A CENTELHA DO GÊNIO
Carlos Ribeiro Justiniano
das Chagas ou, simplesmente Carlos Chagas, como ficou conhecido, é
sempre lembrado por seu feito extraordinário da descoberta da Tripanosomíaseamericana,
em 1909.
A importância desta
descoberta de Carlos Chagas, tanto do ponto de vista científico,
como de saúde pública, foi de tal magnitude que, de certo
modo, ofuscou suas muitas outras realizações como médico,
cientista, pesquisador, professor, sanitarista e administrador. Podemos
afirmar que, mesmo sem a descoberta da Tripanosomíase americana,
seu nome estaria consagrado na galeria dos grandes vultos da medicina brasileira.
Sua trajetória de
vida, em breves palavras, pode ser assim resumida: nasceu em 9 de julho
de 1878, na Fazenda do Bom Retiro, município de Oliveira, no interior
do estado de Minas Gerais. Foi o primeiro dos quatro filhos de José
Justiniano Chagas e Mariana Cândida Ribeiro de Castro. Órfão
de pai aos 4 anos, aos 7 foi interno do Colégio dos Jesuítas
em Itu, no Estado de São Paulo. Um ano depois era dali transferido
para S. João del Rei, onde se educou no Colégio Santo Antônio,
tendo como principal mentor o Padre João Sacramento, considerado
na época um grande educador e humanista.
Era desejo de sua mãe
que o filho primogênito fosse engenheiro e por isso foi Carlos Chagas
estudar na famosa Escola de Minas de Ouro Preto. Aos 16 anos de idade,
achando-se em Oliveira, encontrou seu tio Carlos Ribeiro de Castro, médico
recém-chegado do Rio, que exerceu sobre ele decisiva influência,
aconselhando-o a deixar a engenharia pela medicina.
Em 1897 matriculou-se na
Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro.
Como estudante revelou-se
um dos mais brilhantes alunos, (na gíria estudantil era conhecido
como de "duas velas"), tornando-se querido de seus mestres, dentre os quais
Aloysio de Castro e Miguel Couto. Sua tese de doutoramento, obrigatória
na época ao término do curso médico, foi elaborada
no Instituto de Manguinhos, sob orientação de Oswaldo Cruz,
e versava sobre "Estudos hematológicos no impaludismo."
Iniciou sua vida profissional
como clínico, porém, em 1905, por indicação
de Oswaldo Cruz, aceitou o oferecimento para trabalhar na Cia. Docas de
Santos, cidade onde grassava uma epidemia de malária. Ali, aos 26
anos, realizou a primeira campanha anti-palúdica bem sucedida no
Brasil, quando demonstrou que a transmissão do plasmódio
é intradomiciliar e não às margens de pântanos
e rios, como se acreditava. Com essa descoberta abriu caminho para a moderna
profilaxia da malária. De volta ao Rio, outra missão idêntica
lhe foi confiada na baixada fluminense com igual êxito. Em 1907 foi
nomeado Assistente do Instituto de Manguinhos, cuja denominação
oficial era de Instituto de Patologia Experimental. Em 1908 foi incumbido
de combater a malária no vale do Rio das Velhas, em Minas Gerais,
onde a Estrada de Ferro Central do Brasil estava construindo um novo trecho
ferroviário.
Em companhia de Belisário
Pena, seguiu para Lassance, uma estação ferroviária
próxima às obras de engenharia e em pouco tempo realizaram
com sucesso o controle da malária na região. Em seus estudos
de malária identificou uma cepa de Plasmodium falciparum
responsável pelos casos graves da doença e descobriu uma
espécie de anofelino de hábitos diurnos a que denominou Celia
brasilienses.
Em Lassance tomou conhecimento
da existência do "barbeiro" nas cafuas da região, construídas
de pau-a-pique e paredes barreadas, em cujas frestas se colonizavam os
triatomíneos. Ao apresentar-lhe o inseto, Cantarino Motta, engenheiro-chefe
das obras de construção da ferrovia, mencionara a possibilidade
do "barbeiro" causar doença no homem, à semelhança
do mosquito da malária. Foi a centelha que despertou o gênio
de Carlos Chagas para as investigações que se seguiram e
que culminaram com a descoberta da Tripanosomíase americana.
Sua descoberta constitui
um caso único na história da medicina em que o mesmo pesquisador
revela, a um só tempo, uma nova doença, seu agente etiológico,
o T. cruzi com seu ciclo biológico, o inseto transmissor,
o mecanismo de transmissão, os animais reservatórios do parasito
e o quadro clínico da enfermidade, compreendendo uma fase aguda
pós-infecção e sua evolução para uma
fase crônica.
Teve ainda a intuição
de tratar-se de uma endemia grave, própria da zona rural, disseminada
por todo o sertão brasileiro e certamente existente em outros países
do continente americano com as mesmas condições precárias
de habitação, adequadas à domiciliação
dos triatomíneos hematófagos.
A grande descoberta da Tripanosomíaseamericana,
não somente o imortalizou, quando contava apenas 30 anos de idade,
como projetou internacionalmente o Instituto Oswaldo Cruz como centro de
pesquisa científica em biologia e medicina. No ano seguinte foi
admitido, em caráter de exceção, como membro da Academia
Nacional de Medicina, na ausência de vaga.
