DESCOBERTAS CIENTÍFICAS POR ESTUDANTES DE MEDICINA
É frequente o estudante de medicina desenvolver atividade
extracurricular e, por vontade própria, participar de trabalhos
de pesquisa como auxiliar de um professor. Na maioria das vezes a sua contribuição
individual não é destacada; quando muito seu nome aparece
no título, como colaborador da pesquisa ou nos agradecimentos. Há
situações, entretanto, em que estudantes talentosos fizeram
descobertas originais por si mesmos, quando dispunham de meios para isso,
e são reconhecidos como os verdadeiros descobridores. Vamos dar
cinco exemplos dos mais conhecidos.
René Laënnec (1781-1826)
René Théophile Hyacinthe Laënnec foi uma das
maiores glórias da medicina francesa no século XIX. Seu nome
é sempre lembrado pela invenção do estetoscópio
e pela descrição histopatológica da cirrose (cirrose
de Laennec)
Diplomou-se em medicina em 1804 no Hospital de la Charité de
Paris, tendo sido aluno de Corvisart, quem popularizou o método
da percussão do tórax descrito por Auenbrugger. Laënnec
utilizava a percussão e a ausculta direta ou imediata, ou seja com
o ouvido colado na parede torácica do paciente, no diagnóstico
das doenças pulmonares e cardíacas. Assim descreveu como
se deu a invenção do estetoscópio:
Em 1816, eu fui consultado por uma jovem mulher com sintomas
de uma doença cardíaca, e nesse caso a percussão,
bem como a aplicação da mão, eram de pouca serventia,
em virtude do grande grau de adiposidade da paciente. O outro método
chamado escuta direta era inadmissível, tendo em vista a idade e
o sexo dela.
A origem desta idéia ocorreu quando Laënnec viu algumas crianças
brincando perto do Louvre ouvindo em uma extremidade de uma longa peça
de madeira os sons produzidos na outra extremidade. No dia seguinte Laënnec,
ao examinar uma paciente, enrolou uma cartolina na forma de um cilindro
e ouviu nitidamente os sons cardíacos. Construiu a seguir ele mesmo
uma peça de madeira em forma de um cilindro oco, medindo 25 cm de
comprimento por 2,5 centímetros de diâmetro, que passou a
usar para ausculta torácica. Em 1819 publicou a primeira edição
de seu livro que se tornou clássico, De l’auscultation mediate e
em 1826, a segunda edição, quando já se encontrava
gravemente enfermo. Diversos autores criaram diferentes modelos de estetoscópio,
procurando aperfeiçoá-lo até chegarmos ao modelo biauricular
atual..
De início o invento de Laennec não despertou entusiasmo
nos EE.UU. e foi recebido com reservas. Um professor de medicina em 1885
declarou: Deus nos fez ouvidos para ouvir, usem suas orelhas e não
um estetoscópio”. Nem mesmo o fundador da American Heart Association
usava o estetoscópio. A denominação de estetoscópio
foi dada por Laënnec, (do grego sthetos, peito +skopéo,
observar, examinar).
Com relação à cirrose, que já era uma doença
conhecida, Laennec , ao examinar o fígado, notou que o mesmo
apresentava uma coloração morena amarelada. E, para distingui-la
de outras enfermidades do fígado, criou o termo cirrose, o que deu
origem ao epônimo de cirrose de Laënnec (do grego kirrós,
amarelado + sufixo –ose. Muitos autores se equivocam quanto à etimologia
da palavra, derivando-a de skirrós, duro).
O que frequentemente se esquece é que Laënnec, ainda como
estudante de medicina, descreveu em 1804 o melanoma e as metástases
pulmonares do mesmo. Inicialmente usou o termo de melanose, nome que foi
mudado posteriormente para melanoma (do grego melanos, negro + oma, tumor).
Publicou seu trabalho em 1805.
Dupuytren, seu professor, reinvindicou para si a participação
na descoberta e descrição do melanoma e acusou Laënnec
de não citá-lo. A polêmica se prolongou por anos, porém
atualmente Laennec é considerado o verdadeiro descobridor do melanoma
ainda como estudante de medicina.
