COMO UM TRATADOR DE CÃES CONTRIBUIU
PARA O PROGRESSO DA RADIOLOGIA
A história da colecistografia é um exemplo bem ilustrativo de que a mente humana, por mais brilhante e preparada que seja, deixa de perceber noções aparentemente óbvias, assim consideradas a posteriori. E também de como ocorrências imprevistas podem contribuir para clarear o caminho da pesquisa científica.
No início do século XX, a radiologia era o único método de diagnóstico por imagem de que dispunha a medicina. A cada dia os equipamentos eram aprimorados e novas técnicas de exame eram descritas ou aperfeiçoadas.
O exame contrastado do tubo digestivo, inicialmente com sais de bismuto e, a seguir, com sulfato de bário, já estava sendo empregado com sucesso no diagnóstico das doenças do estômago e do cólon.
Em 1921, Evarts Ambrose
Graham, professor de Cirurgia na Washington University in St. Louis,
nos Estados Unidos, interessou-se pelo problema e convidou um estudante
do segundo ano, de nome Warren Henry Cole, para desenvolver um projeto
nesse sentido. Os seguintes dados de descobertas anteriores serviram como
ponto de partida para a investigação:
1. Os halogênios (cálcio,
bromo e iodo) são opacos aos raios-X e seus compostos podem ser
administrados por via venosa em seres vivos
2. O composto tetraclorofenolftaleína é excretado na bile, conforme haviam demonstrado Abel e Lowntree, em 1909.
3. Rous e Mc Master haviam descoberto em 1921 a capacidade de concentração da bile.
4. Radiografias contrastadas
das vias urinárias haviam sido obtidas com a injeção
intravenosa de iodeto de sódio.
Com estes elementos, Grahm
e Cole deram início às suas experiências e uma grande
variedade de compostos halogenados foram testados em cães e coelhos.
Com uma persistência incomum, Cole injetou por via intravenosa cerca
de 200 animais com diferentes compostos de tetrabromofenolftaleína
e tetraiodofenolftaleína, sem obter o menor resultado. Em nenhum
caso apareceu na radiografia a imagem da vesícula. Até que,
em 1923, Cole obteve em um cão, bem contrastada, a sombra densa
da vesícula.
Cole decidiu rever a radiografia com a vesícula contrastada, temendo um erro de interpretação da imagem; poderia tratar-se, talvez, de um osso ou corpo estranho ingerido pelo cão. Enquanto examinava a radiografia entrou na sala o radiologista do Hospital, Dr. Walter Mills, quem, de relance, olhando para o negatoscópio, perguntou a Cole: "Meu jovem colega, onde você conseguiu esta radiografia?" Cole explicou-lhe o problema e sua dúvida quanto à natureza da imagem. "Não seja tolo, rapaz, é a vesícula biliar e a imagem está tão nítida que a aplicação do método a seres humanos é somente uma questão de experimentação".
Intrigado, Cole procurou o auxiliar de laboratório Bill, que cuidava dos cães, e indagou dele o que acontecera de diferente com aquele animal no dia em que o mesmo fora radiografado. De início, Bill disse não se lembrar de nada especial em relação àquele cão. Cole explicou-lhe que somente naquele animal havia conseguido um resultado satisfatório em suas pesquisas. "Bem, Dr. Cole", retrucou Bill reticente, temendo uma admoestação: "houve uma diferença, sim, naquele dia eu me esqueci de dar alimento àquele cão pela manhã." Cole, com os seus conhecimentos de fisiologia, encontrou de pronto a explicação para o fracasso das suas experiências. Eureka! Exultante, Cole avançou para abraçar Bill, que retrocedeu assustado. Ao ver o semblante alegre de Cole, no entanto, tranquilizou-se e recebeu um caloroso aperto de mãos de seu chefe.
Um simples acaso decorrente do descuido de um modesto tratador de cães veio esclarecer o enigma. A partir daí os cães passaram a ser injetados antes de serem alimentados e a vesícula se opacificou na maioria deles.
Em 1924 o método foi empregado pela primeira vez no ser humano; a substância injetada foi, inicialmente, a tetrabromofenolftaleína de cálcio, logo substituída pela tetraiodofenolftaleína de sódio, que produzia menos efeitos colaterais.
A verificação de que o contraste eliminado na bile é reabsorvido no intestino e reexcretado, mantendo a imagem da vesícula por algum tempo, levou à substituição da via venosa pela via oral para administração do contraste.
A partir de 1925, até
o advento da ultra-sonografia na década de 70, a colecistografia
oral foi o método utilizado rotineiramente para o diagnóstico
das colecistopatias.
Fontes bibliográficas
Joffre M de Rezende
Prof. Emérito da Faculdade de Medicina da Universidade
Federal de Goiás
Membro da Sociedade Brasileira de História da Medicina
e-mail: pedro@jmrezende.com.br
http://www.jmrezende.com.br
27/4/2008