MACULO – A ESTRANHA DOENÇA DOS ESCRAVOS AFRICANOS
Maculo é o
principal nome pelo qual era conhecida no passado uma doença comum
entre os escravos africanos no Brasil colonial e que, eventualmente, podia
acometer também os indígenas e os colonizadores brancos.
A doença tem uma
variada sinonímia, entre denominações populares e
científicas: Popularmente era chamada de "achaque do bicho", "enfermidade
do bicho", "corrupção do bicho", ou simplesmente "corrupção",
"mal-do-sesso", "relaxação do sesso". Os indígenas
a chamavam de Teicoaraíba, e, entre os hispanoparlantes,
era conhecida por "el bicho", "mal del culo", "bicho del culo", "enfermedad
del guzano". Dentre as denominações eruditas encontramos
ulcus
et inflammatio (Piso), inflammatio ani (Martius),
Retite
gangrenosa epidêmica (Manson).
Caracterizava-se por uma
retite inflamatória, com afrouxamento do esfíncter externo
do ânus, eliminação de muco fétido, ulcerações
e prolapso do reto, além de manifestações sistêmicas
como febre, cefaléia, dores no corpo, quebrantamento geral e, por
vezes, sintomas neurológicos de torpor, sonolência, delírio
e coma, terminando com o óbito do paciente.
Complicava-se, por vezes,
com a miíase do ânus e do reto, conseqüência, certamente,
da falta de higiene e do hábito de defecar na superfície
do solo, em meio à vegetação, ao alcance das moscas
varejeiras. Nesse caso, a doença evoluía com gangrena do
reto e morte do doente.
Luis Gomes Ferreyra, que
esteve na Bahia e clinicou durante 20 anos no sertão de Minas Gerais,
descreve com minúcia a doença em seu livro Erario mineral
e
refere jamais ter observado a presença de bichos ou larvas no reto
dos doentes, chegando a descrer desta possibilidade, que considerava fantasiosa.
Por outro lado, refere a existência de casos com obstipação
em lugar de diarréia. Todavia, a presença de larvas (bichos)
é mencionada por autores que o antecederam.
Gabriel Soares de Sousa,
em 1587, assinala a ocorrência do mal entre os indígenas e
o tratamento por eles utilizado com folhas de tabaco, que eles chamavam
de "erva-santa" .
"Deu na costa do Brasil
uma praga no gentio, como foi adoecerem do sêsso e criarem bichos
nele; da qual doença morreu muita soma desta gente, sem se entender
de que; e depois que se soube o seu mal, se curaram com esta erva santa;
e curam hoje em dia os atacados deste mal, sem terem necessidade de outra
mezinha." (Andrade e Duarte, 1956, p. 393).
Conforme nos esclarece Eustáquio
Duarte, "era tradicional entre os índios o processo de espremer
o sumo de folhas do petume (tabaco) e de outras plantas "acres"
sobre feridas e chagas em que se criavam tapurus, nome que emprestavam
às
larvas parasitas dos dípteros. Com os tupis, sobretudo, aprenderam
os europeus a curar bicheiras de toda sorte, em homens como em animais."
(Andrade e Duarte, 1956, p. 393)
Aleixo de Brito, médico
português, que esteve nove anos em Angola e um ano no Brasil, em
seu livro escrito em espanhol Tratado de las siete
enfermedades confirma a ocorrência da miíase e chama ao
maculo de "enfermedad del guzano". Refere a existência dessa enfermidade
em Angola, Congo e no Estado do Brasil. Segundo suas palavras é
"uma doença mui aguda e perigosa; gera-se nos corpos humanos das
partes interiores do sêsso, onde em poucos dias se criavam chagas
corrosivas que logo se corrompiam, e nelas gerava-se, em alguns enfermos,
um bichinho ou bichinhos de corpo mole e cabeça dura e negra, os
quais roendo aquela carne juntamente com podridão, em poucos dias
matavam o paciente." (Andrade e Duarte, 1956, p. 395).
Guilherme Piso ressalta
a possibilidade da miíase anal mesmo na ausência da retite.
"Sem nenhuma doença intestinal ou qualquer outro sinal precedente
insinua-se às escondidas, um seminário de germes numa parte
menos sensível, oculto a princípio do próprio doente
ou do médico. E então o mal é tido por incurável
porque não raro acarreta a gangrena." (Piso, 1957, p. 115).
Inicialmente, Piso considerava
a doença como uma entidade peculiar ao Brasil: "Não sei de
ninguém que tenha observado este mal em outro lugar da Terra, além
do Brasil." (Piso, 1948, p. 166 e 374). Estava mal informado, porquanto,
antes dele, Jacob Bontius havia descrito em seu livro Methodes Medendi
uma
doença idêntica ao maculo, na Indonésia, então
possessão holandesa (Andrade e Duarte, 1956, p. 395).
Um dos três primeiros
livros de medicina escritos no Brasil e que foi publicado em Lisboa em
1707, intitula-se
Noticias do que he o achaque do bicho. Seu
autor, Miguel Dias Pimenta, não era médico e dedicava-se
ao comércio ambulante, ou seja, era um simples mascate. Os
outros dois livros são o Tratado Único das bexigas e do
sarampo, assinado por Romão Mosia Renhipo, anagrama do médico
Simão Pinheiro Morão, e Constituição Pestilencial
de Pernambuco, de autoria do médico João Ferreyra da
Rosa. Os três livros foram reunidos em uma edição monumental,
crítica e comentada por Gilberto Osório de Almeida e Eustáquio
Duarte, com o nome de Morão, Rosa e Pimenta, publicada em
1956 pelo Arquivo Público Estadual de Pernambuco. Esta publicação
é hoje uma raridade e, por seu extraordinário valor, merece
ser reeditada para sua maior difusão.
