FÍGADO
O fígado de animais
sempre foi apreciado como alimento de primeira qualidade e com ele se preparavam
e se preparam muitas iguarias.
Uma delas, que enriquece a cozinha
francesa, é o paté de foie gras, pasta preparada com
o fígado gordo de gansos mantidos em regime de superalimentação.
O figo (fruto) também
sempre foi usado como alimento pelo homem. Além disso, dele se utilizava
na antigudade para a ceva e engorda de aves e outros animais.
Em grego clássico
o fígado era designado por hépar e, em latim,
por jecur (o
j como som de i,
iecur),
ambos os termos oriundos do indoeuropeu yekurt.[1]
Na literatura grega aparece
a expressão hépar sykótos, [2] que corresponde,
na literatura latina, a
jecur ficatum, ambas as expressões
com a mesma significação culinária: fígado
preparado com figos.
A interpretação
mais aceita para as citadas expressões é a de que se trata
de fígado de ganso engordado com figos, conforme a versão
da sátira 2.8.88, de Horácio: pinguibus et ficis pastum
iecur anseris albae
(pasta de figado de uma gansa branca engordada
com figos). [3][4] Outra interpretação, mencionada por Ernout
et Meillet é de que se refere a um prato preparado com fígado,
guarnecido com figos. [5]
Do grego hépar,
hépatos,
derivam os termos científicos atualmente em uso, relativos ao fígado,
como hepatologia, hepático, hepatomegalia, hepatite, etc.
Nos clássicos latinos
o órgão era sempre designado por jecur (iecur),
como se lê em Celsus.[6] Do adjetivo correspondente jecoralis,
e com o mesmo sentido de hepático, deriva jecoral em português,
adjetivo pouco empregado atualmente em linguagem médica, porém
ainda mantido nos léxicos contemporâneos.
No latim vulgar a expressão
jecur
ficatum foi paulatinamente sendo substituída pelo último
termo, ficatum, que passou a designar não somente
o "fígado preparado com figos", como o próprio órgão.
Tecnicamente, houve elipse do primeiro nome. Exemplo clássico de
elipse é o da via strata, que deu origem à
palavra estrada.
Conforme ensina o Prof.
Idel Becker atua neste caso a lei da economia, fenômeno linguistico
que tende à simplificação do enunciado, tal como no
caso de chémin de fer métropolitain, que se reduziu
em francês a métro, hoje usado em outras línguas,
inclusive o português (metrô)".[7]
A contiguidade de nomes
pode levar à mudança semântica do vocábulo remanescente.
"As palavras que aparecem repetidas vezes juntas podem exercer influência
umas sobre as outras".[8] Dessa maneira, ficatum passou a
ter o mesmo significado de jecur.
Segundo G. Paris, citado
por Leite de Vasconcellos [9], no latim vulgar existiam as formas ficatum,
fecatum,
fécatum e fícatum. Desta última
resultou fígado em português, o que explica não somente
a morfologia da palavra como o seu acento tônico.
Do latim vulgar derivam
igualmente os termos equivalentes das demais línguas neolatinas:
espanhol, hígado; italiano,
fegato;
francês,
foie; rumeno, ficat.
Já nas línguas
anglossaxônicas os termos empregados para designar fígado
têm outra etimologia.
Liver, em inglês, segundo Mayne,
citado por Skinner, [10] tem a mesma origem de life, vida. Assim
também em alemão:
Leber (fígado) e Leben
(vida).
Referências bibliográficas
1. HAUBRICH, W.S. - Medical meanings. A glossary of word
origins. Philadelphia, Am. College of Physicians, 1997, p. 127.
2. LIDDELL, H.G., SCOTT, R. - A greek-english lexicon,
9.ed., Oxford, Claredon Press, 1983.
3.MARCOVECCHIO, E. - Dizionario etimologico storico dei
termini medici. Firenze, Ed. Festina Lente, 1993, p. 357.
4. HORACE - Satires and epistles. Transl. Niall Rudd,
3.ed. London, Penguin Books, 1997, p. 125.
5. ERNOUT, A., MEILLET, A. - Dictionnaire étymologique
de la langue latine. Histoire des mots, 4.ed. Paris, Ed. Klincksieck, 1979,
p. 232
6. CELSUS, A.C. - De Medicina IV.1 The Loeb Classical
Library, Cambridge, Harvard University Press, 1971, p. 356.
7. BECKER, I. - Nomenclatura biomédica no idioma
português do Brasil. São Paulo, Liv. Nobel, 1968, p. 290.
8. ULLMANN, S. - Semântica. Uma introdução
à ciência do significado, 4.ed. Lisboa, Fundação
Calouste Gulbenkian, 1964, p. 462.
9. VASCONCELOS, J.L. - Lições de filologia
portuguesa, Rio de Janeiro, Livros de Portugal, 1959, p. 360
10. SKINNER, Henry A.: The origin of medical terms, 2.ed.
Baltimore, Williams & Wilkins, 1961, p. 255
Publicado no livro Linguagem Médica, 3a. ed., Goiânia, AB Editora
e Distribuidora de Livros Ltda, 2004..
Joffre M de Rezende
Prof. Emérito da Faculdade de Medicina da Universidade Federal
de Goiás
Membro da Sociedade Brasileira de História
da Medicina
e-mail: pedro@jmrezende.com.br
http://www.jmrezende.com.br
10/9/2004.