LINGUAGEM MÉDICA
 

BOUGIE, BUGIA


        Cada palavra tem sua história e a de bougie é das mais interessantes. No litoral da Argélia há uma cidade com o nome de Bougie (Bujiya em árabe), [1] que se tornou conhecida na Idade Média pela qualidade da cera que produzia, uma cera fina com a qual se fabricavam velas para exportação.
        Por metonímia, a cera passou a ser conhecida pelo mesmo nome da cidade e, posteriormente, as próprias velas passaram a ser chamadas de bougies.[2]
        Sondas finas de linho encerado foram primitivamente confeccionadas para uso médico,[1] as quais foram igualmente denominadas bougies, seja pelo emprego da cera em sua confecção, seja pela semelhança com uma vela. Por analogia, as sondas dilatadoras feitas de outro material, como borracha, plástico ou metal, também foram chamadas de bougies.[3]
        Assim, por um processo linguístico de metonímia, analogia e extensão semântica, um topônimo transformou-se em instrumento de uso médico.
        Antes da era da esofagoscopia, as bougies eram utilizadas principalmente em casos de corpo estranho impactado no esôfago. Eram introduzidas às cegas, com grande risco para o paciente, para desalojar o corpo estranho, empurrando-o para o estômago. Fabricius de Acquapendente (1537-1619) teria sido o primeiro a fazer uso de finas velas de cera com essa finalidade.[4][5]
        Do francês, a palavra bougie passou intacta para o inglês e o alemão e foi traduzida por bugia em português. Na acepção de vela de cera, bugia acha-se averbada no dicionário de Moraes, de 1813.[6]
        Como termo médico um dos primeiros registros encontra-se no Dicionário de Medicina Doméstica e Popular, de Langaard, de 1865.[7]
        Chernoviz dá como sinônimos bugias, velinhas e candelinhas, que "diferem das sondas, em serem estas ôcas em todo o seu comprimento", "enquanto as bugias são massiças em toda a sua extensão".[8]
        A dilatação com bougies recebeu em francês a denominação de bougirage[9] e, em inglês, de bouginage.[1] O termo correspondente em alemão é bougierung.[10]Como seria em português? Bugiragem ou buginagem?
        Plácido Barbosa tacha bougiragede neologismo francês e se preocupa com sua tradução em português, oferecendo como sugestão envelamento. [9]
        Ao contrário do inglês, a tendência atual em português é de se empregar cada vez menos os termos bougie e bouginage, ou seus equivalentes aportuguesados, bugia e buginagem, substituindo-os por sonda e dilatação, respectivamente.
        Tampouco se usa atualmente a palavra bugia na acepção de vela de cera.
        Acresce lembrar que bugia, em português, tem outra acepção, de vez que designa também a fêmea do bugio, gênero de macaco cuja principal espécie é Alouatta caraya, popularmente conhecido como guariba.[11]
 

Referências bibliográficas

1. OXFORD ENGLISH DICTIONARY (Shorter), 3.ed. Oxford, Claredon Press, 1978.
2. DAUZAT, A., DUBOIS, J., MITTERRAND, H. - Nouveau dictionnaire étymologique et historique, 3.ed. Paris, Larousse, 1964.
3. ROBERT, P.: Dictionnaire alphabétique et analogique de la langue française. Paris, Dictionnaires Le Robert, 1987.
4. KELLY, H.D.B. - Origins of oesophagology. Proc. Royal Soc. Med. 62: 781-786, 1968.
5. EARLAM, R., CUNHA-MELO, J.R. - Benign oesophageal strictures: historical and technical aspects of dilatation. British J. Surg. 68: 829-836, 1981.
6. MORAES SILVA, A. - Dicionário da língua portuguesa. Lisboa, Typographia Lacerdina, 1813.
7. LANGAARD, T.J.H. - Dicionário de medicina doméstica e popular, 2. ed. Rio de Janeiro, Laemmert, 1873.
8. CHERNOVIZ, P.L.N. - Dicionário de medicina popular, 6.ed. Paris, 1890.
9. BARBOSA, P. - Dicionário de terminologia médica portuguesa. Rio de Janeiro, Liv. Francisco Alves, 1917.
10. ZATKIN, M. , SCHALDACH, H. - Wörterbuch der Medizin. Berlin, Ullstein Mosby, 1992.
11. FERREIRA, A.B.H. - Novo dicionário da língua portuguesa, 3.ed. Rio de Janeiro, Ed. Nova Fronteira, 1999.
 
 

Publicado no livro Linguagem Médica, 4a. ed., Goiânia, Ed. Kelps, 2011.  

Joffre M de Rezende
Prof. Emérito da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Goiás
e-mail: jmrezende@cultura.com.br
http://www.jmrezende.com.br4.