A INSTITUCIONALIZAÇÃO DO ENSINO MÉDICO
A ESCOLA DE SALERNO E AS PRIMEIRAS UNIVERSIDADES EUROPÉIAS
O ensino médico no
Ocidente só foi institucionalizado na Idade Média. Após
a invasão do Império Romano pelos bárbaros no séc.
V, a medicina na Europa, como toda a cultura clássica greco-romana,
se abrigou nos mosteiros. Diversas ordens religiosas preservaram grande
parte dos manuscritos sobre a medicina e tomaram a seu cargo o cuidado
aos enfermos como um preceito cristão. Pequenos hospitais e albergues
eram encontrados junto aos mosteiros, onde os enfermos eram atendidos.
Um dos mosteiros que mais
se destacaram nessa atividade foi o de Monte Casino, na Itália,
fundado por S. Bento em 529, de onde surgiu a ordem dos Beneditinos.
Além dos clérigos,
havia, paralelamente, médicos leigos menos preparados, espalhados
por toda a Europa. Esta situação iria perdurar por cerca
de 3 séculos, até que surgisse a Escola de Salerno.
Salerno, uma pequena cidade
litorânea situada ao sul de Nápoles, na Itália, sempre
foi procurada pelos enfermos, em virtude do seu clima ameno e saudável.
Este fato atraiu muitos médicos para a cidade.
Em 820, os Beneditinos fundaram
um hospital em Salerno e passaram a exercer a medicina ao lado dos médicos
leigos. Os monges tinham conhecimento dos autores clássicos, como
Hipócrates e Galeno, enquanto os leigos eram médicos práticos
de pouca cultura.
Há referências
ao ensino da medicina em Salerno já no século IX, porém
a sua institucionalização só se deu em 1075, graças
a Constantino, o Africano. A partir daí a escola estabeleceu um
currículo regular e passou a receber auxílio financeiro dos
governantes.
A escola de Salerno alcançou
fama mundial, para ela acorrendo estudantes de todas as nações.
O ensino era essencialmente prático e permitia-se o ingresso de
estudantes do sexo feminino. A influência da Igreja na escola de
Salerno declinou progressivamente até desaparecer por completo.
A escola de Salerno contribuiu
principalmente para o desenvolvimento da medicina como profissão.
O curso médico exigia estudos preparatórios e mais 5 anos,
o último dos quais equivalente ao atual internato. Aos alunos aprovados
ao final do curso fornecia-se uma licença para exercer a medicina.
O prestígio da escola
de Salerno decaíu após a criação da escola
de Nápoles e, ao ser extinta em 1811, por um decreto de Napoleão,
já deixara de existir há tempos. Sua contribuição
científica ao progresso da medicina foi pequeno. Os seus ensinamentos
acham-se consubstanciados em um poema intitulado "FLOS MEDICINA" ou "REGIME
SANITATIS SALERNITANUM", do qual existem cerca de 300 edições
em várias línguas. Este poema contém uma série
de regras para conservar a saúde. Os livros escritos pelos professores
de Salerno eram principalmente textos didáticos, alguns com feição
de verdadeiras apostilas. Muitos deles não trazem sequer o nome
do autor. Outros são traduções de textos árabes
feitas por Constantino o Africano, que se tornou conhecido como Magisterorientis
et occidentis. O ensino da anatomia era feito em porcos.
Dentre os mais célebres
médicos de Salerno citam-se:
BENEVENUTO GRASSO, autor
de Practica oculorum, um manual de doenças dos olhos
que foi tido como texto clássico de oftalmologia durante 500 anos.
GILLES DE CORBEIL, que escreveu
todas as suas obras em versos. Um dos poemas, Carmina urinarum,
é dedicado à uroscopia, um dos métodos diagnósticos
mais utilizados na época. Descreveu 20 cores diferentes de urina.
ROGERIUS FRUGARDI, cuja
obra, conhecida por Cyrurgia Rogerii, foi posteriormente
adotada em outras escolas. Nela existe a recomendação do
uso de algas marinhas no tratamento do bócio (as algas contêm
iodo).1,2
Se quereis conservar-vos
incólume e sadio,
evitai os cuidados ansiosos,
guardai-vos da ira.
Poupai o vinho, sede parco
na ceia; não julgueis inútil
o levantar-vos após
a refeição e fugi da sesta ao meio dia
Reter as urinas ou a defecação
seja-vos interdito
Guardando estes conselhos,
longo tempo heis de viver
Caso vos faltem médicos,
três coisas suprirão suas vezes:
hilaridade, repouso e dieta
moderada.
AS UNIVERSIDADES MEDIEVAIS
O legado imperecível
da Idade Média à civilização ocidental consistiu
no estabelecimento das Universidades.
