DIÁRIO DE UM
MÉDICO DO SÉCULO XIX:
DR. MALAQUIAS ANTÔNIO GONÇALVES
Joffre Marcondes de Rezende[1]
Lena Castello Branco Ferreira de Freitas.[2]
A viúva, D. Torquata, assumiu
a administração dos bens deixados pelo marido e cuidou de educar a numerosa
família. As filhas tiveram preceptores vindos da Corte; os filhos foram estudar
nos grandes centros: José Antônio e Segismundo freqüentaram a Academia de
Direito do Recife; Malaquias graduou-se em 1868 na Faculdade de Medicina do Rio
de Janeiro, onde também se doutorou[4].
O jovem médico fixou-se em Pernambuco,
passando a atuar no Real Hospital Português de Beneficência (Hospital Português)
e no Hospital Pedro II. Contraiu núpcias com Joana, filha do português João
José Rodrigues Mendes, Barão de Rodrigues Mendes. Enriquecido no comércio de
bacalhau, adquiriu ele o sítio da Ponte d’Uchoa, nos arredores do Recife. Reformou
a casa existente e transformou-a em suntuosa vivenda, onde se realizou a festa
de casamento de Malaquias e Joana, que ali vieram residir, bem como os filhos
nascidos do casal. No solar da Ponte d´Uchoa foram instalados um consultório,
onde Dr. Malaquias atendia sobretudo aos necessitados, bem como sua biblioteca,
doada postumamente à Sociedade de Medicina de Pernambuco.
Rodrigues Mendes, durante
muitos anos, exerceu o cargo de provedor do Real Hospital Português de
Beneficência, encarando-o como instituição através da qual a colônia,
domiciliada em Pernambuco, tinha o dever de prestar assistência integral aos
seus compatriotas em situação adversa, quaisquer que fossem os motivos desta. Seu
genro, o Dr. Malaquias, foi médico desse nosocômio enquanto residiu no Recife.
Amizade e admiração
recíproca aproximavam sogro e genro, que partilhavam idéias avançadas para a
época, como a da separação entre igreja e estado. Malaquias filiou-se à Maçonaria
e, juntamente com seu irmão, Segismundo, ingressou no Partido Liberal. Ambos
seguiram carreira política: Segismundo foi deputado geral por Goiás, governador
de Pernambuco e senador da República. Malaquias elegeu-se deputado provincial e
deputado federal por Pernambuco.
Durante a segunda metade do
século XIX, a cirurgia deixa de ser mera arte manual e passa a abranger horizontes
mais amplos. O cirurgião, até então visto como profissional menor, não é mais o
“skilled handscrafman”, na expressão de Lorde Treves, para quem o cirurgião
deveria ter “coragem, força muscular, firmeza manual, sutileza de vista e
vastos conhecimentos”.
Malaquias Antônio Gonçalves inclinou-se,
inicialmente, para o exercício da medicina: foi interno de clínica médica e
escolheu para sua dissertação o tema: Do
diagnóstico e tratamento das moléstias dos orifícios esquerdos do coração. No
exercício da profissão, contudo, optou pela cirurgia, tornando-se igualmente
cultor das letras cirúrgicas, como se evidencia na tese que apresentou à
Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro: “Da
influência do traumatismo da uretra sobre o organismo”.
Nos anos compreendidos entre
o final da guerra franco-prussiana e o início da Primeira Grande Guerra,
vivia-se a chamada “belle epoque”. Em 1889 – ano da proclamação da República – teve
lugar a Exposição Universal de Paris que, além de lembrar o centenário da
Revolução Francesa, celebrava a pujança da indústria e a diversidade das
civilizações. Nessa ocasião, foi inaugurada a Torre Eiffel, cuja arrojada
estrutura em ferro simbolizava os avanços da técnica. Nesse mesmo ano, seguiu
para a Europa o Barão de Rodrigues Mendes, acompanhado do genro Malaquias e
família. A viagem prolongou-se por mais de dois anos: iniciou-se com a visita à
Exposição Universal e estendeu-se por diversos países, inclusive Portugal, a
terra ancestral.
Ao final do périplo, Malaquias estagiou em Paris,
Bordeaux e Londres, demorando-se mais tempo
Primeira página do diário de Malaquias Antônio
Gonçalves, datada de
13 de
novembro de 1891
Na ocasião, a cirurgia já
contava com duas grandes conquistas: a da anestesia geral e a da antissepsia,
graças às quais pôde ampliar o seu campo de ação. A assepsia ainda era precária
no tocante à esterilização dos instrumentos e à indumentária da equipe
cirúrgica.
