O MACHISMO NA HISTÓRIA DO ENSINO MÉDICO
A medicina, assim como a
carreira militar e a eclesiástica, sempre foram atividades consideradas
próprias do sexo masculino.
Embora a Escola de Salerno,
na Idade Média, admitisse mulheres no curso médico, houve
a partir de então uma dificuldade crescente de acesso às
Universidades para o sexo feminino.
Em relação
a Medicina, havia ainda o preconceito de que se tratava de uma profissão
inadequada à mulher por razões de ordem moral. Quando muito
admitia-se a colaboração da mulher no cuidado aos doentes
como enfermeira, função exercida durante séculos pelas
religiosas de várias ordens (Irmãs de Caridade), ou na assistência
às parturientes, como parteiras.
Em 1754, para assombro de
toda a Europa, uma alemã, de nome Dorotea Cristina Erxleben, conseguiu
o título de Doutor em Medicina na Universidade de Halle, tendo sido
a primeira Mulher a receber oficialmente o diploma de médico[A.Silva,
p. 19]
Em 1809, nos Estados Unidos,
as primeiras estudantes que se matricularam em um Colégio Médico,
na Pensilvânia, foram motivo de chacotas, insultos e desrespeito
por parte dos estudantes.
Na mesma época, em
Edimburgo, na Inglaterra, as primeiras moças que conseguiram matrícula
no curso médico foram vaiadas, insultadas e agredidas pelos rapazes.
A Reitoria abriu um inquérito administrativo e decidiu pela expulsão
das alunas, considerando-as culpadas pelos distúrbios. A imprensa
chamou-as de "as sete sem-vergonha" e uma publicação
médica, intitulada Escholastic Medical, escreveu a
propósito: "nada há tão materialmente inaceitável
como uma doutora em medicina. Se há paradoxo possível é
a admissão da mulher na arte de curar. Se Deus tivera adivinhado
que a mulher se havia de lembrar uma vez de ser doutora em medicina, certamente,
não incomodaria o sono de Adão para lhe tirar a costela..."[Asilva,
p19-20]
Em 1812 formou-se em Edimburgo
um médico de nome James Barry, que ingressou no serviço médico
do exército inglês, tendo trabalhado durante muitos anos como
médico militar nas colônias inglesas. Era franzino, imberbe
e tinha a voz fina. Com a sua morte, em 1865, descobriu-se que se tratava
de mulher disfarçada em homem. Para evitar escândalo foi sepultada
como homem e só posteriormente o segredo foi revelado. Seguramente
inspirada na lenda de Agnodice, foi a maneira encontrada por essa mulher
para atender a sua vocação.[wiki, a silva, lyons, 565]
Apesar de todas as dificuldades
encontradas, algumas mulheres destemidas conseguiram pouco a pouco vencer
todos os preconceitos e todas as barreiras.
Elizabeth Blackwell, ao
tentar matricular-se em um curso médico nos Estados Unidos, teve
o seu pedido recusado por 11 Faculdades e somente foi aceita pelo "Genova
College" hoje "Hobart College", em Nova York. Pela manhã, ao se
dirigir às aulas, as outras mulheres se afastavam de seu caminho.
Diplomou-se em 1849 e a solenidade de sua formatura atraiu uma multidão
de curiosos, que queriam ver a "Doutora". Sua irmã, Emily Blackwell,
por sua vez, conseguiu matrícula no "Rusch Medical College", de
Chicago, fato que valeu à escola uma censura da Sociedade Médica
local.
Elizabeth procurou aperfeiçoar-se
nos Hospitais de Paris e de Londres e foi mal recebida, sendo-lhe permitido
freqüentar em Paris apenas a Maternidade. De volta aos Estados Unidos,
juntamente com sua irmã Emily e outra médica alemã,
de nome Marie Zakrzewska, fundaram em Nova York um Hospital para mulheres
e crianças pobres, o "New York Infirmary for Women and Children".
Este Hospital franqueou suas instalações a todas as médicas
que desejassem freqüentá-lo. Neste Hospital foi criada a primeira
Escola de Enfermagem dos Estados Unidos e nele se utilizou pela primeira
vez nos EE.UU. de um aparelho de raios-X. O trabalho pioneiro das irmãs
Blackwell foi mais tarde reconhecido.[A silva, 20, Lyons 569]
A liberalização
se deu lentamente e com muita resistência. Em 1850 fundou-se em Philadelphia
a primeira escola médica para mulheres, "The Female Medical College
of Pensylvania". Os professores desta escola eram mal vistos
pelos seus colegas e pelas sociedades médicas da época. Seguiram-se
outras escolas semelhantes, em Boston, New York, Baltimore e Cleveland.
Aos poucos, aumentava o número de médicas nos EE.UU. Em 1871,
um editorial da revista Transactions of the American
Medical Association comentava: "Uma outra doença está
se tornando epidêmica: a questão feminina na medicina é
apenas uma das formas pelas quais a pestis mulieribus atormenta
o mundo...[Lyons, 571]
O exemplo dos EE. UU. foi
seguido por outros países. Em 1873 fundava-se em S. Petersburgo,
na Rússia, uma escola médica exclusivamente para mulheres,
e em 1874 criava-se na Inglaterra a "London School of Medicine for Women".
A Suíça foi o primeiro país europeu a liberar, em
1876, a matrícula em suas escolas médicas para ambos os sexos
e logo outros países fizeram o mesmo.[Lyons 571]
O Brasil passou a permitir
o acesso das mulheres aos cursos superiores, inclusive o de medicina, partir
de 1879. Apesar das autorizações legais, a tradição
cultural e os preconceitos sociais continuavam a opor-se à presença
das mulheres na profissão médica.