A palavra latina UNIVERSITAS
foi inicialmente empregada a partir do século XII para designar
uma corporação de professores e alunos. Subdividiu-se depois
em dois ramos: a de leis e a de artes e medicina. O local de ensino era
chamado de STUDIUM.
Somente a partir do século
XIV, UNIVERSITAS passou a designar também a própria instituição,
tal como hoje a entendemos.
Bolonha (Bologna)
Uma das mais antigas Universidades
européias, iniciou-se como uma escola de leis, transformando-se
em Universidade em 1158. Era uma Universidade de estudantes, ao contrário
das demais.
Os estudantes pagavam taxas
de manutenção, escolhiam seus professores e elegiam o reitor,
cuja importância na cidade era maior do que a da autoridade eclesiástica.
Os professores eram pagos pelas lições que ministravam e
aqueles mais procurados pelos alunos ganhavam mais que os outros. Para
o curso médico havia exame de qualificação e concedia-se
aos professores total autoridade para seleção dos candidatos.
No século XIII a
cidade passou a contribuir para a contratação de professores.
A cidade orgulhava-se de sua Universidade, que recebia estudantes de outras
nações e chegou a ter 15.000 alunos no ano de 1320.
Havia pena de morte para
os professores que fossem ensinar em outra cidade sem permissão.
Na Universidade de Bologna
destacaram-se:
TADDEO ALDEROTTE (1223-1303).
Foi um clínico famoso na época e escreveu Concilia,
uma coletânea de histórias clínicas.
THEODORICO DE LUCCA (1205-1289),
professor de cirurgia, que revolucionou o tratamento das feridas sugerindo
sutura imediata para evitar a formação de pus, na época
considerando inevitável.
WILLIAM DE SALICETO, médico
e cirurgião, autor de 2 livros: In Scientia Medicinale
e Cyrurgia. Praticava a sutura de nervos e foi o primeiro a fazer
dissecção na Universidade, contrariando as recomendações
da Igreja.
REMONDINO DE LUZZI (1270-1326).
Também conhecido por MONDINO. Autor de um tratado de Anatomia no
qual sistematizou a dissecção. Somente em 1405 a dissecção
foi oficialmente autorizada na Universidade.3,4
Cidade situada ao sul da
França, próxima à Espanha, cedo destacou-se como centro
de ensino médico na Idade Média. Em 1181 o soberano Guilherme
VIII abriu as escolas lá existentes a professores de todos os credos
e nacionalidades. Com isso, judeus e cristãos, perseguidos na Espanha,
emigraram para Montpellier.
A própria população
da cidade era formada de imigrantes de várias nacionalidades. Havia
3 faculdades funcionando isoladamente: leis, artes e medicina, as quais
só foram reunidas em Universidade no ano de 1289.
A cirurgia não integrava
o currículo e deveria ser aprendida à parte. O curso compreendia
3 etapas: a de bacharel (3a e 6m); a de licenciado (mais
6 meses de prática e exames finais), e a de master, após
um exame rigoroso, que durava vários dias. O grau de master
era conferido em uma cerimônia solene na Igreja de S. Firmino, em
presença da comunidade universitária e de convidados.
Foram nomes destacados na
Faculdade de Montpellier:
ARNOLD DE VILLANOVA (1235-1311).
Educado pelos frades dominicanos, estudou teologia e era homem de grande
cultura. Conhecia grego, latim, árabe, falava fluentemente italiano
e catalão, ensinava em provençal, que era a língua
falada no sul da França. Foi médico de papas e reis. Era
astrólogo e alquimista e um experimentador infatigável. Considerado
por muitos como mágico e feiticeiro, foi acusado de heresia, tendo
sido salvo pelo Papa Bonifácio VIII, que era seu cliente. Da sua
vasta obra são mais conhecidos os livros Parábolas
e o seu Breviário, uma espécie de manual sobre todas
as doenças. Traduziu diversas obras de Avicena do árabe para
o latim.
RAMON LULL (1232-1316) era
um missionário dominicano que aos 63 anos passou para a Ordem dos
Franciscanos. Viajou muito e estudou árabe com a finalidade de converter
muçulmanos ao cristianismo. Escreveu cerca de 150 livros sobre teologia,
lógica, cavalaria, educação física, alquimia
e medicina. A ele se atribui a descoberta do éter sulfúrico.
GUY DE CHAULIAC (1300-1368).
Foi o maior cirurgião da Idade Média. Escreveu Cyrurgia
magna, livro que teve 16 edições em latim, 43 em francês
e muitas outras em alemão, holandês inglês e espanhol.5,6
Paris
Ao contrário de Bologna,
a universidade de Paris era uma corporação fechada de professores,
sem a menor participação dos estudantes na sua administração.
Atribui-se a Carlos Magno a sua fundação, porém não
existe nenhum documento que o comprove.
