NOMES DE ESPECIALIDADES MÉDICAS
Os nomes dados às coisas são necessariamente incompletos e inexatos.
Michel Bréal[1]
Desde o Crátilo,
de Platão, que se discute sobre a propriedade ou impropriedade das
palavras. A História e a Linguística indicam que o significado
das palavras é mera convenção e que a língua
segue o seu curso, indiferente aos ensinamentos dos filólogos e
às normas estabelecidas. Como instrumento de comunicação
e expressão, a língua vai se adaptando às necessidades
de cada época, de cada país, de cada profissão ou
atividade humana, criando palavras novas ou conferindo novas acepções
às já existentes, ampliando ou restringindo o seu significado.
Por isso os dicionários devem ser revistos periodicamente.
As especialidades na área
médica surgiram em função da evolução
da medicina e passaram a exigir a criação de novos nomes.
Nem sempre as denominações escolhidas foram as mais
apropriadas. Uma vez aceitas, entretanto, desvinculam-se de suas origens,
de suas raízes etimológicas, adquirem autonomia semântica
e se revestem de uma conotação que lhes garante a sobrevivência.
Em abono deste ponto de vista daremos alguns exemplos relacionados a alguns setores da atividade médica.
Ortopedia (do grego orthós, reto + paidós, criança + sufixo –ia) foi o nome criado e empregado pela primeira vez por Andry, em 1741, em um livro intitulado: L'orthopedie ou l'art de prévenir et de corriger dans les enfants les difformités du corps.[2] Referia-se, portanto, à correção das deformidades em crianças e não em adultos. A "arte" estendeu-se aos adultos, mas o nome ficou, apesar das tentativas de mudança para Orthomorphie (Delpec) ou Orthopraxie (Begg).
Enfermagem passou a designar a profissão de enfermeiro somente no início do século XX, [3] sem que se saiba ao certo como surgiu o nome. O sufixo -agem, em português, designa ação, estado, coleção, mas não ocupação ou atividade profissional. Pedro Pinto, em seu Dicionário de termos médicos define enfermagem como "ato de enfermar, de tornar-se enfermo" e propõe para a profissão de enfermeiro o termo nosocomia.[4] O espanhol optou por enfermería, palavra já existente naquele idioma com a mesma acepção de enfermaria em português. Em inglês se diz nursing.
Pergunto: quem já usou nosocomia, além do autor da proposta? As escolas de enfermagem no País jamais tomaram conhecimento da impropriedade linguística.
O tratamento de queimados tornou-se ultimamente uma atividade médica especializada. Em Goiânia há um hospital que só trata de queimados, com vários especialistas. Seu antigo proprietário, já falecido, Dr. Nelson Piccolo, consultou o maior linguista do Brasil, Prof. Antônio Houaiss, sobre como deveria chamar-se a nova especialidade. Houaiss sugeriu Causiologia (do grego khaûsis, eos, queimadura). O especialista no ramo seria um causiologista (a palavra soa mais como um termo jurídico). A dificuldade surgiu quando se pensou em fundar uma sociedade nacional da especialidade. Como deveria chamar-se? Sociedade Brasileira de Causiologia? Optaram por Sociedade Brasileira de Queimaduras, deixando de lado a denominação proposta por Houaiss. Melhor teria sido Sociedade Brasileira para estudo das queimaduras, já que as queimaduras não poderiam, a rigor, formar uma sociedade.
Muitas especialidades têm denominação insuficiente para indicar todo o seu campo de atuação.
A gastroenterologia, por exemplo, não se restringe ao estômago e ao intestino, como o nome sugere; abrange outros órgãos do aparelho digestivo, como o esôfago, fígado, pâncreas, vias biliares.
A cardiologia não cuida apenas do coração; do contrário os cardiologistas não poderiam tratar a hipertensão arterial.
Os proctologistas, para não deixar dúvida quanto aos limites de seu feudo, decidiram antepor o colo à antiga denominação de sua especialidade, que passou a chamar-se coloproctologia.