Laënnec sofria de asma e tuberculose, vindo a falecer de tuberculose
em 1926, aos 45 anos de idade, no mesmo ano em que publicava a segunda
edição de seu livro sobre auscultação mediata.
Pressentindo a morte, escreveu: "Eu sei que arrisquei a minha vida, mas
o livro que estou publicando será, espero, o suficiente para ser
mais útil do que a vida de um homem”[1,6]
Daniel Carrión (1857-1885)
Daniel Alcides Carrión García, natural de Cerro de Pasco, no Peru, em 1878 matriculou-se na Faculdade de Medicina da Universidad Mayor de San Marcos, em Lima , capital do Peru. Era um estudante brilhante, interessado em estudar as doenças endêmicas de seu país. Em virtude da guerra do Peru e da Bolívia contra o Chile, entre 1879 e 1883, o curso médico foi interrompido temporariamente. Daniel aproveitou esse período para visitar outros hospitais e conhecer melhor a patologia regional do Peru, notadamente a febre de Oroya e a verruga peruana. Em alguns vales centrais do Peru grassavam as duas enfermidades como endemias características da região.
. A febre de Oroya deve seu nome ao fato de ter acometido os trabalhadores
da estrada de ferro de Oroya, nos Andes, em 1870, com grande mortalidade.
Apresentava-se clínicamente com febre, cãibras abdominais,
dores ósseas e articulares e anemia hemolítica, em geral
acentuada, de evolução progressiva. A verruga peruana tinha
a mesma distribuição geográfica da febre de
Oroya, porém de evolução benigna, com escassos
sintomas gerais e o aparecimento súbito de nódulos cutâneos
semelhantes a hematomas.
A etiologia de ambas as enfermidades era desconhecida e admitia-se
que se tratasse de doenças distintas, à exceção
de alguns poucos médicos que cogitavam da possibilidade de tratar-se
de formas ou fases clínicas da mesma enfermidade.
Só havia uma maneira de dirimir esta dúvida, que seria
inoculando em um voluntário sadio sangue de um nódulo macerado
de um portador da verruga peruana. Daniel Carrión ofereceu-se como
voluntário e em 27 de agosto de 1885 solicitou ao Dr. Evaristo Chavez
que lhe fizesse a inoculação do material retirado de um paciente
com um quadro clínico típico da verruga peruana, que se encontrava
internado no Hospital Dos de Mayo, em Lima.
Vinte e um dias após a inoculação, Daniel
sentiu os primeiros sintomas da febre de Oroya que cursou, como se
esperava, com anemia acentuada. Registrou
em um diário até o dia 27 de setembro a evolução
clínica da doença, quando solicitou a seus colegas que prosseguissem
com o diário.
Em 4 de outubro, já em pré-coma, foi transferido
para o Hospital Maison de la Santé, vindo a falecer no dia seguinte,
5 de outubro de 1885, aos 28 anos de idade.
Suas últimas palavras, quando ainda consciente foram:” "Aún
no he muerto, amigo mío; ahora les toca a ustedes terminar la obra
comenzada, siguiendo el camino que les he trazado As duas doenças
irmanadas constituem atualmente a Doença de Carrión.
Caso único na história da medicina, Carrión talvez
seja o único estudante de medicina consagrado em um belo monumento
em Lima, no Peru e em outras cidades peruanas. É considerado herói
nacional em seu país. O agente etiológico da doença
de Carrión
foi descoberto em 1905 pelo microbiologista peruano Alberto Barton, quem
só divulgou sua descoberta em 1909. Trata-se da bactéria
Bartonella baciliformis [2, 6].
Ruggero Oddi (1864-1913)
Seu nome completo é Ruggero Ferdinando Antônio Giuseppe
Vicenzo Oddi. Nasceu em Perugia, Itália, em 20 de julho de 1864,
o mais novo de cinco irmãos de uma família modesta. Estudou
quatro anos na Universidade de Perúgia, um ano em Bolonha e um ano
em Florença, onde se graduou em medicina e cirurgia em dois de julho
de 1889.