A Universidade de Paris
ficou sob o domínio da Igreja desde 1215. Exigia-se o celibato,
tanto dos professores como dos alunos. Em 1395 um aluno que havia se casado
não pôde receber grau de médico. Em 1443 o Reitor perdeu
seu cargo pelo duplo crime de desposar uma viúva. Essa exigência
foi abolida em 1452. A Faculdade de Medicina permaneceu sob o controle
da Igreja até 1595.
A Universidade de Paris
se destacou pelos cursos de Teologia e Filosofia, o que valeu a Paris a
denominação de Cidade-luz. O ensino médico, entretanto,
nunca alcançou a reputação das escolas de Salerno,
Bologna e Montpellier. O médico que desejasse pertencer à
Universidade deveria abandonar a cirurgia, sob juramento. A Universidade
de Paris aprofundou, assim, a separação existente entre médicos
e cirurgiões, os quais organizaram-se em outra corporação
- a Confraria de S. Cosme.
Para tornar-se professor
da Universidade exigia-se uma série de condições,
dentre as quais a apresentação e defesa de uma tese, inovação
que foi copiada por outras Universidades e sobreviveu até os nossos
dias.
O curso médico a
partir de 1270 era dado em 6 anos, dividido em 2 etapas. O aluno deveria
jurar antes de cada exame que não prejudicaria o seu professor em
caso de reprovação.
Destacaram-se na Universidade
de Paris:
ALBERTUS MAGNUS (1206-?).
Canonizado como santo pelo Papa Gregório XV em 1622. Era teólogo,
filósofo, astrônomo, físico, químico, geógrafo,
botânico e zoólogo. Publicou numerosos livros, destacando-se
por seus conhecimentos sobre plantas medicinais. Suas lições
eram tão concorridas e disputadas que foi necessário construir
um anfiteatro ao ar livre para suas aulas. Foram seus discípulos
Thomas de Aquino, posteriormente canonizado pela Igreja, Roger Bacon e
Petrus Hispanus.
PETRUS HISPANUS (1210-1277).
De origem portuguesa, foi para Paris estudar teologia, lógica e
medicina. Escreveu Thesaurus pauperum. (Tesouro dos pobres),
uma espécie de Vademecum que cuidava de todas as doenças,
"da cabeça aos pés". Foi médico do Papa Gregório
X, que o nomeou cardeal. Com a morte do Papa, foi eleito papa, com o nome
de João XXI. Foi o primeiro e único médico a ocupar
o Papado. Faleceu um ano depois de ter-se tornado Papa.
LANFRANCHI (? - 1306). Ensinou
cirurgia na Faculdade de Medicina, antes da exclusão da cirurgia.
Combateu a separação entre médicos e cirurgiões
e defendeu a idéia de que o cirurgião devia ser médico
e que o médico devia ter conhecimentos de cirurgia. Escreveu um
tratado sob o título de Cyrurgia magna.7,8
Oxford e Cambridge
Foram as primeiras Universidades
inglesas. A Universidade de Oxford foi uma cópia da de Paris e iniciou-se
com estudantes e clérigos ingleses emigrados da França por
razões políticas. Foi oficialmente reconhecida por uma Carta
real de 1217. Em 1229, em conseqüência de um tumulto, parte
dos estudantes transferiu-se para Cambridge, onde foi criada uma nova Universidade.
O ensino médico em
Oxford e Cambridge, tal como em Paris, continuou a ser dado em latim e
era essencialmente teórico. A parte prática consistia na
leitura pelo professor, de textos clássicos, que eram a seguir discutidos
pelos alunos. Daí o nome de lente (aquele que lê) dado
ao professor (em inglês reader, termo ainda hoje usado na
Inglaterra).
Destacaram-se nas duas Universidades
inglesas:
BARTHOLOMEUS ANGLICUS. Escreveu
por volta de 1250 uma enciclopédia intitulada: De proprietatibus
rerum (Das propriedades das coisas), que se tornou obra de consulta
obrigatória na Idade Média. São conhecidas dessa obra
16 edições em latim, 8 em francês, 3 em inglês,
duas em espanhol e uma em holandês. A medicina ocupa 70 capítulos
e retrata os conhecimentos da época. Nela se lê que o baço
é a fonte da alegria, a vesícula da cólera, o fígado
do amor e o coração da sabedoria . "As veias originam-se
do fígado, as artérias do coração e os nervos
do cérebro". Na edição francesa de 1482 aparece pela
primeira vez a ilustração de uma dissecção
anatômica em livre impresso.
ROGER BACON (1214-1292).