Em um publicação
de1883, intitulada Apontamentos e Comentários sobre a Escola
de Medicina Contemporânea, seu autor, que assinava Leandro Malthus,
assim se referiu às estudantes do sexo feminino matriculadas no
curso médico: "São desertoras do lar. São, finalmente,
os inconscientes arautos que nos vêm mostrar os prenúncios
funestos da dissolvência da família"[Doyle, p.61]
No mesmo ano em que o Brasil
abria o curso médico ao sexo feminino, as poucas estudantes que
conseguiram matrícula na Faculdade de Medicina de Paris foram duramente
maltratadas por seus colegas.
No alvorecer do século
XX, mais precisamente em 1905, o Kaiser Guilherme II, da Alemanha, ao ser
indagado o que pensava do estudo da medicina pelas mulheres, respondeu
com ironia: "a mulher deve ocupar-se exclusivamente dos 3 K: Küche,
Kirche e Kinder" (cozinha, igreja e filhos).
No Brasil, a primeira mulher
a receber o diploma em medicina foi MARIA AUGUSTA GENEROSA ESTRELA, natural
do Rio de Janeiro. Como em nosso país, até 1879, era vedado
o estudo de Medicina a moças, dirigiu-se ela aos Estados Unidos
em 1875, com apenas 16 anos de idade, tendo concluído o curso em
Nova York, em 1881. Retornando ao Brasil em 1882, revalidou o seu diploma
na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, passando a exercer a clínica.
A partir de 1879, com a
reforma Leôncio de Carvalho, foi autorizada a matrícula de
mulheres nas escolas superiores. A autorização legal, entretanto,
em nada mudou a situação, em vista dos arraigados preconceitos
sociais contra o curso de medicina.
A partir de 1881 registraram-se
algumas matrículas de moças nas duas Faculdades de Medicina
existentes no País: a do Rio de Janeiro e a da Bahia. As três
primeiras mulheres a concluir o curso médico no Brasil foram três
gaúchas: RITA LOBATO VELHO LOPES, da cidade do Rio Grande; ERMELINDA
LOPES DE VASCONCELOS, natural de Porto Alegre, e ANTONIETA CESAR DIAS,
de Pelotas.
As três se matricularam na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro,
porém RITA LOBATO transferiu-se para a Faculdade de Medicina da
Bahia, onde concluiu o curso em 1887. Defendeu tese de doutoramento em
24 de novembro de 1887 versando sobre um estudo comparativo das diferentes
técnicas utilizadas à época nas operações
cesarianas. ERMELINDA VASCONCELOS formou-se em 1888 e ANTONIETA CESAR DIAS
em 1889, ambas no Rio de Janeiro.(A.Silva, 1954).
Pouco a pouco os espaços
foram sendo conquistados e a medicina deixou de ser privilégio dos
homens. Figuras notáveis de médicas e pesquisadoras têm
surgido nas últimas décadas. Oito mulheres já foram
aquinhoadas com o prêmio Nobel de Fisiologia e Medicina: Gerty
Cori, em 1947, Rosalyn Yallow, em 1977, Barbara McClintock,
em
1983, Rita Levi-Montalcini, em 1986, Gertrude B. Elion, em
1988; Christiane Nuesslein-Volhard, em 1995; Linda B. Buck,
em 2004, e Françoise Barré-Sinoussi, em 2008, em parceria
com Luc Montagnier, pela descoberta do vírus da AIDS.[Nobel]
Um dado expressivo da mudança
de mentalidade em nosso País, a respeito desta questão, pode
ser colhido no levantamento realizado, entre 1994 e 1996, pelo Conselho
Federal de Medicina, em parceria com o Instituto Oswaldo Cruz, para avaliação
da real situação do médico no Brasil.
Dentre 184.708 médicos
pesquisados em todo o território nacional, 124.125 (67,2%) eram
homens e 60.583 (32,8%) eram mulheres. Quando se considerou a distribuição
por sexo e idade, verificou-se que, com idade inferior a 35 anos, havia
50% de cada sexo.[Machado]
Fontes bibliográficas
LYONS, A. S.., PETRUCELLI, R. J. Medicine. An illustrated
history. New York, Harry N. Abrams Inc., Publ., 1978.
SILVA, Alberto – A primeira médica do Brasil.
Rio de Janeiro, Irmãos Pongetti Ed., 1954
McGRAYNE, Sharon Bertsch. Mulheres que ganharam o
prêmio Nobel em Ciências. São Paulo, Marco Zero,
1994.
MACHADO, M. H., Os médicos no Brasil.
Um retrato da realidade, Rio de Janeiro, Ed. Fiocruz, 1999.
MAIA, G., D., Biografia de uma faculdade.
UFRJ, 1995.
WIKIPEDIA, Internet, "James Barry (surgeon)', disponível
em http://en.wikipedia.org/wiki/James_Barry_(surgeon)
NOBEL PRIZE ORG. Internesurgeont. Disponível em
http://nobelprize.org/nobel_prizes/medicine/laureates/index.html
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Joffre M de Rezende
Prof. Emérito da Faculdade de Medicina da Universidade
Federal de Goiás
Membro da Sociedade Brasileira de História da Medicina
e-mail: pedro@jmrezende.com.br
http://www.jmrezende.com.br
03/12/2002. Atualizado em 14/09/2008