COBAIO E COBAIA
As duas
formas são empregadas independentemente do sexo do animal. Gramaticalmente,
a primeira é do gênero masculino e a segunda do gênero
feminino, ambas consideradas substantivos epicenos. Para caracterizar o
sexo usa-se macho e fêmea, tanto para cobaio como para
cobaia.
No caso, macho e fêmea podem ser usados como adjetivos ou
como substantivos. A fim de evitar a flexão de macho e fêmea
como
adjetivos (macha e fêmeo) é preferível usar-se
o hífen, formando substantivos compostos: cobaio-macho, cobaio-fêmea,
cobaia-macho, cobaia-fêmea [11].
A maioria dos léxicos
registra
cobaio
como forma variante de cobaia.
Cobaia é palavra
de origem ameríndia, havendo duas versões etimológicas,
ambas com base em fontes autorizadas.
A primeira, defendida por
Lokotsch [13], é de que seria oriunda do caribe, língua primitiva
falada por alguns grupos indígenas da América Central, Venezuela,
Colômbia, Guianas e extremo norte do Brasil [12]; nesta língua
o roedor era chamado de kobiai.
A segunda versão,
advogada por Friederici [8] e mais aceita modernamente, admite sua procedência
do tupi-guanari
çabuia (sabuia), com abandono da cedilha.
A palavra
cobaya (com
y)
foi incorporada ao latim científico da nomenclatura binária
para designar uma espécie deste roedor, pertencente ao gênero
Cavia.
A
descrição da espécie-tipo é creditada a Pallas,
1766 [16], porém a denominação latina Cavia
cobaya fora antes utilizada por Marcgrave na obra conjunta com
Guilherme Piso Historia Naturalis Brasiliae, de 1648 [14].
Posteriormente, Guilherme
Piso, na
História Natural e Médica da ÍndiaOcidental,
de 1658, ao referir-se aos roedores genericamente chamados pelos portugueses
de
ratos do mato, descreve, separadamente, a cobaia e a apereá:
"A quarta espécie",
escreve Piso, "é a Çavia cobaia.
Tanto excede em tamanho
aos coelhos europeus, como os supera na diversidade e beleza das cores.
Os pêlos são um tanto flexíveis, com manchas brancas,
negras, ruivas; as pernas um tanto curtas; as anteriores, com seis dedos,
as posteriores com cinco. Tem cabeça e dentes semelhantes aos dos
arganazes; quase nenhum vestígio de cauda. Nenhuma espécie
de coelhos é tão familiarmente domesticada nas casas como
este; até é levada com sucesso para outras regiões
da Europa, onde igualmente é prolífica e engorda. Grunhindo,
como que mendiga o alimento às pessoas da casa, à maneira
de uma cadelinha doméstica. Não cede aos demais em qualidade
da carne, sobretudo ainda selvagem. É servida assada e cozida; é
menos branca e seca que as de nossa terra; e tão rica em humor,
que lhe faz mal o beber muita água".
"A quinta, chamada Apereá,
pelos nossos compatriotas Veldt-rat, é uma espécie
de coelho pequeníssimo, sem cauda, com pêlos, cabeça,
barba e andar de lebre. Vive como os coelhos e participa-lhes da natureza;
a não ser que gosta mais das cavernas pedregosas do que das arenosas,
donde pelos caçadores e viandantes é tirada e caçada
com auxílio de cães. É servida cozida, assada, condimentada.
Pois a carne é tão tenra e boa que facilmente supera a dos
coelhos europeus".
Piso ilustra ambas as descrições
com desenhos representando os dois roedores. Na ilustração
referente à cobaia, usou c cedilhado em ambos os nomes: Çavia
çobaia.
Apereá
é
palavra tupi, que, por aférese da vogal inicial, interpretada como
artigo feminino, e síncope da segunda vogal, resultou em preá
[5],
nome popular que designa no Brasil mais de uma espécie do gênero
Cavia
e
também do gênero Galea [16].
O gênero
Cavia
compreende várias espécies, das quais as mais conhecidas
são:
C. cobaya Pallas 1766; C. aperea, Erxleben 1777,
C.
porcellus Linneu 1758, que se admite seja a forma selvagem da cobaia
doméstica [16], e C. cuttleri, esta última encontrada
no Peru [9].
Segundo os historiadores,
a cobaia já se encontrava domesticada por muitas populações
indígenas séculos antes da chegada dos colonizadores europeus.
Há referência à sua presença na Guiana Francesa,
Colômbia, Equador, Brasil, Peru e Argentina. Era utilizada pelos
indígenas como animal de estimação, como alimento
e em ritos sacrificiais [3][10][18].
Foi levada para a Europa
a partir do século XVI pelos navegadores espanhóis, portugueses,
holandeses e franceses e espalhou-se por todos os continentes.
Os franceses adaptaram a
palavra ao seu idioma como cobaye, no gênero masculino, que
foi sancionado pela Academia Francesa em 1878 [18]. A forma cobaio,
em português, poderia ter sido resultante da influência tardia
do francês, razão pela qual foi considerada galicismo [2].
