LINGUAGEM MÉDICA
 

CISTO, QUISTO

        As palavras gregas kíste, cesta, e kystis, bexiga, deram origem a cisto (quisto) em português; no caso de kystis através do latim cystis. Ambas as palavras se escrevem em grego com K (kappa) e não com X (khi). De regra, a letra aspirada grega khi passa para o português com som gutural, que se expressa por qu antes das vogais e e i (ex.: quelóide, quemose, quiasma, quitina), ao passo que a letra kappa, também gutural, mas não aspirada, evolui para c, qualquer que seja a vogal seguinte (ex.: carpo, cefaléia, cifose, cirrose).[1] Existem exceções que o uso consagrou, como cirurgia, que deveria ser quirurgia, a exemplo de outros derivados da mesma raiz kheir, mão, tais como quirodáctilo, quiromancia, quiroplastia etc.
        De acordo com a citada regra, tanto o vocábulo derivado de kíste, como de kystis, só poderia ser cisto e não quisto.
        Kystis, com o sentido de bexiga, já é encontrado na Ilíada de Homero.[2] Com a acepção de tumor de conteúdo líquido ou semissólido, é de uso mais recente. Nesta acepção encontramos cyst, em inglês; cyste, em alemão; cisti em italiano; kyste e cyste em francês; e quiste em espanhol.
        É interessante observar que, na língua francesa, todos os termos relacionados com a bexiga urinária e com a vesícula biliar se escrevem de preferência com c, enquanto o tumor de conteúdo líquido ou semi-sólido designa-se com a mesma raiz, porém com k.[3]
        Em biologia o termo cisto é ainda usado em duas situações: 1. Para caracterizar qualquer cavidade no organismo animal ou vegetal, revestida de paredes delgadas e contendo secreção líquida. 2. Para designar uma célula ou cavidade contendo elementos reprodutivos (cisto parasitário).
        A terminologia médica, tanto em Portugal como no Brasil, como é sabido, foi fortemente influenciada pelo francês, influência esta que alcançou seu período áureo no século XIX e primeira metade do século XX. Como em francês se escreve kyste, nada mais natural que se adotasse kysto em português (quisto na ortografia atual).
        Em 1909, quando ainda se usava a letra k no início da palavra, escrevia Ramiz Galvão: "Kysto... a palavra foi mal formada; mas o uso geral consagrou-a e já não é mais possível corrigir".[4]
        Cândido de Figueiredo foi mais categórico: "forma quisto, por muitos usada, não é portuguesa".[5]
        Outros lexicógrafos condenam a forma quisto. Laudelino Freire no verbete quisto, considera o vocábulo "forma imprópria de cisto".[6] Pedro Pinto, em seu Dicionário de Termos Médicos registra: "É usual a forma quisto, errônea".[7] Silveira Bueno distingue cisto, "tumor em forma de bexiga, cheio de líquido", de quisto, "tumor semissólido, sebáceo".[8] Esta distinção, embora encontrada em linguagem popular, não prevalece em medicina.
        Alguns dicionários registram as duas formas ou dão preferência a quisto. O Prof. Idel Becker, em seu Grande Dicionário Latino-Americano Português-Espanhol, considera cisto a forma menos aconselhável e prefere quisto, a exemplo de outros termos médicos, os quais, a seu ver, devem ser escritos com qu, como quelóide, quemose, queratina etc.[9]
        Aurélio Ferreira, nas duas primeiras edições do seu dicionário refere que a forma cisto, "tida por melhor, é relativamente pouco usada". [10][11] Pelo menos no que diz respeito à linguagem médica, esta afirmativa não procede. Na bibliografia brasileira de medicina, publicada pelo IBBD e IBICT, acham-se indexados no período de 15 anos (1965-1979) 95 trabalhos com a forma cisto e apenas um com a forma quisto.[12][13] Nos últimos 20 anos foram indexados pela BIREME 248 artigos com a palavra cisto no título e apenas dois com a palavra quisto. Estes dados demonstram, de maneira inquestionável, a preferência da classe médica brasileira pela forma cisto.[14] É possível que tenha contribuído para esta opção a influência recente da língua inglesa na cultura médica, em substituição à influência da língua francesa no século passado. De qualquer modo, restabelece-se a forma vernácula cisto, em substituição à quisto, tornando viável a correção que Ramiz Galvão julgava impossível.
        Na 3a. edição do dicionário de Aurélio Ferreira, conhecida por Aurélio século XXI, não somente aquela afirmativa foi retirada, como foi dada preferência à forma cisto, com remissão para quisto, ao contrário das edições anteriores.[15]
        A palavra cisto tem ainda outros significados, a saber:
        1. Espécie de cesta utilizada em rituais de festas pagãs dedicadas a divindades mitológicas.
        2. Em arqueologia denomina-se cisto a uma escavação na rocha utilizada como sepulcro.
        3. Gênero de plantas da família das cistíneas. A espécie Cistus ladanifera, encontrada em Portugal, é conhecida por esteva. Neste caso, cisto deriva de outra palavra grega, kistos, esteva; trata-se, portanto, de forma convergente.
        A forma quisto é empregada na expressão "quisto social", que define, em sociologia, um grupo com características próprias, que não se deixa assimilar pela comunidade na qual está inserido.
        Quisto, com sentido de querido, desejado, é usado nos compostos benquisto e malquisto. Neste caso, quisto deriva do latim quaesitus, particípio passado do verbo quaerere, buscar, desejar, querer. Trata-se, aqui também, de forma convergente.
        Aceita a forma cisto na terminologia médica, é óbvio que também se escreverão com c todos os derivados de cisto, dentre os quais encistado.
 

