GASPAR VIANNA (1885-1914)
MÁRTIR DA CIÊNCIA E BENFEITOR DA HUMANIDADE
Em sua breve vida de apenas
29 anos, Gaspar de Oliveira Vianna consagrou-se como um dos mais geniais
cientistas na história da medicina brasileira. Natural de Belém,
Pará, estudou medicina na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro.
Desde o início do curso, sentiu-se atraído para as atividades
de laboratório. No segundo ano, foi aluno de Chapot-Prevost, respeitado
cirurgião na época e também professor de Histologia.
Além das demonstrações práticas constantes
do programa curricular, Chapot-Prevost estava sempre pronto a atender pessoalmente
os alunos e seu laboratório permanecia aberto, inclusive aos domingos
e feriados, à disposição dos alunos interessados.
Cedo, Vianna se destacava em sua turma, principalmente na parte prática,
em que dominava as técnicas de preparo do material e de coloração.
Organizou por iniciativa própria uma rica coleção
de preparações microscópicas, que, a pedido de Chapot-Prevost,
foi doada ao Laboratório de Histologia da Faculdade para fins didáticos.
Antes mesmo de terminar
o curso de graduação, Gaspar Vianna deu aulas particulares
de histologia para alunos do segundo ano. Foram seus alunos Magarinos Torres
e Lauro Travassos, que se tornariam igualmente grandes cientistas do Instituto
Oswaldo Cruz.
Em 1907, vagando o lugar
de assistente da Seção de Patologia do Hospital Central de
Alienados, Gaspar Vianna prestou concurso para preenchimento da vaga, tendo
sido classificado em primeiro lugar e nomeado a seguir. Era chefe da seção
o Prof. Bruno Lobo, que também contribuiu para a sua formação.
Sob a orientação deste grande mestre, realizou estudos sobre
a célula nervosa, que serviriam para a sua tese de doutoramento,
intitulada Estrutura da célula de Schwann nos vertebrados,
defendida em 1909.
Aos poucos, como autodidata,
Gaspar Vianna tornou-se exímio histopatologista aproveitando os
recursos de que dispunha no laboratório do Hospital de Alienados
para estudar material que coletava na Santa Casa de Misericórdia.
Terminando o curso médico,
foi convidado por Juliano Moreira, diretor do Hospital. para ali permanecer
como patologista, porém Oswaldo Cruz, que já tivera informações
sobre o seu potencial, o chamou para integrar a plêiade de jovens
cientistas que estava arregimentando para o Instituto de Manguinhos.
Naquele ano de 1909, Carlos
Chagas havia descoberto a Tripanosomíase americana e Gaspar Vianna
foi incumbido, e entusiasmou-se com a idéia, de estudar a nova enfermidade
em seus aspectos anatomopatológicos. Dedicou-se em tempo integral
a esta tarefa e, em pouco tempo, estabeleceu as bases da patologia da doença
de Chagas. Descreveu as lesões nos tecidos parasitados e descobriu
a fase evolutiva do Tripanosoma cruzi nos vertebrados, de
multiplicação intracelular "por divisões binárias
sucessivas sob a forma de leishmanias e sua transformação
em tripanosomas ainda no interior da célula", o que corresponde,
na nomenclatura atual, a amastigotas e tripomastigotas.
Simultaneamente com seus
estudos sobre a tripanossomíase, Gaspar Vianna interessou-se pela
leishmaniose, endemia que grassava no oeste paulista, na região
de Bauru, conhecida como úlcera de Bauru, que dificultava
a abertura da via férrea ligando aquela cidade ao estado de Mato
Grosso.
Em 1909, A. Carini e U.
Paranhos e, independentemente, A. Lindenberg, relataram o achado da Leishmania
tropica em casos de úlcera de Bauru, identificando-a
à leishmaniose de países do Oriente Médio, denominada
botão
do oriente.
Em 1911, no mesmo ano em
que publicava seu clássico trabalho sobre a anatomia patológica
da tripanossomíase, descreveu uma nova espécie de leishmania,
a que denominou Leishmania braziliensis, diferenciando-a da Leishmania
tropica.
A leishmaniose cutâneo-mucosa,
uma doença grave que acomete principalmente a face e as mucosas
da boca e do nariz, deformante, de evolução progressiva,
não dispunha, até então, de tratamento eficaz. Apesar
de ser patologista, Gaspar Vianna, inconformado com a inexistência
de uma terapêutica eficaz, decidiu realizar pesquisas nesse sentido.
Depois de experimentar sem
êxito o Salvarsan, um composto de arsênico então
utilizado no tratamento da sífilis, teve a idéia de usar
um composto de antimônio, cuja ação parasiticida já
era conhecida. Optou pelo tartarato duplo de antimônio e potássio,
denominado nas farmacopéias de tártaro emético.
O tártaro emético
deve seu nome à sua ação emetizante, provocando vômitos,
e foi muito usado desde a antigüidade até o século XIX,
quando foi abandonado por seus efeitos tóxicos semelhantes aos dos
sais de arsênico.
Receoso de acidentes, empregou
de início soluções muito diluídas, começando
por 1:1.000 e aumentando progressivamente sua concentração,
até 1:100, que foi bem tolerada pelos doentes. O medicamento era
administrado em injeções intravenosas de 10 ml, repetidas
a intervalos até a completa cicatrização das lesões.
Vianna apresentou sua descoberta ao 7o. Congresso Brasileiro
de Medicina e Cirurgia, realizado em Belo Horizonte, em abril de 1912.
Comprovada a eficácia
desta terapêutica na leishmaniose cutâneo-mucosa, a mesma foi
empregada com igual sucesso na leishmaniose visceral (calazar) e no granuloma
venéreo.
Em sua curta existência,
realizou ainda Gaspar Vianna outros estudos sobre várias espécies
de tripanosomas, sobre o ainhum, a moléstia de Posadas-Wernick e
algumas micoses. Em colaboração com Arthur Moses, descreveu
uma nova micose humana causada por um fungo ainda não descrito,
o Proteumyces infestans.
Gaspar Vianna era um trabalhador
infatigável, que se dedicava de corpo e alma às pesquisas
que empreendia. Seu prematuro falecimento decorreu de seu próprio
trabalho. Em abril de 1914, ao realizar a autópsia de um caso de
tuberculose pulmonar, incisou o tórax e a pleura e recebeu no rosto
um jato do líquido que se encontrava sob pressão na cavidade
torácica. Poucos dias depois manifestou os sintomas de tuberculose
miliar aguda, vindo a falecer dois meses após o incidente, em 14/6/1914.
Gaspar Vianna é considerado
um mártir da ciência e um benfeitor da humanidade por sua
descoberta da cura da leishmaniose, que causava milhares de vítimas
em todo o mundo.
Publicado em Ética Revista 5(1):21-22, 2008
Joffre M de Rezende
Prof. Emérito da Faculdade de Medicina da Universidade Federal
de Goiás
Membro da Sociedade Brasileira de História
da Medicina
e-mail: pedro@jmrezende.com.br
http://www.jmrezende.com.br