Malaquias estagiou no
Hospital Saint Louis, sob a orientação de Péan e Championnière; no Hospital
Necker, com Le Dentu e Guyon; no Hospital Broussais, com Reclus; no Hospital
Charité, com Duplay e Delbet, além de ter visitado outros hospitais
O Quadro 1 mostra o número
de intervenções a que assistiu, por Hospital, e o Quadro 2 por área de atuação
do cirurgião.
QUADRO 1
PROCEDIMENTOS
CIRÚRGICOS PRESENCIADOS PELO
DR. MALAQUIAS ANTONIO
GONÇALVES NOS HOSPITAIS EUROPEUS
NO PERÍODO DE 13.11.1891 A
30.4.1892
Cidade
Hospital
No. de procedimentos
27
Necker
26
Broussais
14
Charité
8
Maison de Santé
7
Lariboisière
5
Hotel Dieu
3
Lourcine-Pascal
3
(Hospitais privados)
2
Bordeaux
6
Londres
6
King's
College
3
Middlessex
1
Lisboa
S.
José
1
QUADRO 2
DISTRIBUIÇÃO DOS
PROCEDIMENTOS CIRÚRGICOS PRESENCIADOS PELO DR.
MALAQUIAS ANTONIO GONÇALVES QUANTO À ÁREA DE
ATUAÇÃO DO CIRURGIÃO
Área de Atuação
No. de procedimentos
Patologia
externa
22
Cirurgia
abdominal
21
Urologia
21
Ginecologia
20
Ortopedia
16
Cirurgia plástica
7
Otorrinolaringologia
2
Proctologia
2
Trepanação craniana
1
Total
112
Seu depoimento é de
inestimável valor, de vez que retrata com fidelidade a cirurgia que então se
praticava nos Hospitais da França e que era considerada a mais avançada da
época. Em seu diário, dá-nos uma viva imagem da cirurgia no final do século
XIX. A fim de tornar a exposição mais atrativa, vamos reproduzir alguns trechos
de seu diário (com a ortografia atualizada) e tecer sobre os mesmos breves
comentários.
Paris, 16.11.1891 - Hospital S. Luiz. Clínica do Dr.
Lucas Championnière. Operação - ovarites dolorosas - Ovariotomia dupla -
Fixação do útero em retroversão à parede anterior. A doente é cloroformizada e
os cuidados anti-sépticos são regularmente empregados. O Dr. Championnière
emprega um spray com uma solução de eucaliptol durante suas operações
abdominais. A cloroformização é sempre acompanhada da inspiração de oxigênio em
um grande balão de borracha. Esta doente sofreu um acidente de cloroformização,
pelo que foi obrigado a fazer a respiração artificial.
O spray com eucaliptol é um
sucedâneo do método de Lister, que usava aspersão de ácido fênico no campo
operatório durante o ato cirúrgico. O clorofórmio era o anestésico mais
empregado na época. Em todo o diário do Dr. Malaquias só há referência a duas
anestesias pelo éter, ambas na Inglaterra. O acidente anestésico deve ter sido
parada respiratória, já que a paciente sobreviveu. Outro aspecto a comentar é a
facilidade com que se retiravam ambos os ovários de uma mulher, sem atentar
para as consequências hormonais daí decorrentes. A histeropexia era uma
constante nas operações ginecológicas.
Paris, 17.11.1891 - Hospital Necker. Clínica
Cirúrgica do Prof. Le Dentu. Cancroide da face em uma mulher - Ablação -
Anestesia pela cocaína - Incisão circunscrevendo a lesão, hemostasia, sutura,
curativo anti-séptico. A injeção de cocaína não produziu o resultado desejado,
porque a doente, que era uma mulher de certa idade, deu grandes gritos durante
a operação.
A anestesia local estava em
seus primórdios e o cloridrato de cocaína foi o primeiro anestésico local a ser
empregado. A ação anestésica da cocaína havia sido descoberta por Kolliker em
1884 e, nesse mesmo ano, Halsted obteve com sucesso o bloqueio de um nervo
periférico pela cocaína. A cocaína foi substituída posteriormente pela procaína
(novocaína), sintetizada por Einhorn em 1905.