Embora alguns léxicos
brasileiros informem que também a forma cobaia provém
do francês cobaye [1][17][22], o inverso parece haver ocorrido,
conforme atestam eminentes lexicógrafos franceses, como os que citamos
a seguir:
1. Dauzat, Dubois e Mitterrand.
"Cobaye. Bomare 1775, du tupi guarani sabuja, par le portugais" [6].
2. Bloch e Wartburg: "Cobaye.
1820, du tupi sabuja,
à l’s- duquel les imprimeurs portugais
ont substitué d’abord un ç-, ensuite un c’-." [3].
3. Robert, P. "Cobaye n.m.
du tupi guarani par le portugais" [20].
Na linguagem popular, a
cobaia recebeu diferentes nomes nos vários países para onde
foi levada.
Em português, a cobaia
é popularmente conhecida como porquinho da India, embora
não seja aparentada aos suínos e nem procedente da India.
Assim também em italiano: porcellino d’India (porquinho da
India).
Em francês é
chamada
cochon d’Inde, sem o diminutivo (porco da
India).
Já em espanhol é
conejillo
de India (coelhinho da India)
Em alemão o nome
é Meerschwein (porco que vem do mar) [10].
Em inglês é
chamada Guinea pig [21], (porco de Guiné), denominação
bastante curiosa pela menção a um país da África
como local de sua origem.
A comparação
com porco talvez decorra da semelhança do grunhido emitido pelo
roedor. A referência à India poderia ser explicada pela denominação
primitiva que se dava na Europa ao Novo Mundo, de Indias Ocidentais, e
também pelo comércio marítimo com as "Indias", confundindo-se
os navios procedentes do Oriente com os do Ocidente. No Brasil o nome adotado
poderia ter sido uma herança do português de Portugal no período
colonial.
O nome em inglês tem
suscitado muitas dúvidas, havendo, pelo menos três hipóteses
[10]:
a) As pessoas acreditavam
que as cobaias fossem realmente de Guiné, porque os navios procedentes
da América do Sul faziam escala para abastecer na costa ocidental
da África, no litoral correspondente à antiga possessão
portuguesa.
b) A cobaia era vendida
ao preço de um guiné cada. "Guinea" era uma antiga moeda
inglesa.
c) Guinea poderia ser tão
somente confusão com Guiana, de onde procediam as cobaias levadas
para a Europa pelos holandeses. Esta hipótese é considerada
menos provável.
Em virtude de suas características
biológicas, a cobaia tornou-se um dos animais preferidos para experimentos
científicos na área biomédica, a tal ponto que a palavra
cobaia
adquiriu uma segunda acepção, de "campo ou objeto de experiência"
[7] e passou a designar "qualquer pessoa ou animal que se submete a experiências
com fins científicos" [15].
J.L.Soares, em seu Dicionário
etimológico e circunstanciado de biologia, define cobaia
com
a única acepção de animal de experiência, qualquer
que seja ele: "coelho, rato, cão, macaco, sapo, rã e até
mesmo, em sentido figurado, a espécie humana" [22]. Considera cobaia
como
variação de cobaio; este sim, "pequeno mamífero
roedor (Cavia porcellus) conhecido vulgarmente como preá
ou porquinho-da-India".
Esta interpretação
não encontra amparo nos antecedentes históricos e linguísticos
da palavra
cobaia e deve ser vista apenas como uma proposta do autor.
Considerando-se as origens
da palavra
cobaia e sua adoção pelo latim científico
da nomenclatura binária para designar uma espécie de roedor,
somos de parecer que a mesma deve prevalecer sobre cobaio.
Referências bibliográficas
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Apud Corominas J., Pascual J. (4)
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Lisboa, Editorial Enciclopédia Ltda., 1935-1958
10. Internet:http://www.meerschweinchen.ch/en/eallgeme.htm,
28.12.1998
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12. Katzner, K. The languages of the world. London, Routledge
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14. Machado, J.P. Dicionário etimológico
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15. Michaelis:Moderno dicionário da língua
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16. Moojen J. Os roedores do Brasil. Rio de Janeiro,
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17. Nascentes A. Dicionário etimológico
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18. Pinto, P.A. Língua materna. Rio de Janeiro,
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19. Piso, G. História natural e médica
da Índia Ocidental (trad.). INL, 1957.
20. Robert P. Dictionnaire alphabétique et analogique
de la langue française. Paris, Dictionnaires Le Robert, 1987.
21. Shorter Oxford english dictionary 3.ed. Oxford, Claredon
Press, 1978.
22. Soares, J.L. Dicionário etimológico
e circunstanciado de biologia. São Paulo, Ed. Scipione, 1993
Publicado no livro Linguagem Médica, 4a. ed., Goiânia, Ed. Kelps, 2011.
Joffre M de Rezende
Prof. Emérito da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Goiás
e-mail: pedro@jmrezende.com.br
http://www.jmrezende.com.br
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