MÉDICO CLÍNICO
Ao tempo de Hipócrates
a palavra grega que designava médico era iatrós,
com a qual se formaram os nomes de algumas especialidades médicas
como pediatria, psiquiatria, fisiatria, geriatria.
Iatrós é
termo bem antigo na língua grega, já mencionado na Ilíada
[1]e encontrado na coleção hipocrática na sua forma
jônica ietrós.[2]
Era comum, na época,
o atendimento de doentes acamados em seus domicílios e o médico
(iatrós) que os atendia recebia o nome de klinikós,
de kline, leito [3]
Segundo várias fontes,
a denominação de klinikós aparece pela
primeira vez nos escritos de Galeno (séc. II d.C.), referindo-se
aos médicos que visitavam os doentes em seus leitos. [3]
Do grego a palavra klinikós
passou para o latim na forma clinicus e do latim para as
línguas modernas.[4] Assim, temos, como substantivo, clínico
em
português, espanhol e italiano; clinicien, em francês;
clinician,
em inglês, e kliniker, em alemão; como adjetivo, clínico
em português, espanhol e italiano;
clinique, em francês;
clinical em inglês, e klinische,
em alemão.
É interessante assinalar
que o mesmo não ocorreu com iatrós, que foi
substituído em latim por medicus, i, derivado do verbo
medeor,
eri, oriundo, por sua vez, do verbo grego medeo,
com o sentido de cuidar, tratar, proteger.[4]
Na Idade Média o
médico recebeu ainda, em latim, o epíteto de physicus,
do grego physikós, de physis, natureza,
equiparando-o aos estudiosos da natureza, ou seja, aos filósofos
naturalistas.[5] A denominação de "físico" dada ao
médico perdurou até o século XVIII e sobreviveu na
língua inglesa em physician.
A palavra klinikós
atravessou incólume todas as idades, escrita de diferentes maneiras
conforme o idioma, até chegar à idade moderna. Seu significado,
entretanto, modificou-se com a evolução da medicina. Clínico
já
não é somente o médico que visita os doentes no leito.
Todos sabemos o que vem
a ser um médico clínico, porém, ao procurar caracterizar
seus atributos e funções na conjuntura da medicina atual
encontramos dificuldades conceituais. O que distingue o médico clínico
do especialista? É válida a dicotomia entre medicina clínica
e cirúrgica? Pode o médico ser considerado clínico
se a sua atuação se restringe ao âmbito de uma única
especialidade? Deve a Clínica Médica ser considerada em si
mesma uma especialidade? É procedente a diferenciação
entre o clínico e o chamado "clínico geral"?
Buscando em várias
fontes uma definição para "médico clínico"
ou simplesmente "clínico", vemos que não há consenso
entre os autores. A maioria das definições são inadequadas
ou incompletas. Vejamos alguns exemplos:
1. "Clínico - médico que exerce a clínica". Tautologia que transfere a definição para clínica. E, na definição de clínica: "exercício ou prática da medicina". [6]
2. "Clínico - médico que exerce a medicina clínica" ou "médico que se dedica a qualquer das especialidades clínicas"[7]. Nos verbetes medicina e clínica não consta o que seja medicina clínica.
3. "Clínico - médico que exerce a clínica. Médico que estuda as doenças por meio da observação direta e exame dos doentes".[8] Com esta definição, o otorrinolaringologista, por exemplo, também é um clínico, apesar de operar amígdalas, nariz e ouvidos.
4. "Clínico - profissional de saúde empenhado nos cuidados dos pacientes". [9] Neste caso o enfermeiro também seria um clínico, pois ele é um profissional da saúde e está empenhado nos cuidados dos pacientes.
5. "Clínico - médico práctico que enseña la medicina a la cabecera del enfermo" [10]. Médico prático não qualifica a condição de clínico e ensinar medicina à cabeceira do leito pode ser um método didático adotado em qualquer especialidade médica ou cirúrgica.
6. "Clinicien - médecin qui se consacre directement au traitement des malades, qu'il ait une clientèle ou qu'il travaille dans un hôpital".[11]. Com esta definição qualquer médico seria um clínico, desde que se dedique ao tratamento dos doentes, que tenha clientela ou que trabalhe em um hospital.