Os otorrinolaringologistas, apesar da extensão quilométrica do nome de sua especialidade, costumam acrescentar um subtítulo explicativo: "Doenças do nariz, ouvido e garganta", como a dizer que lárygx, em grego, além de laringe, quer dizer também garganta.
Os ginecologistas, que em sua maioria também fazem partos, preferem manter acopladas as denominações de ginecologia e obstetrícia, como uma fruta inconha. Alguns abreviam para gineco-obstetrícia, de muito mau gosto.
O sistema urinário deu origem a uma curiosa dicotomia: quando a abordagem é clínica, a especialidade se chama nefrologia; quando exercida por cirurgião, urologia, como se o clínico não tratasse uma cistite ou o cirurgião não operasse o rim.
Anestesista passou a ser simplesmente aquele que aplica a anestesia. Para elevar o status da especialidade e do especialista ao nível dos demais, foi necessário acrescentar o lógos grego, com sua magia - anestesiologia e, consequentemente, anestesiologista.
O mesmo se deu em relação aos oculistas, que trocaram o latim pelo grego e passaram a oftalmologistas.
Os dentistas não fizeram por menos; os que se prezam e têm diplomas na parede passaram a ser odontólogos.
Os radiologistas já não se contentam com a antiga denominação vinculada aos ultrapassados raios-X e estão propondo um novo nome para a especialidade – imaginologia - para incluir outros métodos de imagem como a ultrassonografia, a tomografia computadorizada e a ressonância nuclear magnética. É óbvio, no entanto, que há outros tipos de imagem que pertencem a outras áreas, como a medicina nuclear e a endoscopia.
Os pediatras e psiquiatras foram mais modestos. Dispensaram a marca da erudição e preferiram ser chamados de iatrós, no sentido clássico da práxis médica: aquele que trata, que cuida, que medica.
Os geriatras seguiram o exemplo dos pediatras (afinal são os dois extremos da vida) e deixaram gerontologia para o ramo das ciências médicas que estuda o envelhecimento, embora em alguns países só se empregue gerontologia em ambos os sentidos.
Algumas especialidades mais novas ainda não fizeram sua opção definitiva. É o caso da patologia clínica, para a qual têm sido sugeridas outras denominações, como medicina laboratorial ou biopatologia. O especialista em patologia clínica (patologista clínico) desfruta, a meu ver, de uma posição invejável; a de alguém cujo saber se estende da patologia à clínica; um misto de cientista e médico, capacitado a confirmar ou modificar uma hipótese diagnóstica. A troca do nome da especialidade para medicina laboratorial deixaria o especialista em desvantagem, que passaria a ser simplesmente médico laboratorista, ou então deveria ser chamado por um nome de mais alta hierarquia, como laboratoriologista (pobres das secretárias!) Biopatologia médica seria uma denominação correta e expressiva, não fosse o curso de biomedicina e biomédico, como sabemos, não é médico. Biopatologista sugere antes uma especialização de biólogo. Enquanto aguardamos a decisão dos interessados, já se observa uma tendência para a opção por medicina laboratorial.
Ultimamente tem sido empregada a expressão medicina diagnóstica englobando
todos os exames auxiliares, como se não existisse o
diagnóstico clínico e o médico dependesse
unicamente destes exames no exercício de sua profissão.
Como bem assinala Manuila
et al., muitas palavras afastam-se de tal maneira de seu sentido original
que sua etimologia passa a ter interesse apenas para os historiadores e
lingüistas.[5]
Referências bibliográficas
1. BRÉAL, M. - Ensaios de Semântica (trad.).
São Paulo, EDUC, 1992, p. 123
2. ANDRÉ, N. [ANDRY]. Apud MORTON, L.T.
- A medical bibliography (Garrison and Morton), 4.ed. London, Gower, 1983,
p. 575.
3. HOUAISS, A., VILLAR, M.S. – Dicionário Houaiss
da língua portuguesa. Rio de Janeiro, Objetiva, 2001.
4. PINTO, P.A. - Vocábulos médicos e de
outra natureza.. Rio de Janeiro, Ed. Científica, p. 27
5. MANUILA, A. (Ed.) - Progress in medical terminology.
Basel, Karger, 1981, 107