A propósito do livro
O
que é o achaque do bicho, Eustáquio Duarte fez um estudo
exaustivo sobre o maculo, com revisão de toda a literatura mundial
existente sobre o mal, chegando à conclusão de que não
se tratava de doença peculiar ao nosso país e nem de uma
doença africana importada com o tráfico de escravos, como
sugerira Langaard.
Tratava-se de uma infecção
bacteriana disentérica, de ocorrência universal, que poderia
ou não complicar-se de miíase do ânus e do reto. A
maior prevalência registrada no Brasil devia-se, sem dúvida,
às condições precárias em que viviam os escravos
"nos barracões de nefasta memória", onde "sucumbiram centenares
de vítimas" (Macedo Soares, 1955, p. 3-4).
Provavelmente outras doenças
infecciosas, isoladas ou associadas, foram confundidas e rotuladas como
"doença do bicho", o que poderia explicar as diferenças encontradas
na descrição do quadro clínico pelos autores que escreveram
sobre o maculo.
Patrick Manson, em 1903,
batizou a doença de retite gangrenosa epidêmica, denominação
erudita pela qual a mesma ficou conhecida nos meios acadêmicos e
ainda é citada nos livros e tratados sobre doenças infecciosas
e parasitárias. Esta denominação não é
a mais apropriada, de vez que a doença era endêmica e não
epidêmica, e nem sempre evoluía com gangrena do reto. Manson
jamais vira um caso e baseou-se nas informações de um médico
de Curaçau, Dr. Ackers, que também não tinha
experiência pessoal com casos humanos e sim com animais que apresentavam
sintomas semelhantes. De acordo com as informações do Dr.
Ackers, a doença era chamada na Venezuela de "bicho" e "el bicho"
(Manson, 1904, p. 389-391).
A ocorrência do maculo
foi também registrada entre os seringueiros da Amazônia, por
Murilo Campos: "a moléstia aparece no início das águas,
tanto nos seringais, como nas vilas, especialmente nas de Diamantino e
Rosário". "Na região do noroeste são muito atacados
os seringais de Santana, perto de Arroz Sem Sal, e os de S. Manoel de Piratininga.
Não faz a moléstia distinção de raças
– são atingidos tanto os pretos e caboclos como os estrangeiros."
(São Paulo, 1970, p. 219).
O tratamento do maculo era
principalmente local, feito com clisteres, banhos e introdução
no reto de pedaços de limão, supositórios preparados
pela maceração de folhas de determinadas plantas, especialmente
da erva-do-bicho", pimenta malagueta, pólvora, sob a forma de massas
(pírolas) ou de tiras de pano, ou fios de algodão, embebidos
nessas preparações, denominadas "sacatrapos". Também se usavam
clisteres de água de Labarraque (solução de carbonato
de sódio saturada de cloro), canforada, fenicada ou creosotada.
Nos seringais da Amazônia, as "pírolas eram preparadas com
sabão, pólvora e pimenta." Na Venezuela além do limão,
empregava-se clister de uma mistura de rum branco com aguardente.
A chamada erva-do-bicho
ou erva-de-bicho compreende, do ponto de vista da taxonomia botânica,
a diversas plantas dos gêneros Cuphea e Polygonum.
Além do seu emprego no maculo, tais plantas também eram usadas
como anti-helmínticas e anti-hemorroidárias .
Sobre a origem da palavra
maculo,
Silva
Lima, em 1894, comenta que a moléstia tem sido designada por várias
denominações, dentre as quais
mal del culo, em espanhol,
"donde proveio, por contração, maculo." (São
Paulo, 1970, p. 221). Essa interpretação parece-nos equivocada,
visto que a palavra maculo já existia na língua quimbundo
(makulu), falada em Angola e Guiné, tanto no litoral,
como no interior, segundo nos esclarece Jacques Raimundo em sua obra O
elemento afro-negro na língua portuguesa.
José Maria Bomtempo,
médico da corte de D. Pedro I, relata ter sido acometido, quando
residia na África, do mal "chamado na língua do Paiz – maculo
, o qual corresponde a uma enfermidade semelhante e endêmica
nesta cidade (Rio de Janeiro) e em toda a América, desde o Equador
até a latitude de 23º C, onde tem o nome de Corrupção."
(São Paulo, 1970, p. 220).
É de supor-se que
tenha ocorrido exatamente o inverso: o espanhol mal del culo é
que seria uma adaptação de maculo, dada a localização
da enfermidade e a semelhança morfológica das palavras. O
dicionário etimológico de Nascentes, de 1966, e os dicionários
modernos já abonam a origem africana do termo maculo.
Fontes bibliográficas
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SOARES, Antônio Joaquim de Macedo. Dicionário
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Joffre M de Rezende
Prof. Emérito da Faculdade de Medicina da Universidade
Federal de Goiás
Membro da Sociedade Brasileira de História da Medicina
e-mail: pedro@jmrezende.com.br
http://www.jmrezende.com.br
07/09/2002