ICTERÍCIA
Icterícia provém
do grego ikteros, através do latim icteritia.
A palavra grega já era usada ao tempo de Hipócrates para
designar a coloração amarelada da pele e das mucosas, causada
pela deposição de pigmento biliar.
De íkteros
deriva o adjetivo ikterikós, donde ictericus
em
latim e ictérico em português.
Para indicar a cor amarela
de modo genérico possui a língua grega outro vocábulo
- xanthós. Íkteros designa especificamente
a tonalidade amarelo-esverdeada, própria da icterícia.
Existe um pássaro
de plumagem dourada, com reflexos esverdeados, que recebeu em grego o nome
de ikteros. [1] A ele se atribuía o dom de curar a
icterícia. Bastaria o doente encarar o pássaro e ficaria
instantaneamente curado, enquanto a ave morria.
Plinius identifica este
pássaro pelo nome latino de galgulus, que corresponde
ao gênero Oriolus, do qual existem várias espécies
espalhadas por toda a Europa.[2] A espécie mais comum (O.
oriolus)
é conhecida em Portugal pelos nomes de verdilhão e
papa-figos; na Espanha, por oropéndula, e na França
por loriot.
Não se sabe se a
doença recebeu o nome por causa da ave, ou, inversamente, se o nome
da ave procede da doença.
Na classificação
ornitológica atual Icterus designa um gênero
da família Icteridae, que é exclusiva do continente
americano. Ao gênero Icterus pertence o nosso sofrê
ou corrupião.[3]
Plinius refere-se também
a uma pedra de cor amarela, denominada em grego ikterías,
à qual se atribuíam efeitos benéficos no tratamento
da icterícia.[2]
A existência de mais
de um tipo de icterícia não escapou à arguta observação
de Hipócrates. Ensinava ele que a icterícia associada à
esclerose do fígado era de mau prognóstico (Aph. 6.42).[4]
Na medicina romana a icterícia
era também chamada morbus arquatum (doença
do arco-íris), pela variação de tonalidade, e de morbus regium
(doença real). A razão desta última denominação
nos é dada por Celsus quando se refere ao tratamento dos enfermos
ictéricos: "O doente, em um leito e quarto confortáveis,
será distraído por jogos, divertimentos e prazeres, que dispõem
o espírito às idéias alegres, e é por isso,
sem dúvida, que esta doença recebeu o nome de real".[5]
Poderia parecer que o repouso
fazia parte do tratamento da icterícia. Entretanto, no mesmo texto,
Celsus recomenda exercício, massagens, banho no inverno e natação
no verão (Per omne vero tempus utendum est exercitatione,
fricatione, si hiemps est, balneo, si aestas, frigidis natationibus...).
[5]
A denominação
de doença real e a crença na cura pelo poder mágico
da ave dourada perduraram até o século XVI, como se depreende
dos versos de Camões, na poesia "Carta a uma dama".[6]
"Quem da doença real
De longe enfermo se sente
Por segredo natural
Fica são vendo somente
Um volátil animal".
Afrânio Peixoto, em
seus Ensaios Camonianos, [7] interpreta o sentido desses versos.
Doença
real é a icterícia; volátil animal é
aquele que voa, ou seja, a ave.
Em latim há uma outra
palavra para indicar a cor amarelo-esverdeada, que é galbinus.
De galbinus provém jaune em francês,
donde jaunisse, com o mesmo sentido de ictère. [8]
Do antigo francês jaunice deriva jaundice em inglês.[9]
Referências bibliográficas
1. LIDDELL, H.G., SCOTT, R.. - A greek-english lexicon,
1983
2. PLINIUS. - Naturalis Historia, XXX. 93. The Loeb Classical
Library, 1979, vol.8, p. 339
3. SICK, H. - Ornitologia brasileira, 1985, p.
646
4. HIPPOCRATE. - Aphorismes. Oeuvres completes, trad.
Littré, 1839-1861, t.I, p. 280
5. CELSUS - De Medicina III 24.5, The Loeb Classical
Library, 1971, vol. 1, p. 341-2
6. CAMÕES, L. - Obras completas, 1970, p.
724
7. PEIXOTO, A. - Ensaios camonianos, 1981, p. 172
8. BLOCH, O., VON WARTBURG, W. - Dictionnaire étymologique
de la langue française, 7.ed., 1986
9. OXFORD ENGLISH DICTIONARY (Shorter), 3.ed.,
1978
Publicado no livro Linguagem Médica, 3a. ed., Goiânia, AB Editora
e Distribuidora de Livros Ltda, 2004..
Joffre M de Rezende
Prof. Emérito da Faculdade de Medicina da Universidade Federal
de Goiás
Membro da Sociedade Brasileira de História
da Medicina
e-mail: pedro@jmrezende.com.br
http://www.jmrezende.com.br
10/9/2004.