7. "Clinicien - médecin qui étudie les maladies et établit ses diagnostics par l'examen direct des malades" [12]. Pelo exame direto do paciente, o médico nem sempre estabelece o diagnóstico e sim a hipótese diagnóstica, a ser confirmada por exames complementares.
8. "Clinician - an expert clinical physician and teacher". [13] Assim, o médico tem que ser também professor para ser "clinician".
9. "Clínician - a practising physician as opposed to the laboratory worker or investigator" [14]. Ora, o médico pode ser ao mesmo tempo um clínico e um pesquisador. Uma atividade não exclui a outra.
A dicotomia comumente feita
entre clínico e cirurgião também não satisfaz.
Muitos médicos que não operam não são clínicos.
No site da Sociedade Brasileira
de Clínica Médica não encontrei uma definição
para clínico, certamente considerada desnecessária, pois
todos sabem o que é um clínico. Isto nos faz lembrar
a anedota do mineiro:
-Que vem a ser uai?
-Uai é uai, uai!
O que distingue essencialmente
o clínico é a sua formação, que o capacita
a investigar as doenças pela anamnese e exame físico do paciente,
a formular hipóteses diagnósticas com grande probabilidade
de acerto; a utilizar com discernimento os exames complementares indicados
para confirmar ou esclarecer o diagnóstico, interpretando criticamente
os resultados; a conduzir o tratamento com clarividência, prescrevendo
e acompanhando o curso da enfermidade e, finalmente, a reconhecer prontamente
os casos que necessitam tratamento cirúrgico ou especializado, encaminhando-os
ao cirurgião ou ao especialista mais indicado.
Com esta visão, a
seguinte definição estaria mais próxima da realidade
do que as que foram citadas.
"Clínico é
o médico com capacidade de formular, com grande probabilidade de
acerto, hipóteses diagnósticas baseadas na anamnese e exame
físico do paciente, com discernimento para solicitar os exames complementares
indicados para confirmação ou esclarecimento do diagnóstico,
interpretar criticamente os resultados, prescrever e acompanhar a evolução
da enfermidade e, sempre que necessário, encaminhar o paciente ao
cirurgião ou ao especialista mais indicado."
Referências
1. MARCOVECCHIO, E. - Dizionario etimologico storico dei
termini medici. Firenze, Ed. Festina Lente, 1993.
2. HIPPOCRATES - Peri ietrós. The Loeb Classical
Library, vol. II, p. 310.London, W. Heinemann Ltd., 1972.
3. DURLING, R.J. – A dictionary of medical terms in Galen.
Leiden, E.J.Brill, 1993, p. 205.
4 SARAIVA, F.R.S. - Dicionario latino-português,
10.ed. Rio de Janeiro, Liv. Garnier, 1993.
5. COROMINAS, J., PASCUAL, J.A. - Diccionario crítico
etimológico castellano e hispánico. Madrid, Ed. Gredos, 1984.
6. PACIORNIK, R. - Dicionário médico, 2.ed.
Rio de Janeiro, Guanabara Koogan, 1975.
7.HOUAISS,
A., VILLAR, M.S. – Dicionário Houaiss da língua portuguesa.
Rio de Janeiro, Objetiva, 2001
8. REY, L.- Dicionário de termos técnicos
de medicina e saúde. Rio de Janeiro, 2.ed. Ed.Guanabara Koogan S.A.,
2003
9. STEDMAN DICIONÁRIO MÉDICO. 25.ed. (trad.)
Rio de Janeiro, Ed. Guanabara Koogan S.A., 1996.
10. CARDENAL, L. - Diccionario terminológico de
ciencias médicas, 5.ed. Barcelona, Salvat Ed., 1954.
11. MANUILA, A., MANUILA, L., NICOLE, M. , LAMBERT, H.
Dictionnaire français de médecine et de biologie. Paris,
Masson , Cie., 1970.
12. ROBERT, P. - Dictionnaire alphabétique et
analogique de la langue française. Paris, Dictionnaires Le Robert,
1987.
13. DORLAND'S ILLUSTRATED MEDICAL DICTIONARY, 26.ed.
Philadelphia, W. B. Saunders Co., 1981.
14. SKINNER, H.A. - The origin of medical terms, 2.ed.
Baltimore, Williams , Wilkins, 1961, p. 113.