QUE TEM A VER JULIO CÉSAR COM A OPERAÇÃO CESARIANA?
Caio Júlio César
(Gaius
Julius Caesar, em latim) foi o primeiro dos doze césares do
Império Romano. Antes, apenas um sobrenome de família,
Caesar
tornou-se
um título equivalente ao de Imperador, tal foi a destacada atuação
e o poder alcançado por Júlio César como general,
político, administrador e governante. O título de Caesar
passou
para o germânico como Kaiser
e para o russo como
Tzar ou
Czar.
Júlio César
nasceu em Roma no ano 100 a.C. e morreu em 44 a.C., assassinado às
portas do Senado romano, quando os seus partidários tramavam a abolição
da república e sua coroação como Rei, investido de
poder absoluto.
Segundo a tradição,
Júlio César teria nascido pela abertura do ventre de sua
mãe, fato este registrado por Plinius, no século I a.C. [1]
Desde então estabeleceu-se
um vínculo entre Júlio César e a denominação
de cesariana ou cesárea dada a esta operação. Duas
versões são encontradas na literatura. A primeira, a mais
difundida, é a de que o nome da operação teria sido
adotado em decorrência de ter Júlio César assim nascido.
A segunda atribui o nome de Júlio Cesar ao fato de ele ter nascido
por operação cesariana, adjetivo etimologicamente derivado
do verbo latino caedo, caedici, caeso, caedere, cortar. Os
romanos chamavam de caesares ou caesones aos
que eram retirados com vida por abertura da parede abdominal após
a morte da mãe. Tanto a primeira como a segunda versão são
encontradas em obras de referência das mais acreditadas, como as
que citamos a seguir. Veremos mais adiante que ambas as versões
são inconsistentes.
1a. VERSÃO
SKINNER, H.A. - The origin of medical terms, 1961.
"Cesarian section – In ancient times the procedure was adopted in the case of death of a pregnant woman in order to save the child if possible. Julius Caesar is said to be born in this manner, hence the name of caesarian section".(2)
WEBSTER’S WORD HISTORIES, 1989.
"Caesar’s name is also perpetuated in english term caesarian ‘the surgical incision of the walls of the abdomen and uterus for the delivery of offspring."(4)
Outras fontes registram esta primeira versão, porém colocando em dúvida a sua veracidade;
BARNHART, R.K. - Chambers dictionary of etymology, 2001
"Caesarian section – Surgical delivery of young through the abdominal wall; so called from the belief (often disputed) that Julius Caesar was born by means of this operation". (5)
ENCYCLOPAEDIA BRITANNICA. Chicago, 1961.
"Caesarian section – It is so called, probablly incorrectly, from a legend of its employment at the birth of Julius Cesar."(6)
HOUAISS, A., VILLAR, M.S. – Dicionário Houaiss da língua portuguesa, 2001.
"Cesárea, m.q. cesariana - Etim. fr. césarienne... do antropônimo Cesar, este sobrenome tem sido vinculado por diversos autores latinos a caesus (a caeso matris utero); donde o substantivo Caesar no sentido de tirar da mãe através de incisão; etim. tida como falsa e/ou popular por outros estudiosos, entre eles Ernout et Meillet."(7)
2a. VERSÃO
MORRIS, W. – The american heritage dictionary of english language, 1981
" Cesarean section – from an unhistorical tradition that the eponymous ancestor of the Roman family Caesar (or Julius Caesar himself) was born by this operation" (8)
DAUZAT, A., DUBOIS, J., MITTERRAND, H. - Nouveau dictionnaire étymologique et historique, 1994.
"Césarienne (opération) 1560. Paré; lat. caesar, enfant mis au monde par incision, decaedere, couper; le surnom Caesar a la même origine."(9)
FERREIRA, A.B.H. - Novo dicionário da língua portuguesa, 3.ed., 1999.
"Caesarea (<lat. caedere, cortar); acredita-se que Júlio César assim se tenha chamado por ter nascido por cesariana".(10)
Embora caesar ou
caesone
designe
em latim a criança que veio ao mundo por incisão do abdome
e do útero após a morte da mãe, não há
nenhuma prova de que o sobrenome de Caesar tenha a mesma origem; ele já
existia desde Júlio Sexto César (208 a.C.) e o pai de Júlio
César tinha o mesmo nome do filho: Caio Júlio Cesar.
