CROSSA DA AORTA
Foi Aristóteles (384-322
a.C.) quem primeiro empregou aorte, em grego, para nomear
a grossa artéria que sai do ventrículo esquerdo, em seu livro
Historia
animalium.[1]
A curvatura da aorta torácica
denomina-se em latim arcus inflexus, expressão usada
pela primeira vez por Heister em seu livro Compendium anatomicum,
publicado
em Amsterdam, em 1720. [2] Em inglês usa-se a denominação
de arch of aorta; em italiano, arco aortico, e em alemão
aortenbogen
(arco
da aorta).
Na medicina francesa, no
entanto, usa-se crosse, pela semelhança com o báculo
episcopal ou cajado.
Em espanhol usa-se cayado
(cajado).
Em português, talvez
por influência da medicina francesa, a preferência é
também para a comparação com o báculo, havendo
divergência quanto à grafia da palavra, que tanto se escreve
com duplo s
(crosse), como com ç (croça).
Croça (ou
coroça), em português, tem duas acepções:
a primeira, pouco conhecida no Brasil, designa uma espécie de capa
ou capote de palha que os camponeses portugueses usam para se protegerem
da chuva; a segunda quer dizer báculo ou bastão episcopal,
correspondendo ao francês
crosse.
Domingos Vieira registra
croça
como variante de coroça e dá a seguinte explicação:
"Coroça, báculo, é a mesma palavra que o francês
crosse,
o antigo espanhol
croza, gruccia, formas que vêm todas
do baixo latim
crucia, crocia".[3]
Lacerda adota croça
para
a primeira acepção, de capote, casaco de palha, e crossa
para
a nomenclatura anatômica. Diz textualmente: "Crossa, s.f. (do fr.
crosse); (anat.) nome que se dá a algumas porções
de vaso que imitam a forma de báculo".[4]
Plácido Barbosa ensina
que "devemos de dizer, em português, croça, s.f., que
era o nome do antigo báculo episcopal, derivado do baixo latim crocia".[5]
Pedro Pinto é da
mesma opinião e diz que "crossa é forma afrancesada".[6]
Silveira Bueno [7] e Caldas
Aulete [8] só averbam croça (com ç).
Aurélio Ferreira, na 2. edição de seu dicionário,
registra também apenas croça, com a ressalva de que
"a boa escrita seria crossa".[9] Já na 3. edição registra
croça
com
remissão para crossa e considera errônea a forma croça.[10]
Antenor Nascentes, no dicionário
da Academia Brasileira de Letras, averba somente a forma crossa.[11],
enquanto o Vocabulário da Academia Brasileira de Letras inclui as
duas formas.[12]
A incerteza quanto à
grafia decorre naturalmente da incerteza quanto à etimologia da
palavra.
Admitindo-se a origem do
baixo latim crocia (derivado de crux), a grafia
correta seria croça. Todavia, Meyer-Lübke, incontestavelmente
a maior autoridade em etimologia das línguas românicas, deriva
o português croça do latim crocea, com
o sentido de manto de palha (pela cor amarela), e o francês crosse
do
germânico krukkya, com o sentido de cajado.[13] Por conseguinte,
são duas palavras etimologicamente distintas.
É fora de dúvida
que a denominação de crossa, dada ao arco aórtico,
é originária da França. Considerando a origem francesa
do vocábulo na terminologia médica, a Comissão Luso-Brasileira
de Nomenclatura Morfológica adotou crossa da aorta como tradução
de arcus aortae da Nomina Anatomica.[14].
Já a Terminologia Anatômica, da Sociedade Brasileira de Anatomia,
publicada em 2001, manteve a tradução literal do latim: arco
da aorta.[15]
Será muito difícil
o abandono do termo crossa em favor de arco, em virtude do
uso tradicional de crossa, resultante da forte influência
da medicina francesa na terminologia médica da língua portuguesa.
Deve-se optar, entretanto, pela
forma com duplo s
(crossa), atendendo ao fato de que a palavra
nos veio do francês
crosse , derivada do germânico krukkya
e não do baixo latim crocia.
Referências bibliográficas
1. ARISTÓTELES: Historia animalium. The Loeb Classsical
Library, Cambridge, Harvard University Press, 1979, ref. 513b, p.374-377.
2. SKINNER, H.A. - The origin of medical terms, 2.ed.
Baltimore, Williams & Wilkins, 1961, 35.
3. VIEIRA, D. - Grande dicionário português
ou Tesouro da língua portuguesa. Porto, Ernesto Chardron e Bartholomeu
H. de Moraes, 1871-1874.
4. LACERDA, J.M.A.A.- Correa de: Dicionário enciclopédico
ou Novo dicionário da língua portuguesa. Lisboa, F. Arthur
da Silva, 1874.
5. BARBOSA, P. - Dicionário de terminologia médica
portuguesa. Rio de Janeiro, Liv. Francisco Alves, 1917.
6. PINTO, P.A. - Dicionário de termos médicos,
8. ed. Rio de Janeiro, Ed. Científica, 1962.
7. BUENO, F.S. - Grande dicionário etimológico-prosódico
da língua portuguesa. São Paulo, Ed. Saraiva, 1963.
8. AULETE, F.J.C., GARCIA, H. - Dicionário contemporâneo
da língua portuguesa, 3.ed. Rio de Janeiro, Ed. Delta, 1980.
9. FERREIRA, A.B.H. - Novo dicionário da língua
portuguesa, 2.ed. Rio de Janeiro, Ed. Nova Fronteira, 1986.
10. FERREIRA, A.B.H. - Novo dicionário da língua
portuguesa, 3.ed. Rio de Janeiro, Ed. Nova Fronteira, 1999.
11. NASCENTES, Antenor: Dicionário da língua
portuguesa. Academia Brasileira de Letras, 1961-1967.
12. ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS: Vocabulário
ortográfico da língua portuguesa, 3. ed. Rio de Janeiro,
Imprensa Nacional.
13. MEYER-LÜBKE, W.: Romanisches etymologisches
Wörterbuch, 5.ed. Heidelberg, Carl Winter Universitäts Verlag,
1972, p.388
14. COMISSÃO LUSO-BRASILEIRA DE NOMENCLATURA MORFOLÓGICA:
Nomenclatura anatômica da língua portuguesa. Rio de Janeiro,
Guanabara Koogan, 1977, p. 81.
15. SOCIEDADE BRASILEIRA DE ANATOMIA - Terminologia anatômica.
São Paulo, Ed. Manole Ltda., 2001, p. 96.
Publicado no livro Linguagem Médica, 4a. ed., Goiânia, Ed. Kelps, 2011.
Joffre M de Rezende
Prof. Emérito da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Goiás
e-mail: pedro@jmrezende.com.br
http://www.jmrezende.com.br