Em 1887, quando contava 23 anos de idade e estudava em Perugia, Ruggero
demonstrou grande interesse pela anatomia e fisiologia. Chegou a dissecar
várias espécies de animais e corpos humanos. Quando dissecava
um cadáver, teve a sua atenção despertada para um
fino anel muscular circular situado em torno da abertura do colédoco
e canal pancreático no duodeno.
Este pequeno músculo já era conhecido, fora descrito por Glisson em 1681, porém desconhecia-se a sua função.Oddi verificou que este músculo se comportava como uma válvula ou um esfincter; relaxava-se ligeiramente para dar passagem à bile e contraia-se a seguir. Uma vez conhecida sua função, este esfíncter passou a ser designado pelo epônimo de “esfíncter de Oddi”. Oddi publicou seus achados em francês, na revista Archivos italiennes de Biologie.
Aos 29 anos foi nomeado chefe do Instituto de Fisiologia de Gênova onde permaneceu durante cinco anos. Nesse período interessou-se pelo estudo de drogas e experimentava em si próprio o efeito de várias delas, inclusive narcóticos e entorpecentes. Terminou ficando dependente de drogas, o que o incompatibilizou com sua posição no Instituto. Aos 34 anos aceitou um emprego na África, no Congo Belga, onde continuou usando drogas, que lhe causaram deterioração física e mental, impossibilitando-o de continuar no exercício da medicina. Retornou à Itália, vivendo solitário e ignorado como um desconhecido. Depois de alguns anos foi para a Tunísia, onde faleceu em 13 de março de 1913 aos 48 anos de idade.
Este caso exemplifica como as drogas podem destruir uma pessoa inteligente,
talentosa, de quem se esperava uma carreira brilhante no terreno da pesquisa
científica, tornando-o incapaz de exercer a medicina e encurtando-lhe
a vida.[3]
Jay McLean (1890-1957)
Jay McLean nasceu na cidade de São Francisco, nos Estados Unidos, no ano de 1890. Foi vítima do grande terremoto de 1906, na Califórnia, que arrasou a cidade de São Francisco e destruiu a casa onde ele residia. Órfão de pai aos quatro anos de idade, teve que trabalhar antes de ingressar no curso de medicina na John Hopkins University em 1914.
No
segundo ano do curso foi admitido como auxiliar no laboratório do
Prof. William H. Howel, que estudava os efeitos de agentes anticoagulantes.
McLean isolou em 1916 um fosfatídio a partir de células de
fígado do cão, que superava os anticoagulantes conhecidos
na época e provocava sangramentos abundantes em animais.
Em 1917, McLean teve que interromper seus estudos e deixar a
Faculdade por falta de dinheiro. Em 1918, Howel criou o nome Heparina (do
grego hepar, fígado.) e prosseguiu suas pesquisas sobre a heparina
no sentido de purificá-la para uso clínico. Mc Lean posteriormete
graduou-se em medicina e dedicou-se à cirurgia. [4]
Em 1922, Howel apresentou a nova descoberta perante a American
Physiological Society e desde então atribuía-se a descoberta
a Howel e não a Mc Lean. Posteriormente, vários autores reconheceram
a prioridade de Mc Lean e ele próprio deixou escrito um relato minucioso
sobre a sua descoberta.
Com base na descoberta de McLean, Howel desenvolveu novas pesquisas
sobre anticoagulantes que projetaram seu nome na comunidade médica
e científica.
McLean faleceu aos 67 anos de doença cadíaca, em
1945. Após sua morte houve uma tentativa de reinvindicar, pós-mortem,
o prêmio Nobel por sua descoberta, porém este só é
concedido aos vivos e foi negado.
Charles Best (1899-1978)
Seu nome completo é Charles Herbert Best, natural de Pembroke,
estado do Maine, EE.UU., filho de um casal de canadenses. Realizou seus
estudos preparatórios em Toronto, Canadá.
Inscreveu-se na Universidade de Toronto, mas teve de interromper seu
curso em 1918 para prestar o serviço militar por ocasião
da I Guerra Mundial. Em 1921 voltou à Universidade e foi indicado
como auxiliar no Laboratório do Dr. Frederick Banting, no Serviço
do Prof. Macleod.