Caesar era sobrenome de
uma família de nobres patrícios da linhagem Júlia,
assim chamada por descender de Julius, filho de Enéas, o herói
troiano que emigrou para a região do Lácio após a
derrota de Tróia, dando início à civilização
romana. Enéas era tido como filho da deusa Afrodite (Venus para
os romanos) com um mortal e por isso todos os seus descendentes consideravam-se
portadores de sangue divino. O próprio Júlio César
refere-se a esta ascendência na oração fúnebre
à sua tia Júlia. "Do lado de sua mãe minha tia Júlia
descende dos reis; do lado de seu pai está ligada aos deuses imortais"..."os
Júlios descendem de Venus e somos um ramo desta família"
(11)
Se Júlio César
houvesse nascido por cesariana, teria sido pela morte da mãe durante
o trabalho de parto, visto que, na época, a abertura da parede abdominal
para retirada do feto ainda vivo só era feita após a morte
da gestante. (12) Tal procedimento é bem antigo na história
da humanidade e comum a várias civilizações. Na própria
mitologia grega, Asclépio, deus da medicina, veio ao mundo por uma
cesárea em sua mãe, a ninfa Coronis, que havia sido morta
por Artemis, irmã de Apolo, pai da criança,
No Império Romano,
essa prática foi oficializada por uma lei promulgada por Numa Pompílio
(715-673 a.C.), proibindo o sepultamento da mulher grávida sem a
retirada do feto.
Embora haja referências
a casos isolados de cesarianas em parturientes vivas, antes do século
XVI, somente em 1581, com a publicação do livro de Rousset,
intitulado Traité nouveau de l’hysterotomokie ou enfantement
césarien, o parto cesáreo passou a ser considerado viável.
Neste tratado, o autor relata 15 casos operados por diferentes cirurgiões
nos precedentes 80 anos.(13) Na maioria das vezes, entretanto, a paciente
morria; ou de hemorragia, ou de septicemia. A alta taxa de mortalidade
materna somente se reduziu ao final do século XIX após o
advento da bacteriologia e a adoção da antissepsia e assepsia
em cirurgia.
No relato de Plinius depreende-se
que a mãe de Júlio César estaria morta ao ser praticada
a cesariana. O trecho que se refere ao episódio tem a seguinte
redação: "Auspicatus e necata parente gignuntur, sicut
Scipio Africanus prior natus primusque caesarum a caeso matris utero dictus
qua de causa et Caesones appellati." (1) (É auspicioso quando
a mãe morre durante o parto; assim foi com Scipião o Africano
e o primeiro dos Césares, retirado por corte do útero materno;
a origem do nome de família é também o mesmo).
A mesma afirmativa encontra-se
em Isidoro de Sevilha, em sua obra "Etymologias", do século VI d.C.,
ao discutir a origem da palavra Caesar: "Caesar autem dictus, quod
caeso mortuae matris utero prolatus eductusque fuerit, vel quia cum caesarie
natus sit." (Cesar foi assim chamado por ter sido extraído
após o corte do útero de sua mãe morta, ou então
por ter nascido com os cabelos crescidos) (14)
A afirmação
de óbito materno durante o parto, entretanto, não pode ser
aceita, porquanto, segundo fontes históricas, Aurélia, mãe
de Julio César, viveu muitos anos após o nascimento do filho.
Suetônio, em duas passagens de seu livro De Vita Caesarum não
deixa a menor dúvida a respeito. Na primeira delas conta-nos que,
ao se candidatar ao cargo de Sumo Pontífice, Cesar dissera a sua
mãe que o abraçava: "Eu não entrarei na minha casa,
a não ser como pontífice." (15).
