HISTÓRIA DA MEDICINA 

CURAR ALGUMAS VEZES, ALIVIAR QUASE SEMPRE, CONSOLAR SEMPRE



Nota de Direito Autoral:  O texto deste artigo foi publicado em 2009  no livro "À sombra do plátano" pela Editora UNIFESP. A reprodução do mesmo por meio impresso ou eletrônico requer autorização prévia da Editora [http://www.fapunifesp.edu.br fone: (11) 3369-4000]


        Este aforismo define o compromisso do médico para com os doentes e foi consagrado como divisa da própria medicina. É freqüentemente atribuído a Hipócrates. [1-2] Poderia talvez ter sido inspirado na medicina hipocrática, mas não é encontrado nos livros que integram o Corpus hippocraticum.
        Há duas traduções das obras de Hipócrates que são clássicas: a tradução francesa de Littré e a tradução inglesa de Jones.
        No livro Peri Tékhne (Da Arte), Hipócrates define a medicina e seu principal objetivo da seguinte maneira:
        Na tradução francesa de Littré: Quant á la médecine (car c'est d'elle qu'il sagit) j'en vais faire la demonstration; et d'abord la définissant telle que je la conçois, je dit que l'objet en est, en général, d'écarter les souffrances des malades et diminuer la violence des maladies, tout en s'abstenant de toucher à ceux chez qui le mal est le plus fort; cas placé comme on doit le savoir, au-dessus des ressources de l'art." [3]
        Na tradução inglesa de Jones: "First I will define what I conceive medicine to be. In general terms, it is to do away with the sufferings of the sick, to lessen the violence of their diseases and to refuse to treat those who are overmastered by their diseases, realizing that in such cases medicina is powerless." [4]
        Com base nas versões clássicas de Littré e de Jones o texto poderia ser assim traduzido em português:
        "Quanto à medicina, tal como eu a concebo, penso que o seu objetivo, em termos gerais, é o de afastar os sofrimentos do doente e diminuir a violência das suas doenças, abstendo-se de tratar os doentes graves para os quais a medicina não dispõe de recursos."
        Vemos que a preocupação do autor se concentra em aliviar os sofrimentos do paciente e diminuir a gravidade das doenças. Não foi dada ênfase à cura, que, na época de Hipócrates, como ele mesmo ensinava, dependia primordialmente das forças da natureza (Physis). As doenças seguiam o seu curso natural, tinham seus dias críticos e o papel do médico era "auxiliar a natureza" para obter a cura.
        Também não há menção a "consolar"; ao contrário, o médico deveria abster-se de  tratar os doentes graves, para os quais a medicina não dispõe de recursos.[3-4] No comentário sobre o livro "Da Arte", Littré refere-se ao caráter desumano dessa prática  Era uma tradição da medicina grega não acolher no Asklepeion, que era um misto de hospital e templo consagrado a Asklepiós, deus da medicina, os doentes terminais ou incuráveis.
        É evidente que, não sendo da época de Hipócrates, o referido aforismo é de data posterior. O apelo ao sentimento piedoso de solidariedade humana como missão adicional do médico nos faz crer na influência do cristianismo. Do mesmo modo que os deuses da mitologia grega foram substituídos por Cristo no juramento de Hipócrates, assim também o médico deveria cuidar dos doentes sem possibilidade de cura (consolar sempre).
        Nas referências mais antigas o aforismo data do século XV e está redigido em francês: "Guérir quelquefois, soulager souvent, consoler toujours." Possivelmente a frase em francês já é uma tradução do latim medieval. Há em latim uma sentença semelhante:: "MEDICUS QUANDOQUE SANAT, SAEPE LENIT ET SEMPER SOLATIUM EST"(O médico às vezes cura, muitas vezes alivia e sempre é um consolo). [5]

        Do francês o aforismo foi traduzido para outras línguas:
        Em inglês: "To cure sometimes, to relieve often, to comfort always".
        Em italiano: "Guarire qualche volta, alleviare spesso, confortare sempre".
        Em espanhol: "Curar algunas veces, aliviar frecuentemente y consolar siempre"
        Em português, ao contrário do francês e do inglês, a frase tem sido redigida com algumas variações de palavras.

        1. Curar algumas vezes, aliviar quase sempre, consolar sempre.
        2. Curar algumas vezes, aliviar freqüentemente, consolar sempre.
        3. Curar algumas vezes, aliviar muitas vezes e consolar sempre.
        4. Curar algumas vezes, aliviar outras, consolar sempre
        5. Curar algumas vezes, aliviar freqüentemente, confortar sempre.
        6. Curar as vezes, aliviar muito freqüentemente e confortar sempre.
        7. Curar algumas vezes, aliviar outras, cuidar sempre"
        8. Curar às vezes, aliviar com frequência, consolar sempre.
        9. Curar algumas vezes, aliviar o sofrimento sempre que possível, confortar sempre.

        A tradução que mais se aproxima do original francês é a do item 3: Curar algumas vezes, aliviar muitas vezes, consolar sempre.
        Em alguns artigos veiculados pela imprensa médica e em vários textos que se encontram na Internet seus autores atribuem equivocadamente a paternidade desse aforismo a  autores de épocas mais recentes, tais como Trudeau, Osler, Holmes, Peabody, Alexis Carrel, Nothnagel, como nos exemplos que se seguem. Dentre todos, Trudeau é o mais citado.

