HISTÓRIA DA MEDICINA
REMINISCÊNCIAS DA GRIPE ESPANHOLA
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A pandemia de gripe que ocorreu nos anos 1918-1919, ao final da I Guerra
Mundial, é conhecida como gripe espanhola, denominação
imprópria porque a mesma não se originou na Espanha.
Embora o rei da Espanha, Afonso XIII, tenha sido vítima da gripe,
acredita-se que a origem desta denominação se deve ao fato
de ter sido a Espanha um dos países mais atingidos no início
da epidemia e ter divulgado para outros países a gravidade da doença.
Epidemias de gripe acompanharam a humanidade desde épocas remotas
e há registros de muitas pandemias no passado, porém todas
com mortalidade inferior a de 1918-191
A gripe, ou influenza, para usar o nome correto da terminologia
médica, é causada por um vírus que só foi isolado
em 1933 e que apresenta a propriedade de sofrer mutações
a intervalos variáveis de 10 a 20 anos. Admite-se que este vírus
tenha tido sua origem na China, em aves aquáticas e, por recombinação
de genes, tenham surgido cepas infectantes para outras aves, mamíferos
e o próprio homem.
Os vírus em geral
são constituídos de um núcleo central de DNA ou RNA,
denominado vírion,
recoberto por uma camada protéica,
chamada capsídio.
São micro-organismos que não
se reproduzem como as bactérias e só se replicam no interior
de outras células.
Há
três tipos de vírus da influenza: A, B e C, sendo que somente
o tipo A causa grandes epidemias e pandemias. Na superfície do vírus
A encontram-se hemaglutininas que atuam facilitando sua adesão e
penetração no interior da célula, e a enzima neuraminidase,
que possibilita a extrusão das novas partículas virais que
se formam.
Há
16 formas diferentes de hemaglutinina e nove de neuraminidase, as quais
servem como referência para a classificação dos subtipos
do vírus A. Na nomenclatura oficial, a hemaglutinina é representada
pela letra H, seguida de um número, e a neuraminidase pela letra
N, também seguida de um número. Assim, a notação
AH1N1 da gripe atual significa que o vírus é do tipo A, com
hemaglutinina da forma 1 e a neuraminidase também da forma 1.
Em
outras epidemias já foram identificados os subtipos H2N2 (gripe
asiática, 1957), H3N2 (gripe de Hong Kong, 1968), H5N1 (gripe aviária,
China, 1997).
Além
do tipo e subtipos, são comuns variantes de um mesmo subtipo, o
que dificulta a produção da vacina específica.
O
vírus da gripe espanhola foi recuperado de cadáveres congelados
encontrados no Alaska e só foi identificado em 1990, sendo também
do subtipo AH1N1.
Recentemente,
um estudo demonstrou que o vírus da gripe espanhola possui três
genes que o tornam apto a infectar células pulmonares, além
do epitélio traqueobrônquico, o que poderia explicar a alta
mortalidade daquela pandemia, pois a maioria das enfermos morria em decorrência
de complicações pulmonares.
Não
se sabe ao certo quando nem onde teve início a epidemia.
Em
março de 1918 foram registrados alguns casos em soldados norte-americanos
que iam ser enviados à Europa para tomar parte no exército
aliado da I Guerra Mundial. Em abril, a epidemia manifestou-se simultaneamente
em vários paises eropeus, na Austrália, na China, na Índia
e países do sudeste asiático
O
exército alemão havia planejado uma grande ofensiva contra
a França, que foi frustrada pela disseminação da gripe
em suas tropas.
A
partir de agosto de 1918 houve um recrudescimento da epidemia, referida
como “segunda onda”, de maior gravidade, que se estendeu a todas as regiões
da Europa, da Ásia, Sibéria, costa oeste da África,
ilhas do pacífico e países do continente americano.
Em setembro de 1918, os Estados Unidos enviaram para a França,
em um navio, 9.000 soldados. Na travessia do Atlântico, a gripe se
alastrou na corporação e no 4º. dia de viagem já
havia 2.000 enfermos. O número de mortes aumentava a cada dia e
os mortos eram simplesmente jogados ao mar. Os sintomas iniciais
eram febre, cefaléia, dores musculares, tosse, congestão
nasal. A doença evoluía rapidamente nos casos mais graves
para complicações pulmonares, que se acreditava, na época,
fossem devidas ao bacilo de Pfeiffer, pois ainda na se conheciam os vírus.
A mortandade foi geral. Para citar apenas alguns países que contabilizaram
os óbitos ocorridos nesta segunda onda, o número de mortos
foi de 225.000 na Alemanha, 375.000 na Itália, 228.000 na Inglaterra.