Paris, 18.11.1891 - Hospital Necker. Clínica das
vias urinárias do Prof. Guyon - Nefrotomia direita por pionefrose. O doente é cloroformizado
e todos os cuidados anti-sépticos empregados com rigor. Lavagem rigorosa da
região a sabão e líquidos anti-sépticos, envolvimento da doente com uma longa e
larga compressa de gaze anti-séptica umedecida em sublimado corrosivo cobrindo
a região a operar, tendo sido feita uma abertura na mesma para, através dela,
trabalhar o cirurgião.
O sublimado corrosivo é o
bicloreto de mercúrio, considerado na época o melhor germicida disponível.
Utilizava-se em solução a 1:1.000 . É uma substância extremamente tóxica quando
absorvida. A compressa com abertura central evoluiu para os campos fenestrados
atuais.
Paris, 19.11.1891 - Hospital Necker - Dr. Lucas
Championnière - Pé torto paralítico - Extração do astrágalo e de um cuneiforme.
Dr. Champonnière faz a extração do astrágalo, depois do cubóide e por último do
1º cuneiforme - faz a hemostasia, sutura a pele com crina de
Florença, drena a ferida e termina empregando curativo anti-séptico com gaze
iodoformizada e gaze com um pó composto de 1/4 de idodofórmio, quina, benjoim e
carbonato de soda - mackintosh.
Crina de Florença é um fio
de seda especial, que se utilizava na sutura da pele. O iodofórmio era usado
como anti-séptico. O seu cheiro penetrante tornou-se uma das características
marcantes dos hospitais e veio substituir o cheiro pútrido das feridas
supuradas, comuns na era pré-pasteuriana. Na ausência de antibióticos, os
antissépticos eram largamente utilizados.
Antes da descoberta dos
raios-X, em 1895, e sua utilização em radiografias do trato digestivo, o
diagnóstico de tumores intestinais só podia ser feito por laparotomia
exploradora. Aparentemente tratava-se de um tumor de cólon esquerdo, visto que
a paciente fora antes colostomizada à direita, e a enterectomia deve ser, na
realidade, hemicolectomia esquerda. Não há relato sobre os resultados desta
cirurgia, como, aliás, de nenhum outro caso.
Abscessos ligados à
peritiflite eram, na realidade, casos de apendicite supurada, que não era
diagnosticada até então. A operação indicada consistia em simples drenagem;
muitos pacientes morriam e alguns casos
evoluíam com fístula cecal. O papel do apêndice como sede inicial do processo
inflamatório em tais casos foi demonstrado em 1886 pelo patologista Reginald
Fitz, quem autopsiou mais de 500 casos nos Estados Unidos, porém só foi
reconhecido nos países europeus no início do século XX.
Paris, 10.12.1891 - Hospital Necker - Clínica
Cirúrgica do Prof. Championnière - Ressecção da cabeça do úmero esquerdo pelo
processo de Malgaigne em um rapaz com uma fístula no braço por lesão
tuberculosa... Faz sair a cabeça do úmero e a serra com a serra de Faraboeuf e
termina a excisão com escopo e martelo. Faz a hemostasia da ferida e depois a
antissepsia com solução de ácido fênico forte. Cauteriza a fístula com uma
solução de cloreto de zinco a 10%... Curativo com gaze iodoformizada, saquinhos
de gaze com pó anti-séptico, algodão escuro, algodão comum e atadura.
Paris, 12.12.1891 - Hospital Necker - Clínica de
vias urinárias do Prof. Guyon. Sessão de litotrícia. Trata-se de um velho com a
bexiga em más condições, em que o Prof. Guyon introduz o litotrictor de ramos
curtos. Depois de muitas "prises"
passa a fazer a lavagem da bexiga introduzindo uma grossa sonda metálica.
Repetiu muitas vezes a lavagem e aspiração. Depois da aspiração o Prof. Guyon
lava de novo a bexiga com ácido bórico e com uma solução de nitrato de prata e
deixa uma sonda em permanência.
A litotrícia ou litotripsia,
introduzida no século XIX na prática médica, representou um avanço no
tratamento da litíase vesical, antes só tratada pela cistotomia ou talha, por
via hipogástrica ou perineal. O nitrato de prata foi muito empregado por sua
ação levemente cáustica e cicatrizante sempre que havia tecido de granulação em
processos inflamatórios.
