BÍLEO, ÍLEUS, ÍLIO
São
três palavras semelhantes, com acepções distintas.
Íleo
tem
um duplo significado em português; tanto se refere ao segmento distal
do intestino delgado, como à síndrome de oclusão intestinal
[13]. Trata-se de uma forma convergente, resultante da tradução
vernácula de duas palavras latinas: ileum e ileus,
enquanto ílio procede de outra palavra latina, ilium
[14]. Tanto ileum como ileus, em latim, provêm
do grego eileós, do verbo eiléo,
na
acepção de enrolar, torcer, dar voltas [11].
Ileum designa
o segmento distal do intestino delgado. Admite-se que esta denominação
provém da disposição anatômica deste segmento,
com numerosas voltas, como se estivesse torcido, ao passo que o segmento
proximal do delgado recebeu o nome de jejunum (jejuno) por
apresentar-se sempre vazio à autópsia [8,15].
A introdução
de íleum, em latim, como termo anatômico relativo
ao intestino, data do século XVII. Até então não
se dividia o intestino delgado em jejuno e íleo. O termo aparece
pela primeira vez em um livro de autor anônimo, intitulado Anonymi introductio anatomica,
publicado em 1618, em Leiden. Neste livro o autor se refere ao ileum
como tracto inferior abaixo do jejuno [15].
Ileus refere-se
à síndrome de oclusão intestinal. É termo bem
antigo, que remonta aos livros hipocráticos. No aforismo 3.22,
de Hipócrates, há referência a eileós, (ileus)
como uma das doenças que ocorrem no outono e no verão [9].
A descrição dos sintomas desta entidade aparece no livro
sobre patologia interna, onde há menção a duas modalidades
de eileós: sem e com icterícia. O quadro clínico
descrito, porém, não coincide com o da oclusão intestinal
[10].
Somente em Galeno (130-200d.C.)
encontramos bem configurado o quadro clínico da obstrução
intestinal, no seguinte trecho do livro IV, capítulo II: "Também
ocorrem dores muito fortes na parte mais alta dos intestinos, dores que
torturam os doentes de tal modo que eles vomitam e ao final chegam a vomitar
os excrementos; raramente escapam desta afecção. Alguns médicos
a chamam eíleós e outros, khordapsós,
quando aparece um tumor na região dos intestinos" [7].
Celsus (25a.C.-50d.C.),
em sua obra De medicina, redigida em latim, procurou diferenciar
a obstrução do intestino delgado da obstrução
do cólon. No livro IV.20, lemos: "Duas doenças têm
sede nos intestinos; uma no delgado, outra no grosso. A primeira é
aguda; a segunda pode tornar-se crônica. Diocles de Caristo chamou
a doença do intestino delgado khordapsós e a do grosso,
eíleós.
Vejo que ultimamente a primeira é chamada
eileós e
a segunda kolikós. A primeira produz dor tanto acima como
abaixo do umbigo e nenhum movimento ou gás passa para baixo" [4].
Deve-se a Celsus a introdução
no vocabulário médico da palavra volvulus com
o mesmo sentido de
ileus.
Na Idade Média e
na Renascença, os casos de oclusão intestinal, independentemente
de sua causa, eram rotulados de ileus, volvulus,
ou recebiam denominações equivalentes, como miserere
mei ou iliaca passio [14].
Morgagni (1682-1771), o
fundador da anatomia patológica, assegurava que o ileus
poderia ser causado por diferentes entidades patológicas, além
da intussuscepção, hérnia ou inflamação
[1].
Somente no século
XIX os autores passaram a classificar o ileus de acordo com
sua etiologia. Treves, em seu livro Intestinal obstruction, publicado
em 1884, separou definitivamente a oclusão devida a causas mecânicas
do ileus
adinâmico [1]. Desde então, ileus
passou a ser empregado de preferência para o ileus
paralítico ou adinâmico, por atonia intestinal, e volvulus
(volvo) para a torção de uma alça, que ocorre mais
comumente no cólon sigmóide.
O outro termo que estamos
analisando, ílio,
designa o osso da bacia, cuja individualidade
só se observa no feto. No adulto é a maior das três
partes em que se divide o osso ilíaco.
A denominação
latina de os ilium
foi introduzida em osteologia por Vesalius
em 1543 e preservada na Nomina Anatomica. Há pelo menos duas
hipóteses plausíveis para a escolha de ilium por
Vesalius. A primeira é de que o termo se vincule ao latim ilia,
com o sentido de ilhargas, flancos, ventre, tomando em consideração
a situação topográfica do osso; a segunda é
de que o termo signifique realmente "osso torcido" [12,15].
Alguns autores sugerem que
o nome de ilium foi dado ao osso por estar o mesmo em contato
e, de certo modo, protegendo o íleo. Esta explicação
não condiz com o fato histórico de que a denominação
de ilium, dada ao osso, teria sido anterior à denominação
de
ileum,
atribuída ao intestino.
