DIGESTIVO E DIGESTÓRIO
Há em latim duas palavras
semelhantes que diferem apenas quanto ao sufixo: digestivus, a, um e
digestorius,
a, um. Ambas podem ser empregadas com o mesmo significado: relativo
à digestão ou aos órgãos da digestão.
Digestivus sempre
foi a forma preferida na linguagem médica em vários idiomas,
inclusive o latim, quando o mesmo era usado nas comunicações
científicas. Os dicionários médicos em latim de Blancard
(1718) e de Kraus (1844) averbam unicamente digestivus, não
mencionando digestorius.[1][2]
Nas línguas de cultura
como francês, inglês, espanhol e italiano sempre se usou digestivus
com
as adaptações morfológicas do sufixo a cada idioma.
Em francês há
registro de digestif, ve, desde 1290, e não há menção
a "digestoire", que corresponderia a digestorius em latim,
tal como "circulatoire" corresponde a circulatorius.[3]
Em inglês, digestive
foi
introduzido como substantivo em 1390 e como adjetivo em 1425 em uma tradução
de um livro em francês sobre cirurgia, de Chauliac.[4]
Em espanhol, digestivo
está
documentado desde 1440 [5] e o Dicionario da Real Academia Española
só averba digestivo e dá como exemplo
tubo digestivo
e funções digestivas.[6]
Em italiano, segundo Marcovecchio,
digestivo
aparece pela primeira vez em um poema medieval do século XIII
na seguinte frase: "Favorirà il potere digestivo dello stomaco
e del fegato". Digestorio só foi introduzido no léxico
a partir da Nomina Anatomica de 1895 (conhecida por BNA por
ter sido aprovada em Basiléia, na Suiça)), que optou por
digestorius
em lugar de digestivus.[7] Em edições posteriores
da Nomina, o gênero masculino de digestorius
foi trocado
pelo gênero neutro digestorium.
Também em português,
digestório
era praticamente desconhecido até o século XX. Os dicionários
de Moraes (1813), Constâncio (1845), Faria (1856), Vieira (1871),
Lacerda (1874), Aulete (1881) só averbam
digestivo. [8-13]
Digestório aparece
pela primeira vez no dicionário de Cândido de Figueiredo,
de 1899, e desde então em léxicos do século XX.[14]
Embora a opção
da Nomina Anatomica tenha sido por digestorius, um,
já
havia uma tradição consolidada em favor de
digestivus,
que se manteve em todos os idiomas citados, inclusive em português.
Em Portugal ainda prevalece
a denominação de Aparelho digestivo em lugar de Sistema
digestório e o Dicionário da Academia das Ciências
de Lisboa em edição recente nem sequer averba digestório.
[15]
A Comissão de Terminologia
Anatômica da Sociedade Brasileira de Anatomia, ao traduzir Systema
digestorium da atual Terminologia anatomica, do latim
para o português, não levou em conta o uso tradicional de
digestivo
e optou por digestório [16], talvez pela identificação
morfológica e sônica com a palavra latina ou por analogia
com "circulatório" e "respiratório".
A tradução
literal nem sempre é a mais aconselhável e, a propósito,
convém mencionar que Systema digestorium da Terminologia
Anatomica foi traduzido para o inglês por Alimentary system
[17] e não por Digestory system, como seria natural se prevalecesse
a tradução literal ou a analogia com Respiratory system.
Desnecessário dizer que
as modificações introduzidas na nomenclatura se referem unicamente
a estruturas anatômicas e não se estendem ao idioma em geral.
Digestivo
continua existindo como substantivo e adjetivo, com seu significado
preciso, em todos os léxicos e na linguagem oral e escrita, seja
leiga ou técnica.
Aqueles que desejarem seguir
a nomenclatura anatômica oficial da Sociedade Brasileira de Anatomia
deverão referir-se ao Sistema digestório em vez de
Sistema
digestivo ou Aparelho digestivo, porém não estão
impedidos de usar digestivo, tanto como substantivo como adjetivo
em expressões que não dizem respeito à anatomia. Exemplos:
Como substantivo:
"receitei-lhe um digestivo"
"este medicamento é
um bom digestivo"
Como adjetivo:
"a função digestiva
da bile..."