Nos anos seguintes dedicou-se
ao estudo da nova doença, em todos os seus aspectos contando com
a participação de competentes colaboradores como Gaspar Viana
e Eurico Vilela.
Em 1912 realizou uma excursão
à Amazônia onde pôde observar de perto a penúria
e o desamparo em que viviam as populações ribeirinhas e os
seringueiros, vítimas da malária, leishmaniose, hanseníase
e outras doenças. Ele próprio adquiriu a malária na
região.
Em 1917, com o falecimento
de Oswaldo Cruz, Carlos Chagas foi nomeado pelo Presidente da República,
Venceslau Brás, Diretor do Instituto. Na sua administração
o Instituto expandiu suas instalações, criou novas seções,
concluiu o Hospital Evandro Chagas para doenças infecciosas e parasitárias,
diversificou suas atividades, ampliou seu quadro de pesquisadores e técnicos,
incentivou o intercâmbio científico, tornando a instituição
conhecida e respeitada no exterior.
Em 1920 Chagas foi nomeado
diretor do Departamento Nacional de Saúde Pública, cargo
que exerceu cumulativamente com o de Diretor do Instituto Oswaldo Cruz,
recusando-se a receber os proventos relativos a este último.
Na direção
daquele Departamento encontrou a oportunidade de iniciar a luta pelo saneamento
do Brasil com que sonhava. Para tanto criou as Inspetorias de combate à
tuberculose, à lepra, à sífilis, de proteção
à infância, de higiene do trabalho, com atuação
em todo o território nacional. Orientou a legislação
e os regulamentos de saúde pública; promoveu a formação
e criou a carreira de médico sanitarista, dando-lhe condições
de trabalho em tempo integral. Fundou a primeira escola de enfermagem de
nível superior, a escola Ana Nery, no Rio de Janeiro, que serviu
de modelo para as demais, e regulamentou a profissão de enfermeiro.De
1920 a 1926 estabeleceu as diretrizes básicas da medicina sanitária
no País.
Em 1926, com a aprovação
da Congregação da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro,
Chagas foi nomeado pelo presidente da República, Arthur Bernardes,
Professor da cadeira de Medicina Tropical, recém-criada naquela
Faculdade, em reconhecimento ao seu "notório saber".
Nem todas as manifestações,
entretanto, foram de louvor. Em 1922, movidos talvez pela inveja, Afrânio
Peixoto e os companheiros de Chagas no Instituto, Figueiredo Vasconcelos
e Parreiras Horta contestaram, na Academia Nacional de Medicina, a importância
de sua descoberta, o que deu origem a uma polêmica acirrada, que
extravasou para a imprensa leiga e a sociedade. Embora vitorioso, o episódio
muito o amargurou.
No exterior seu nome e sua
obra tiveram o merecido reconhecimento. Em 1912 recebeu o prêmio
Schaudinn, do Instituto de Moléstias Tropicais de Hamburgo; em 1926,
a Universidade de Harvard conferiu-lhe o título de Artium Magistrum,
honoris causa. O rei Alberto, da Bélgica, concedeu-lhe a Comenda
da Ordem da Coroa daquele país e o rei da Espanha as comendas da
Ordem de Afonso XIII e da Ordem de Isabel, a Católica. Recebeu ainda
o título de membro honorário das academias de medicina de
New York, Paris, Roma e Madrid e de Doutor Honoris Causa das
Faculdades de Medicina de Paris, Bruxelas, Hamburgo, Lima, além
de outras condecorações na Itália, França,
Romênia. Só não recebeu o prêmio Nobel para o
qual fora indicado em 1921, o que se atribui ao preconceito existente na
época em relação aos países do terceiro mundo
e, possivelmente, a informações pouco convincentes que teriam
sido enviadas do Brasil à Fundação Nobel sobre a importância
da sua descoberta.
Carlos Chagas era casado
com D. Íris Lobo, tendo o casal dois filhos, Evandro e Carlos, que
trilharam o mesmo caminho do pai. Evandro teve destacada atuação
no Instituto Oswaldo Cruz, dedicando-se ao estudos das grandes endemias.
Infelizmente, faleceu vítima de trágico acidente de aviação
aos 35 anos de idade, em 8 de novembro de 1940, no mesmo dia em que se
completavam seis anos da morte de seu pai. Carlos Chagas Filho foi professor
titular da Faculdade de Medicina da Universidade do Brasil e notabilizou-se
por suas pesquisas sobre bioeletrogênese. Organizou e coordenou dois
congressos internacionais sobre doença de Chagas, o primeiro em
1959, por ocasião do cinquentenário da descoberta da Tripanosomíase
e o segundo em 1979, em comemoração ao centenário
do nascimento de Carlos Chagas. É também de sua autoria a
biografia de Carlos Chagas, sob o título de "Meu pai."(Ed. Casa
de Oswaldo Cruz, 1993)
Chagas faleceu de morte
súbita, na noite de 8 de novembro de 1934, em sua residência,
quando preparava uma aula sobre... doença de Chagas! Contava então
55 anos de idade. Foi sua última lição: a de que não
se ministra uma aula sem antes prepará-la.
Modificado de Ética Revista 5 (2):26-27,2007