinais de uma polineuropatia grave, caracterizada
por fraqueza muscular, incapacidade de manter-se de pé ou de abrir
as asas, inapetência e finalmente morte. Chamou a essa doença
polyneuritis
gallinarum e considerou-a equivalente ao beribéri.
Inesperadamente, as aves
acometidas da doença e que ainda estavam vivas começaram
a melhorar e os sintomas desapareceram completamente
Eijkman, qual um detetive, começou
a procurar uma explicação para essa recuperação
espontânea das aves e teve sua atenção despertada para
a alimentação. No período de manifestação
da doença os frangos estavam sendo tratados com sobras da cozinha
dos oficiais do Hospital militar, onde se usava arroz polido da melhor
qualidade. A melhora e recuperação dos frangos havia coincidido
com a mudança na ração. Houve troca de cozinheiro
e o novo cozinheiro entendeu que era um desperdício destinar alimentos
da cozinha dos oficiais para galináceos, que passaram, então,
a receber alimentos de pior qualidade, inclusive arroz despolido.
Como contraprova de sua
hipótese, Eijkman realizou o experimento decisivo: alimentou um
grupo de frangos com arroz polido e outro grupo com arroz despolido. Somente
as aves alimentadas com arroz polido desenvolveram polineurite.
Na etapa seguinte, Eijkman
isolou da cutícula do arroz uma substância solúvel
na água e no álcool, a que chamou de princípio
antineurítico. Com ela não só prevenia, como curava
a polineurite dos frangos.
Restava demonstrar que a
causa do beribéri humano era a mesma da polineurite das aves.
Eijkman foi informado de
que em algumas prisões da colônia usava-se arroz polido e
em outras arroz despolido. Os dados obtidos em 101 prisões que albergavam
cerca de 300.000 presos permitiram a Eijkman concluir que a prevalência
do beribéri era 300 vezes maior nas prisões que usavam o
arroz polido em relação às que não o usavam.4
Eijkman admitiu a existência
de uma toxina no arroz polido, a qual seria neutralizada pelo princípio
antineurítico por ele isolado e este foi o seu único equívoco.
Coube a Grijns, que sucedeu
Eijkman na direção do Laboratório em Batávia,
a formular a teoria de que o beribéri seria causado, não
por uma toxina, mas pela carência de uma substância existente
na cutícula do arroz. A natureza química desta substância
foi determinada em 1911 por Casimir Funk, quem cunhou a palavra vitamina,
formada do latim vita, vida + amina, por ser um fator acessório
da alimentação, essencial à vida.
A vitamina contida na cutícula
do arroz foi isolada por Jansen e Donath em 1926, que lhe deram o nome
de aneurina, e finalmente sintetizada em 1936, simultânea
e independentemente por Williams e Cline, nos Estados Unidos, e Andersag
e Westphal, na Alemanha. Recebeu o nome de tiamina por conter enxofre
em sua molécula (do grego thio, enxofre)5.
Christiaan Eijkman recebeu
o prêmio Nobel em 1929 por seus trabalhos sobre o beribéri,
juntamente com Frederick Hopkins, este último por suas pesquisas
sobre os "fatores acessórios da alimentação", que
correspondiam às vitaminas.
No Brasil, as primeiras
referências a uma doença identificada ao beribéri datam
do final do século XVIII e se devem a Alexandre Rodrigues Ferreira,
naturalista baiano cognominado "Humboldt brasileiro".
Ferreira, em viagem pela
região amazônica, registrou o encontro de enfermos acometidos
de "intensa fraqueza, perturbações circulatórias,
edemas e polineurite".6
Silva Lima, um dos integrantes
da chamada escola tropicalista baiana, estudou detalhadamente o bériberi
na Bahia. Entre os anos de 1866 e 1869 publicou uma série de artigos
na Gazeta Médica da Bahia, todos com o mesmo título:
"Contribuição para a história de uma moléstia
que reina atualmente na Bahia sob a forma epidêmica e caracterizada
por paralisia, edema e fraqueza geral". Descreveu o quadro cínico
com grande riqueza de observações, estabeleceu o diagnóstico
diferencial com a pelagra e registrou dados anatomopatológicos de
necrópsia. Classificou o beribéri em 3 formas clínicas:
forma polineurítica, forma edematosa e forma mista 7.
Em 1872 Silva Lima reuniu
todos os seus trabalhos sobre beribéri em um volume sob o título
Ensaio
sobre o beribéri no Brasil, que se tornou um clássico
da literatura médica brasileira.
Após os estudos de
Silva Lima, seguiram-se muitas outras publicações de autores
brasileiros sobre o beribéri.
Referências bibliográficas
1. MAJOR, R. H.. A history of medicine, Oxford, Blackwell Scientific
Publications, 1954, p. 537.
2. KATZNER, K. The languages of the world. London, Routledge
& Kegan Paul, 1986, p. 201
3. CARPENTER, K. J. Beriberi, white rice and vitamin B1
Berkeley, University Press, 2000, pp. 32-34.
4. ELI C. MINKOFF . "Christiaan Eijkman-1929".In
MAGILL, F. N., The Nobel prize winners-Physiology or medicine, Pasadena,
Salem Press, 1991, pp.297-302.
5. VILLELA, G.; BACILA, M.; TASTALDI, H. Bioquímica, Rio
de Janeiro, Ed. Guanabara Koogan S.A., 1966, PP. 200-201.
6. SANTOS FILHO, L. História geral da medicina brasileira.
São Paulo, Hucitec/Edusp, 1991, p.263.
7. SILVA-LIMA, J. F. " Contribuição para a historia
de uma molésta que reina atualmente na Bahia sob a forma epidêmica
e caracterizada por pralisia, edema e fraqueza geral". Gazeta médica
da Bahia, 1, pp. 110-113, 125-128, 138-139, 1866; 3, pp.55-56, 85-87,
109-111, 1868; 3, pp. 133-135, 145-147, 1869
Joffre M de Rezende
Prof. Emérito da Faculdade de Medicina da Universidade
Federal de Goiás
Membro da Sociedade Brasileira de História da Medicina
e-mail: pedro@jmrezende.com.br
http://www.jmrezende.com.br