        "Curar algumas vezes, aliviar outras, cuidar sempre – uma lição secular do Dr. Edward Trudeau, que não devemos esquecer". [6]
        " A psicoterapia foge um pouco ao mandamento obrigatório na medicina,: "Curar às vezes, aliviar com freqüência, consolar sempre" (Francis Trudeau)[7]

Edward Linvingstone Trudeau (1848-1915) foi um médico norte-americano que se dedicou ao tratamento da tuberculose e fundou um Sanatório para tuberculosos em Saranac Lake, nos Estados Unidos. Ele foi de uma dedicação extrema aos doentes em uma época em que ainda não havia tratamento específico para esta enfermidade. Em 1918, seus ex-pacientes se quotizaram e erigiram, junto ao Sanatório, um monumento em sua memória, em cujo pedestal foi gravado o aforismo em francês. "Guérir quelquefois, soulager souvent, consoler toujours." As pessoas mal informadas julgam que ele foi o autor da frase.

        Outros dão a autoria a Osler, como neste registro:
        "Com o ressurgimento dos Cuidados Paliativos volta a fazer sentido a expressão de Osler..."Curar às vezes, aliviar com freqüência, consolar sempre". [8].
        William Osler (1849-1919) foi o maior clínico do século XX, tendo sido um dos fundadores da Faculdade e Hospital John Hopkins, em Baltimore, que serviram de modelo para a implantação da moderna medicina norte-americana. Além de docente e pesquisador, Osler destacou-se por sua preocupação com o lado humano da medicina e suas citações do aforismo foram atribuídas à sua própria autoria.

        "Curar às vezes, aliviar muito freqüentemente e confortar sempre - Oliver Holmes" (9).
        Oliver Wendel Holmes (1809–1894), além de médico, foi um apreciado escritor e poeta. Realizou estudos sobre a febre puerperal e sugeriu o nome de anestesia para a descoberta de William Thomas Morton.

        "Como já dizia Francis Peabody: to cure sometimes, to relief often and to confort always" (10).
         Francis W. Peabody (1881–1927)  médico norte-americano, foi um paradigma de dedicação aos pacientes e escreveu um trabalho que se tornou clássico sobre a humanização da medicina, intitulado "The care of patient", publicado em 1927.

         "However, our patients, while demanding world-class therapies, deserve an approach summarised by the great French surgeon Alexis Carrel: 'To cure sometimes, to relieve often, to comfort always." Esta versão se encontra no texto de apresentação do célebre quadro de Lukes Fildes The doctor, no site  da galeria Tate, de Londres.(11).
        Alexis Carrel  (1873-1944) foi um dos mais geniais pesquisadores no campo da cirurgia experimental, pioneiro das técnicas de cultura de tecidos, da microcirurgia vascular, do transplante de órgãos e da cirurgia cardiaca. Em 1912 recebeu o prêmio Nobel de Fisiologia e Medicina. Certamente deve ter usado em algum de seus escritos o aforismo, que lhe foi atribuído.

        "O médico tem que curar algumas vezes, aliviar muitas e consolar sempre. É com base nesse ensinamento de Nothnagel, que estudantes do curso de Medicina... desenvolvem o Projeto de Vivência na Integração Médico Paciente, o Provimp."[12]
        O nome de Hermann Nothnagel (1841-1905) , médico alemão que viveu de 1841 a 1905,  ficou consagrado na Nothnagel's Encyclopedia of Practical Medicine, do início do século XX.
 

        Em conclusão, todas as referências citadas são improcedentes: não se conhece o autor da frase, nem quando a mesma foi usada pela primeira vez. O citado aforismo aflorou naturalmente como síntese da própria medicina e do compromisso do médico para com a humanidade sofredora.
 


Referências bibliográficas

1. DRUSS, R. G. - Introspections. To Comfort Always. Am J Psychiatry 160:25-26, January 2003
2. GOLDBLOOM, D.S. - Editorial. Language and Metaphor. Bull. Canadian Psychiatric Ass., june 2003, Toronto, Canadá.
3  HIPPOCRATE - Oeuvres complètes (tradução E. Littré). De l'art. Paris, Javal et Bourdeaux, 1933, p.190.
4. HIPPOCRATES - The art. (trad. W.H.S. Jones). The Loeb Classical Library, 1972, vol II, p. 193.
5. REZENDE E SILVA, A. V.- Phrases e curiosidades latinas. 5a. ed. fac-similar, Rio de Janeiro, 1955, p.402.
6. NEUBARTH, F.- Dor, quinto sinal vital. Rev. Bras. Reumatol. 44, 71-74, 2004.
7. EDELWEISS, M.L. O cliente, a psicoterapia e o seu contexto. Internet. Disponível em http://www.malomar.com.br/textos/texto02a.htm  Acesso em 7/12/2005.
8. NUNES, R. - O Doente Oncológico em Fase Terminal. Internet. Disponível em http://quimioterapia.com.sapo.pt/Atitudes%20e%20comportamentos.htm   Acesso em17/12/2005.
9. SIQUEIRA, J.E. - Bioética na terminalidade da vida. Bol. Soc. Bras. Bioética, ano 2, n. 4, out. 2000
10. JORNAL VIRTUAL "SEMANAU", Ed. n. 15. Santa Maria/P.Alegre, 2003.
11. WELLS, F. - Luke Fildes - The Doctor, 1891. Internet. Disponível em http://www.tate.org.uk/tateetc/issue8/microtate.htm  Acesso em 26/11/2008.
12. MADEIRO, M. - Curar, aliviar, consolar sempre - Diário do Nordeste, Fortaleza, 16/09/1998.
 

Joffre M de Rezende
Prof. Emérito da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Goiás
Membro da Sociedade Brasileira de História da Medicina
e-mail: pedro@jmrezende.com.br
http://www.jmrezende.com.br
31/05/2005
Atualizado em 27/11/2008