Nos Estados Unidos, somente em três cidades (New York, Philadelphia
e Chicago) ocorreram 63.200 óbitos.
Não
há dados estatísticos sobre a mortalidade global; as estimativas
variam entre 20 e 50 milhões de vítimas em todo o mundo,
a maior parte na Índia e outros países da Ásia e da
África.Uma terceira onda da epidemia ocorreu em 1919, porém
mais branda e com menor número de vítimas.
Em
novembro de 1918 foi assinado em Versailles o tratado de paz entre os beligerantes,
com a vitória dos aliados sobre a Alemanha e o Império Austro-Húngaro,
pondo fim à I Guerra Mundial. Sem dúvida, a pandemia da gripe
contribuiu para o fim das hostilida
As conseqüências da pandemia foram terríveis. A maioria
dos países não possuía serviços de saúde
adequados a uma situação de emergência. O número
de leitos hospitalares era insuficiente e o atendimento aos enfermos precário;
os médicos e enfermeiros eram poucos para a enorme demanda e muitos
deles morreram vitimados pela gripe. Muitos tratamentos empíricos
foram tentados, sem qualquer resultado.
O reflexo da catástrofe
nas atividades econômicas se fez sentir em todas as nações;
no comércio, na indústria, e sobretudo na agricultura. A
produção de alimentos tornou-se insuficiente e houve fome
em vários países, especialmente na Índia.
A gripe espanhola no Brasil
Os
primeiros casos de gripe espanhola no Brasil ocorreram em setembro de 1918.
Neste mês aportaram ao Brasil navios procedentes da Europa com pessoas
infectadas a bordo. O vírus se propagou rapidamente na população
do Rio de Janeiro e difundiu-se a todo o território nacional, especialmente
nas maiores cidades, como São Paulo, Curitiba, Porto Alegre, Belo
Horizonte, Salvador e Recife, causando grande mortandade. Calcula-se que
tenha havido cerca de 35.000 mortes, a maior parte das quais nos meses
de outubro e novembro de 1918. Somente no Rio de Janeiro, no período
de 13 de outubro a 15 de novembro de 1918 foram registrados 14.348 óbitos.
A
situação na então Capital federal tornou-se caótica:
doentes morriam sem assistência médica, serviços públicos
paralisados, escolas e casas de diversão fechadas, desabastecimento,
remédios caros e escassos, falta de alimentos, fome e saques aos
armazéns. Cadáveres jaziam insepultos e abandonados, pois
não havia quem os transportasse ao cemitério e quem os enterrasse.
A polícia passou a usar presidiários para esse mister, que
cortavam dedos e orelhas dos mortos para se apossarem de anéis e
brincos deixados na vítima.
Apesar
dos esforços das autoridades sanitárias, orientadas por Carlos
Chagas, na época diretor do Departamento Nacional de Saúde,
a falta de uma infraestrutura adequada, de leitos
hospitalares em número suficiente, e de pessoal qualificado para
cuidar dos enfermos, a epidemia transformou-se em calamidade pública.
Em
São Paulo, os serviços de saúde estavam mais bem organizados
e foram mais eficientes. Coube a Arthur Neiva, que dirigia o Serviço
Sanitário do Estado, coordenar os trabalhos de atendimento à
população. Foram improvisados 43 hospitais na capital e 119
no interior. Mesmo assim, o número de óbitos em todo o Estado
foi de 12.386.
Em
Curitiba, somente no dia 14 de outubro de 1918, foram registradas 24 mortes.
A imprensa foi censurada e o jornal Diário da Tarde, em protesto,
publicou apenas o título A Influenza, deixando em branco o espaço
destinado ao texto.
Em
Porto Alegre foi criado um cemitério especialmente destinado às
vítimas da gripe espanhola.
Como
não se conhecia a natureza da doença, os mais diversos tratamentos
foram utilizados, alguns com aprovação médica, como
purgativos e sais de quinino
Uma
das mais importantes vítimas foi Rodrigues Alves, que se candidatara
a novo mandato como Presidente da República e faleceu a 19 de janeiro
de 1919, vitimado pela gripe espanhola.
Fontes bibliográficas
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Rev. Assoc. Med. Bras. 55(3) : 230-231, 2009.
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http://historia.abril.com.br/fatos/furia-gripe-espanhola-433549.shtml
Acesso em 30/08/2009
6.Ujvari, S.C. – A História
e suas epidemias. Rio de Janeiro, Senac Rio, 2003.
Joffre M de Rezende
Prof. Emérito
da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Goiás
Membro da Sociedade Brasileira
de História da Medicina
e-mail: pedro@jmrezende.com.br
http://www.jmrezende.com.br
8/12/2009