De qualquer modo, independentemente
da filiação etimológica dos três termos latinos,
ileum,
ileus e
ilium
se transferiram às línguas
modernas com significado específico e morfologia própria,
como se vê a seguir::
Idioma Intestino Oclusão Osso
Latim ileum ileus ilium
Português íleo íleo ílio
Espanhol íleon íleo ilion
Italiano ileo ileo ilium
Francês iléon iléus ilion
Inglês ileum ileus ilium
Alemão ileum ileus ilium
Palavras
homógrafas com significados diferentes devem ser evitadas na linguagem
científica. O ideal é que cada coisa seja designada por um
só termo e que cada termo designe uma só coisa [2]. Em português,
assim como em italiano, usa-se íleo tanto para o segmento
intestinal como para a síndrome de oclusão intestinal.
Seria de todo conveniente
a manutenção em português da forma latina ileus
para
designar a síndrome de oclusão intestinal, a exemplo do inglês
e alemão, ficando íleo como termo anatômico restrito
ao segmento distal do intestino delgado.
Em espanhol usa-se ileo
em
lugar de ileus para a oclusão intestinal, mas não
há homografia, porquanto o intestino se denomina íleon.
De início houve certa
vacilação em português, antes que se consolidasse a
terminologia atual, e encontramos em dicionários do século
passado o registro de ileon como termo anatômico, à
semelhança do espanhol [16] e ileos, como sinônimo
de íleo, para nomear a síndrome de oclusão
intestinal. [4]
A forma latina ileus,
transposta para o vernáculo, é encontrada em escritos médicos,
sobretudo de autores portugueses, em lugar de íleo, e encontra-se
averbada no Dicionário enciclopédico de medicina,
de Céu Coutinho [4].
O ideal seria usar íleo
somente
como termo anatômico para designar a parte distal do intestino delgado
e ileus para a síndrome de oclusão intestinal, evitando-se
a homonímia, que é sempre inconveniente em terminologia científica.
A terminação latina em
us não é estranha
ao nosso idioma, pois já temos em português exemplos de várias
palavras que conservaraam esta terminação em sua passagem
para o vernáculo, tais como íctus, ônibus, ônus,
lúpus, vírus etc.
Referências bibliográficas
1. BALLANTYME, G.H. - The meaning of ileus. Its changing
definition over three millenia. Am. J. Surg. 248:252-256, 1984.
2. BECKER, I. -: Nomenclatura biomédica no idioma
português do Brasil. São Paulo, Liv. Nobel, 1968.
3. BLANCARD, S. - Lexicon medicum graeco-latino-germanicum,
5.ed., Hallae Magdeburgicae, 1718.
4. CELSUS, A.C. - De Medicina. The Loeb Classical Library,
Cambridge, Harvard University Press, 1971, p.426.
5. COUTINHO, A.C. - Dicionário enciclopédico
de medicina, 3.ed. Lisboa, Argo Ed., 1977.
6. FIGUEIREDO, C. - Novo Dicionário da Língua
Portuguesa. Lisboa, Ed. Tavares Cardoso & Irmão, 1899.
7. GALENO - Oeuvres anatomiques, physiologiques et médicales.
Trad. Ch. Daremberg. Paris, Baillière, 1854, p.671
8. HAUBRICH, W.S - Medical meanings. A glossary of word
origins. Philadelphia, Am. College of Physicians, 1997.
9. HIPPOCRATES - Aphorisms (III.22). Loeb Classical Library,
vol. IV. Cambridge Harvard University Press, 1967, p.131.
10. HIPPOCRATES - Internal affections (44.45). Loeb Classical
Library, vol. VI. Cambridge Harvard University Press, 1988,p. 214-215.
11. LIDDELL, H.G., SCOTT, R. - A greek-english lexicon,
9.ed., Oxford, Claredon Press, 1983.
12. MARCOVECCHIO, E. - Dizionario etimologico storico
dei termini medici. Firenze, Ed. Festina Lente, 1993.
13. REY, L .- Dicionário de termos técnicos
de medicina e saúde. Rio de Janeiro, Guanabara Koogan S.A., 1999.
14. SARAIVA, F.R.S. - Novíssimo Dicionário
latino-português, 10. ed., Rio de Janeiro, Livraria Garnier, 1993.
15. SKINNER, H.A. - The origin of medical terms, 2.ed.
Baltimore, Williams & Wilkins, 1961.
16. VIEIRA, D. - Grande dicionário português
ou Tesouro da língua portuguesa. Porto, 1871-1874
Publicado no livro Linguagem Médica, 3a. ed., Goiânia, AB Editora
e Distribuidora de Livros Ltda, 2004..
Joffre M de Rezende
Prof. Emérito da Faculdade de Medicina da Universidade Federal
de Goiás
Membro da Sociedade Brasileira de História
da Medicina
e-mail: pedro@jmrezende.com.br
http://www.jmrezende.com.br
10/9/2004.