"queixas digestivas, sintomas
digestivos"
"hemorragia digestiva"
"cirurgia digestiva"
"endoscopia digestiva"
Tem havido ultimamente certa confusão a respeito. Em uma pesquisa realizada no site de busca Google no dia 03/03/2006 encontramos as seguintes ocorrências de digestório em lugar de digestivo em expressões que não dizem respeito a estruturas anatômicas.
"hemorragia digestória"
- 21 ocorrências
"sintomas digestórios"
- 12 "
"função digestória"
- 10 "
"doenças digestórias"
- 3 "
"cirurgia digestória"
- 3 "
"ação digestória
da ptialina" - 2 "
Acertadamente ou não,
digestório
foi incorporado ao vocabulário médico para substituir
digestivo na nomenclatura anatômica, mas não na língua
portuguesa. A língua não se faz por decreto, portarias, normas
ou decisões de uns poucos, por mais ilustres que sejam; ela tem
os seus próprios caminhos e, na expressão de Sapir,
"move-se ao longo do tempo numa corrente que ela própria constrói."
Referências biblliográficas
1. BLANCARD, Stephan - Lexicon medicum graeco-latino-germanicum,
5.ed., Hallae Magdeburgicae, 1718.
2. KRAUS, Ludwig August - Kritisch-etymologisches mediciniches
Lexikon, 3.ed. Göttingen, 1844.
3. ROBERT, P. - Dictionnaire alphabétique et analogique
de la langue française. Paris, Dictionnaires Le Robert, 1987.
4. BARNHART, Robert K. Chambers Dictionary of etymology.
New York. Chambers Harrap Publ. Ltda., 2001.
5. COROMINAS, Juan - Breve diccionario etimológico
de la lengua castellana, 3.ed., Madrid, Ed. Gredos, 1980.
6. REAL ACADEMIA ESPAÑOLA - Diccionario de la
lengua española, 19.ed. Madrid, 1970.
7. MARCOVECCHIO, Enrico - Dizionario etimologico storico
dei termini medici. Firenze, Ed. Festina Lente, 1993.
8. MORAES SILVA, Antonio de - Dicionário da língua
portuguesa. Lisboa, Typographia Lacerdina, 1813.
9. CONSTANCIO, Francisco Solano - Novo dicionário
crítico e etimológico da língua portuguesa, 3.ed.
Paris, Angelo Francisco Carneiro, 1845.
10. FARIA, Eduardo de - Novo dicionário da língua
portuguesa, 2 ed. Lisboa, Typographia Lisbonense, 1856.
11. LACERDA, José Maria de Almeida e Araujo Correa
de - Dicionário enciclopédico ou Novo dicionário da
língua portuguesa. Lisboa, F. Arthur da Silva, 1874.
12. VIEIRA, Frei Domingos - Grande dicionário
português ou Tesouro da língua portuguesa. Porto, Ernesto
Chardron e Bartholomeu H. de Moraes, 1871-1874.
13. AULETE, F.J. Caldas – Dicionario contemporaneo da
língua portuguesa. Lisboa, 1881.
14. FIGUEIREDO, Cândido de - Novo Dicionário
da Língua Portuguesa. Lisboa, Ed. Tavares Cardoso , Irmão,
1899.
15. ACADEMIA DAS CIÊNCIAS DE LISBOA - Dicionário
da língua portuguesa contemporânea. Lisboa, Ed. Verbo, 2001
16. SOCIEDADE BRASILEIRA DE ANATOMIA. Terminologia anatômica.
São Paulo, Ed. Manole Ltda., 2001
17. FEDERATIVE COMMITTEE ON ANATOMICAL TERMINOLOGY. -
Terminologia anatomica. Stuttgart, Georg Thieme Verlag, 1998, p.47.
Joffre M de Rezende
Prof. Emérito da Faculdade de Medicina da Universidade Federal
de Goiás
Membro da Sociedade Brasileira de História
da Medicina
e-mail: pedro@jmrezende.com.br
http://www.jmrezende.com.br
03/03/2006