Paris, 16.1.1892 - Hospital S. Luiz. Clínica do
Prof. Péan - Ressecção do maxilar superior direito por sarcoma. Não gostei
desta operação, não só vi o Prof. Pean perder o seu sangue frio habitual como o
processo não me pareceu aceitável. Ele abusa das pinças compressivas como meio
de hemostasia preventiva. Elas prestam reais serviços, mas por isso não se deve
empregá-las a torto e a direito.
Péan destacava-se dentre os
cirurgiões pelo pouco sangramento de suas operações, o que conseguia por meio
de pinças hemostáticas que ele idealizara e mandara fabricar. O Dr. Malaquias
demonstra, nesta passagem, o seu
espírito de observação e de crítica.
Dr. Malaquias teve ocasião
de presenciar dois óbitos por acidente anestésico com clorofórmio, um no
Hospital Necker dia 5 de abril de 1892 e o outro no Hospital Charité, três dias
depois. Vejamos um deles.
Paris, 8.4.1892 - Hospital Charité - Clínica
Cirúrgica do Prof. Duplay, substituído pelo chefe de Clínica, Dr. Delbet -
Amputação de dedo da mão por necrose da falange por panarício. O doente é um
homem forte, bem constituído. O doente é cloroformizado. O Dr. Delbet começava
a antissepsia do campo operatório quando o doente torna-se cianótico e a
respiração pára. Recorre-se imediatamente à respiração artificial e muitos
outros meios são empregados, tais como flagelação, cauterização com água quente
sobre o côncavo epigástrico, aplicação de eletricidade, injeções de éter,
injeções de cafeína, mas tudo foi baldado e o resultado foi a morte do doente.
Os acidentes letais com o
clorofórmio ocorriam quase sempre no período de indução anestésica, com
anestesia ainda superficial. Sabemos hoje que o clorofórmio, em presença da
adrenalina desencadeia fibrilação ventricular. O estado emocional do paciente
ou a sensação de dor, antes que a anestesia se aprofunde, libera catecolaminas
endógenas, que atuam do mesmo modo que a
adrenalina exógena. O clorofórmio foi posteriormente substituído por outros
agentes anestésicos como o ciclopropano e o halotano.
Conforme mostra o Quadro
Voltando ao Brasil, Dr. Malaquias continuou a
exercer suas atividades no Recife, tornando-se um cirurgião exímio e pioneiro
da urologia
RESUMO
Ao final do século XIX, os
centros médicos mais importantes da Europa eram os da França, Alemanha e
Inglaterra, para onde se dirigiam médicos do mundo inteiro em busca de novos
conhecimentos e aprimoramento profissional. O brasileiro Malaquias Antônio
Gonçalves estagiou em Paris, Bordeaux e Londres; no período de 13/11/1891 a
30/04/1892 freqüentou vários hospitais, ouviu preleções de grandes mestres da
cirurgia e presenciou 112 intervenções cirúrgicas. No presente artigo,
apresenta-se sua biografia e analisam-se suas anotações de próprio punho que,
sob a forma de um diário, preenchem 89 páginas manuscritas.
Palavras-chave: CIRURGIA NO SÉCULO XIX, MEDICINA
BRASILEIRA, HISTÓRIA DA MEDICINA.
[1] Professor Emérito da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Goiás. Membro da Sociedade Brasileira de História da Medicina. Sócio Honorário do Instituto Histórico e Geográfico de Goiás
[2] Professora Titular aposentada da Universidade Federal de Goiás. Membro da Sociedade Brasileira de História da Medicina. Sócia Emérita do Instituto Histórico e Geográfico de Goiás.
[3] Cópia do inventário post mortem de Domingos José Gonçalves. Acervo particular da co-autora. Fazenda Santa Cruz, Trindade, GO.
[4] Os dados biográficos de Malaquias Antônio Gonçalves foram recolhidos da tradição oral, entre seus descendentes, e de MORAES, Octavio e Eurydice de. Roteiro do Barão de Rodrigues Mendes. Recife: Imprensa da Universidade Federal de Pernambuco, 1967.
[5] O documento foi cedido aos autores pelas Senhoras Luíza e Eth Gonçalves Castello Branco, netas do Dr. Malaquias Antônio Gonçalves, residentes no Rio de Janeiro, RJ.