Embora cético quanto aos resultados da pesquisa o Prof. MacLeod
forneceu algum equipamento e 10 cães para a tentativa de obter
o isolamento da insulina.
Ao mesmo tempo McLeod entrou de ferias enquanto Banting e Best desenvolviam
sua pesquisa.
Aos 22 anos, ainda como estudante, a contribuição
de Best foi fundamental para a obtenção da insulina, criando
uma técnica que permitia extrair a secreção endócrina
do pâncreas .
Banting e Best testaram inicialmente os efeitos deste extrato em um
cão pancreactomizado. O extrato mostrou nítida ação
hipoglicemiante, indicando seu alto conteúdo em insulina. (O nome
de insulina já existia, criado por Schaefer, em 1913, do latim insula,
referindo-se à secreção das ilhotas de Langherans).
Depois de conseguir a eliminação de algumas impurezas,
a solução de insulina foi injetada com sucesso em humanos
O primeiro diabético a receber insulina, em 11 de janeiro de 1922,
foi um adolescente de 14 anos, chamado Leonard Thompson, cujo estado
precário, prenunciava o óbito. Rapidamente recuperou suas
forças e seu estado nutricional.
Best, à esquerda, Bantig à direita e o cão diabético
A seguir vários voluntários diabéticos foram tratados
com o mesmo resultado,. A notícia correu célere, espalhando-se
por toda parte.
Em 1923, portanto, um ano apenas após a descoberta da insulina,
Bantig e McLeod receberam o prêmio Nobel.
Charles Best não foi incluído na premiação.
Este fato deixou Banting revoltado; ele achava que o prêmio devia
ser concedido a ele e Best e não a ele e Mac Leod, ou pelo menos
os três deveriam participar do prêmio. Reconhecendo a participação
importante de Best na descoberta, dividiu com ele a parte do prêmio
que lhe tocava.
Charles Best descobriu depois a colina, essencial para evitar a esteatose
hepática; a enzima histaminase e foi o primeiro a usar anticoagulantes
no tratamento das tromboses. Em 1925 terminou o curso médico na
Universidade de Toronto e em 1928 obteve seu doutorado na Universidade
de Londres.
Em 1941, por ocasião da II Guerra mundial, Banting morreu
em um acidente aéreo e Best assumiu a direção do Instituto
Banting e Best de Pesquisa Médica da Universidade de Toronto.
A sua participação na descoberta da insulina foi reconhecida
mundialmente e ele recebeu o título de Doutor Honoris Causa de 18
Universidades, além de numerosos prêmios, medalhas e homenagens.
Aposentou-se na Universidade de Toronto em 1965 e dedicou seu tempo a viagens
internacionais em companhia da esposa. Faleceu em 31 de março de
1978.
Não fora o preconceito do Comitê Nobel, Charles
Best seria o primeiro estudante a receber o prêmio Nobel.[5, 6]
Referências bibliográficas
1. A. Roguin. René Theophile Hyacinthe Laënnec
(1781–1826): The Man Behind the Stethoscope. Clin Med & Res. 2006 (3);
230–235.
2. M. Loukas, G. Spentzouris, R.S. Tubbs, T. Kapos, B.
Curry. Ruggero Ferdinando Antônio Giuseppe Vicenzo Oddi. World J.
Surg.2007 (31);
2260-65.
3. McLean, Jay. The discovery of heparin. Circulation
1959 (19); 75-78
4. Schultz MG. A history of bartonellosis
(Carrion's disease). Am. J. Trop. Méd. Hyg. 1968 (17); 503-515.
5. Wikipedia. Insulina. Disponível em http://pt.wikipedia.org/wiki/Insulina
Acessado em 28/12/2012.
6. Lyons, AS., Petrucelli, R.J. Medicine - An Illustrated
History. New York, Abradala Press, 1987.
Joffre Marcondes de Rezende
Professor Emérito da Faculdade de Medicina da UFG
Professor Honoris-Causa da Univrtsidade de Brasília.
Ttitular fundador da Sociedade Brasileira de História da Medicina
http://www.jmrezende.com.br
jmrezende@ig.com.br