Referências bibliográficas

1. ALMEIDA, N.M. - Dicionário de questões vernáculas. São Paulo, Ed. "Caminho Suave" Ltda., 1981
2. SKINNER, H.A. - The origin of medical terms, 2.ed. Baltimore, Williams & Wilkins, 1961, p. 133.
3. MANUILA, A., MANUILA, L., NICOLE, M., LAMBERT, H. Dictionnaire français de médecine et de biologie. Paris, Masson & Cie., 1970.
4. GALVÃO, B.F.R. - Vocabulário etymologico, ortographico e prosodico das palavras portuguesas derivadas da língua grega. Rio de Janeiro, Liv. Francisco Alves, 1909.
5. FIGUEIREDO, C. - Dicionário da língua portuguesa, 13.ed. Lisboa, Liv. Bertrand, 1949.
6. FREIRE, L. - Grande e novíssimo dicionário da língua portuguesa, 3.ed. Rio de Janeiro, José Olympio Ed., 1957.
7. PINTO, P.A. - Dicionário de termos médicos, 8. ed. Rio de Janeiro, Ed. Científica, 1962.
8. BUENO, F.S. - Grande dicionário etimológico-prosódico da língua portuguesa. São Paulo, Ed. Saraiva, 1963.
9. BECKER, I. - Grande dicionário latino-americano português-espanhol. São Paulo, Liv. Nobel, 1983.
10. FERREIRA, A.B.H. - Novo dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro, Ed. Nova Fronteira, 1975.
11. FERREIRA, A.B.H. - Novo dicionário da língua portuguesa, 2.ed. Rio de Janeiro, Ed. Nova Fronteira, 1986.
12. INSTITUTO BRASILEIRO DE BIBLIOGRAFIA E DOCUMENTAÇÃO (IBBD) - Bibliografia brasileira de medicina. Rio de Janeiro, 1965-1972.
13. INSTITUTO BRASILEIRO DE INFORMAÇÃO CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA (IBICT) - Bibliografia brasileira de medicina. Rio de Janeiro, 1973-1979.
14. BIREME –Internet. Disponível em  http://www.bireme.br/, em 02/09/2002.
15. FERREIRA, A.B.H - Novo dicionário da língua portuguesa, 3.ed. Rio de Janeiro, Ed. Nova Fronteira, 1999.

 
Publicado no livro Linguagem Médica, 4a. ed., Goiânia, Ed. Kelps, 2011.  

Joffre M de Rezende
Prof. Emérito da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Goiás
e-mail: pedro@jmrezende.com.br
http://www.jmrezende.com.br