Não deve ser confundido Francis Bacon, do século XVI. Era
frade franciscano, de grande cultura, tendo escrito sobre teologia, matemática,
óptica e geografia. Foi um profeta e visionário. Previu a
existência de outro continente, assim como de barcos sem remos, armas
de fogo e máquinas voadoras. Contribuiu para o desenvolvimento das
lentes de aumento, "que poderiam servir para leitura".
Pertence a ele a frase de
que "a razão nada prova, sendo necessária a experiência".
Sua obra foi condenada pela Igreja e ele passou os últimos 15 anos
de sua vida na prisão.
JOHN OF GADDESTEN. Autor
do livro Rosa anglica (1280). Sua pouca modéstia se
espelha na apresentação do livro: "Assim como a rosa se sobrepõe
a todas as flores, assim este livro se sobrepõe a todos os tratados
de medicina". Seu livro foi considerado por alguns críticos como
destituído de valor e Guy de Chauliac a ele se referiu como uma
rosa sem perfume. Uma das poucas coisas que escreveu e que permanece útil
é a restrição de sal aos pacientes edematosos
9
Pádua
A Universidade de Pádua (Padova), a segunda maior universidade criada na Itália, foi fundada por professores e alunos da Universidade de Bologna, que estavam descontentes com o regime autoritário e opressivo a que estavam submetidos. A Universidade de Pádua foi oficialmente reconhecida em 1222 e teve rápido progresso, ultrapassando a de Bologna, em razão de sua conduta liberal, acolhendo professores e alunos independentemente de sua origem, nacionalidade, raça ou credo, sem a interferência da Igreja. Tal como em Bologna, os estudantes elegiam os professores e o Reitor.
Dentre os primeiros professores
de medicina destacaram-se:
BRUNO DA LONGOBARDO. Autor
de um tratado, Cyrurgia magna, uma compilação de autores
gregos e árabes, acrescida de suas próprias observações.
Distinguia o sangramento venoso do arterial, fazia ligadura de vasos com
fio de seda e procurava obter a cicatrização das feridas
por primeira intenção.
PEDRO DE ABANO. Graduado
em Paris em filosofia, matemática e medicina. Gozava de grande reputação
como médico e como professor. Escreveu Conciliator, no qual
procurava conciliar as divergências da medicina árabe com
a medicina grega, e De Venenis, que trata dos venenos, dos síntomas
por eles produzidos e dos respectivos antídotos. Por seus conhecimentos
de astrologia e alquimia, foi acusado de heresia pela Inquisição.
Como falecera antes da condenação e seu corpo não
foi encontrado, queimaram sua efígie em praça pública.
GENTILE DA FOLIGNO. Foi
um dos mais famosos professores. Era médico do conde Ubertino de
Carrara. Realizava dissecções públicas e em uma de
suas autópsias registrou o achado de um cálculo na vesícula
biliar. Escreveu vários trabalhos, o mais importante dos quais Concilia
contra pestilentia.
Com o passar do tempo, a
Universidade de Pádua tornou-se o maior centro do saber na Europa,
atraindo estudantes de todas as nações. Teve a glória
de ter Galileu como um de seus professores durante 18 anos. A área
médica contou com os maiores nomes de sua história, seja
como professores, seja como alunos, tais como Vesalius, Fallopio, Colombo,
Acquapendente, Morgagni, Sanctorio, Fracastoro, Harvey e muitos outros.10,11
Após
a Universidade de Pádua, outras foram fundadas na Itália,
França, Espanha e Portugal, totalizando 16 universidades na Europa
ao final do século XIII. Fora docontinente europeu, contam-se entre
as Universidades mais antigas do mundo as de Marrocos, Cairo e Bagdá,
fundadas, respectivamente, nos anos de 859, 988 e 1233.12
1. V. L, Bullough, The development of medicine as a profession, 1966,
pp. 49-52.
2. A. Castiglioni, História da medicina, 1947,
pp. 350-377.
3. V. L, Bullough, Op. cit.,1966, pp. 60-68
4. R. H. Major, A histotry of medicine,1954, pp. 290-302
5. V. L, Bullough, Op. cit.,1966, pp. 52-60.
6. R. H. Major, A histotry of medicine,1954, pp. 302-312
7. V. L, Bullough, Op. cit.,1966, pp. 68-72..
8. R. H. Major, A histotry of medicine,1954, pp. 312-322.
9. R. H. Major, A histotry of medicine,1954, pp. 322-326.
10. R. H. Major, A histotry of medicine,1954, pp. 327-333.
11. L. Rossetti, the University of Padua, 1983, pp. 5-59
12, Wikipedia, disponível em http://pt.wikipedia.org/wiki
Joffre M de Rezende
Prof. Emérito da Faculdade de Medicina da Universidade
Federal de Goiás
Membro da Sociedade Brasileira de História da Medicina
e-mail: joffremr@ig.com,br
http://www.jmrezende.com.br