Na segunda passagem, ao
relatar a campanha das Gálias, menciona que, no mesmo espaço
de tempo, ele perdeu primeiramente sua mãe, depois sua filha e pouco
tempo depois seu neto. (16)
Segundo transcrição
de Pedro Pinto, de um manuscrito do século XIII, intitulado Vida
e feitos de Júlio César, uma compilação
de Suetônio, de Lucano e de César, encontra-se o seguinte
trecho: "Quando veio o tempo que Caio Julio Cesar houve de nascer, sua
madre arrebentou por uma ilharga e ele saiu por ali e quando nasceu trazia
os cabelos muito compridos e lhe puseram o nome de Caesar porque esta palavra
quer dizer cabeladura." (17)
Este relato, como sugere
P. Pinto, faz pensar que tenha havido rotura do períneo, mas não
do útero, já que a rotura espontânea do útero
e, ao mesmo tempo, da parede abdominal, é inverossímel. O
mais provável é que o "arrebentamento da madre" tenha sido
mal interpretado por Plínius e outros historiadores. Reforça
ainda mais este ponto de vista a etimologia dada à palavra Caesar
neste texto, relacionando-a com caesaries, cabeleira, e não
com a abertura do abdome após a morte da parturiente.
Segundo Ernout et Meillet,
apesar da homonímia, o nome de família não se prende
ao modo de nascimento de Júlio César, tampouco a cesaries,
cabeleira. Consideram tais étimos de cunho popular e admitem que
Caesar
tenha sua origem no etrusco. Em seu Dictionnaire etymologique de la
langue latine lê-se:
"Cesar – surnom d’origine contesté, rattacher par des latins soit a ceasus, ‘a caeso matris utero’, soit a caesaries. Mais ce sont là des étymologies populaires et Caeser doit être étrusque, comme aisar, dieu"(18)
Por sua vez, o termo cesariana
existente
em latim à época de Júlio César era tão
somente o feminino de cesariano, cujo sentido era o de partidário,
pertencente, ou relativo a César. A acepção de operação
cirúrgica é de data muito posterior.
Em francês foi empregada
no vocabulário obstétrico em 1560 por Ambroise Paré,
na expressão enfantement césarienne (19); em inglês
há registro em 1615 na expressão caesarian section. (20)
Em português, o primeiro dicionário a registrar cesariana,
como termo médico, foi o de Domingos Vieira, elaborado entre 1871
e 1874, obra que foi um marco na lexicografia brasileira. É importante
assinalar que, no verbete César, são consignadas duas acepções
distintas, sem nenhuma conexão entre as mesmas, como segue:
"Cesar, s.m. (Do
latim caesar, cognome dado às crianças tiradas do
seio da mãe por meio da operação depois chamada cesárea
ou cesariana, da raiz coed., de coedere, cortar, fazer incisão).
Nome de um caudilho romano que tão grande logar ocupa na
história do mundo, que conquistou as Gállias, derrotou Pompeu
e se fez senhor da república romana." (21)
Embora cesariana, como termo
médico, tenha sido averbada pela primeira vez no dicionário
de Domingos Vieira, o referido termo já vinha sendo usado no vocabulário
médico da língua portuguesa. Entre 1844 e 1862 foram defendidas
três teses inaugurais, sendo duas na Bahia e uma no Rio de Janeiro,
que empregaram, no título, a palavra "cesareana". Outras duas do
mesmo período peferiram a denominação de "gastro-hysterectomia"
em lugar de "cesareana".(22)
A primeira operação
cesariana realizada no Brasil é creditada a José Correia
Picanço e teria sido realizada em Pernambuco em 1822. A crônica
não esclarece se foi em parturiente viva e se a mesma sobreviveu.
A segunda teria sido praticada por Jeronymo Alves de Moura, que foi cirurgião-mor
do Hospital da Misericórdia no Rio de Janeiro, de 1815 a 1833, quando
faleceu. Também não há documentação
sobre este caso.
Em 1855, no Rio de Janeiro,
Luiz da Cunha Feijó, Visconde de Santa Izabel, realizou a operação
em uma gestante, por desproporção feto-pélvica, nascendo
o feto vivo e morrendo a mulher poucos dias depois. Esta operação
foi divulgada na ocasião como sendo a primeira cesariana que se
fazia no Brasil. (22)
RESUMO E CONCLUSÃO
1. Há em latim duas palavras homônimas: Caesar, nome de família, e caesar, aquele que é tirado do útero materno por incisão abdominal, após a morte da mãe.
2. O sobrenome Caesar é anterior ao nascimento de Júlio Cesar e pertencia a uma família de patrícios da linhagem Júlia, pretensos descendentes diretos de Enéas, o herói troiano que deu início à civilização romana.
3. A abertura do abdome para retirada do feto vivo só era praticada à época de Júlio Cesar em caso de morte da gestante. Não há nenhum relato em parturiente viva.
4. Aurélia, mãe de Júlio Cesar, não morreu em trabalho de parto como insinua Plinius. Ela sobreviveu muitos anos depois do nascimento do filho, como atestam fontes históricas.
5. A denominação de cesariana ou cesárea, como termo médico, é de criação tardia. Primitivamente cesariana era apenas o feminino de cesariano, na acepção de partidário, pertencente ou relativo a Cesar.
6. Tanto cesar, como cesariana e cesárea, são derivados do verbo latino caedo, caedici, caeso, cedere, que significa cortar, incisar.
7. A origem mais provável do sobrenome de fammília Caesar seria do etrusco aisar, com o sentido de divindade.
8. Júlio Cesar nada
tem a ver com a operação cesariana, apesar da lenda sobre
o seu nascimento e da literatura existente a respeito.
Referências bibliográficas
1. PLINIUS - Naturalis historia. The Loeb Classical Library.
Cambridge, Harvard University Press, vol.2, VII.9, 1979, p. 536
2. SKINNER, H.A.. - The origin of medical terms, 2.ed.
Baltimore, Williams , Wilkins, 1961, 84
3. HAUBRICH, W. - Medical meanings. A glossary of word
origins. Philadelphia, Am. College of Physicians, 1997, p. 41
4. WEBSTER’S WORD HISTORIES – Springfield, Merriam-Webster
Inc., 1989, p. 99
5. BARNHART, R. - Chambers Dictionary of Etymology. Edinburgh,
Chambers Harrap Publ. Ltd., 2001.
6. ENCYCLOPAEDIA BRITANNICA. Chicago, 1961.
7. HOUAISS, A, VILLAR, M.S. – Dicionário Houaiss
da língua portuguesa. Rio de Janeiro, Objetiva, 2001
8. MORRIS, W. – The american heritage dictionary of english
language. Boston, Hough Mifflin Co., 1981
9. DAUZAT, A., DUBOIS, J., MITTERRAND, H. - Nouveau dictionnaire
étymologique et historique, 3.ed. Paris, Larousse, 1994.
10. FERREIRA, A.B.H. - Novo dicionário da língua
portuguesa, 3.ed. Rio de Janeiro, Ed. Nova Fronteira, 1999.
11. SUETONIO - Vies des douze Césars (tradução
fr.). Paris, Ed. Gallimard, 1975, p. 37.
12. LITTRÉ, E. - Dictionnaire de médecine,
de chirurgie, de pharmacie...18. ed. , Paris, Librarie J.B. Baillière
et Fils, 1898.
13. LEONARDO, R.A. - History of gynecology. New York,
Froben Press, 1944, p. 91
14. SANCHEZ ARCAS, R. Historia de la operación
cesarea en España. Madrid, Marban Ed. p. 12
15. SUETONIO – Op. cit. p. 41
16. Idem, op. cit., p. 48
17. PINTO, P.A. - Vocábulos médicos e de
outra natureza. Rio de Janeiro, Ed. Científica, 1944, p. 11-22.
18. ERNOUT, A. , MEILLET, A. - Dictionnaire étymologique
de la langue latine. Histoire des mots, 4.ed. Paris, Ed. Klincksieck, 1979.
19. ROBERT, P. - Dictionnaire alphabétique et
analogique de la langue française. Paris, Dictionnaires Le Robert,
1987.
20. OXFORD ENGLISH DICTIONARY (Shorter), 3.ed.
Oxford, Claredon Press, 1978.
21. VIEIRA, D. - Grande dicionário portuguez ou
Tesouro da língua portugueza. Porto, Ernesto Chardron e Bartholomeu
H. de Moraes, 1871-1874.
22. MAGALHÃES, F. – A Obstetrícia no Brasil.
Rio de Janeiro, Ed. Leite Ribeiro, 1922.