HISTÓRIA DA MEDICINA
MAL DE ENGASGO E DOENÇA DE CHAGAS
A SOLUÇÃO DE UM QUEBRA-CABEÇAS
Nota de Direito Autoral:
O
texto
deste artigo foi publicado em 2009 no livro "À sombra do
plátano" pela Editora UNIFESP. A reprodução do
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Desde o período colonial
que se conhece no Brasil uma doença de caráter endêmico
que acomete as populações rurais de determinadas áreas
geográficas, caracterizada pela dificuldade de deglutir os alimentos
e, por isso mesmo, popularmente denominada de "mal de engasgo".
Embora haja menção
a sintomas que poderiam ser atribuídos a esta afecção
já no século XVIII, as primeiras publicações
que se referem expressamente ao "mal de engasgo" datam do século
XIX.
A primeira delas encontra-se
na obra dos naturalistas alemães Spix e Martius, intitulada Von
Reise in Brasilen (Viagem pelo Brasil) publicada em 1823. Casos dessa
afecção foram encontrados nos Campos-Gerais de S. Felipe,
sertão da Bahia, e na viagem em direção a Oeiras,
no sul do Piauí.51
A segunda referência
se deve aos missionários americanos Daniel Kidder e James Fletcher,
no livro Brazil and the Brazilians, cuja primeira edição
data de 1857 e a oitava de 1879, havendo uma tradução brasileira
da 7a. edição, de 1867, publicada em 1941 pela Companhia
Editora Nacional, na "Coleção Brasiliana".19
Neste livro os autores apresentam
o mal de engasgo como uma nova doença peculiar ao nosso pais, da
qual tomaram conhecimento em Limeira, no Estado de São Paulo, no
consultório de um médico que ali clinicava. Os autores não
revelaram o nome do citado médico e sua identidade só foi
descoberta recentemente. Trata-se de Joseph Cooper Reinhardt, de nacionalidade
norte-americana, que residiu em Limeira e, posteriormente, transferiu-se
para Campinas, onde faleceu em 1873, aos 63 anos de idade.35
Na seqüência
cronológica dos registros, a próxima referência ao
mal de engasgo se deve a Alfred de Taunay, engenheiro militar e escritor,
que tomou parte na guerra do Brasil com o Paraguai. Em sua memória
"Viagem de regresso do Mato-Grosso a Corte", publicada em 1869 na Revista
do Instituto Historico Geographico e Ethnografico do Brasil refere-se
ao "mal de engasgo", "moléstia que lavra no sertão em concorrência
com as feridas bravas e as maleitas".54 No seu clássico
romance Inocência descreve com mais detalhes o sofrimento
de um doente de mal de engasgo.55 Segundo Meneghelli, os personagens
deste romance foram, sem dúvida, inspirados em personagens reais
que Taunay conheceu em suas viagens pelo interior do País.35
Na literatura médica,
a primeira descrição do "mal de engasgo" encontra-se no Dicionário
de Medicina Domestica e Popular, de autoria de Theodoro Langgaard,
médico dinamarquês emigrado para o Brasil e que residia em
Campinas, no Estado de São Paulo.
Na segunda edição
do Dicionário, datada de 1873, Langgaard, ao se referir ao
mal de engasgo, escreve: "Esta afecção existe há muito
endemicamente na província de Goyaz, mas nos últimos anos
tem se estendido a uma certa região de Minas Gerais e entrado na
província de São Paulo na parte que confina com essas províncias
e presentemente encontra-se com muita frequência em uma região
que de Franca se estende a S. Simão, Araraquara e municípios
vizinhos".31
Outra noticia sobre a afecção
encontra-se na obra Geographia Physica do Brasil, de Wappaeus, edição
de 1884. Trata-se de uma tradução condensada e refundida
do texto original alemão, e a informação sobre o mal
de engasgo se deve a Martins Costa. Está assim redigida: "Há
também nessas regiões (Curvelo, MG) uma moléstia endêmica
a que os habitantes chamam de mal de engasgo, o qual consiste, segundo
o Dr. Ildefonso Gomes em uma paralisia da faringe; os que padecem essa
moléstia não podem engolir os alimentos, cada bolo de comida
é empurrado por alguns goles de água".12
Conforme assinalaram Porto
e Porto,41 o interesse pelo estudo do mal de engasgo aumentou
após a fundação da Sociedade
de Medicina e Cirurgia de São Paulo, em 1895 e com a introdução dos raios-X na prática médica
no início do século XX.
Na primeira sessão
daquela Sociedade, realizada em 01 de abril de 1895, por proposta de Bittencourt
Rodrigues, o mal de engasgo foi escolhido como um dos assuntos a serem
debatidos e estudados. Nesta e nas sessões subseqüentes manifestaram-se
sobre o mal de engasgo Marcos Arruda, Carlos Botelho, Diogo de Faria, Vieira
de Carvalho, Sérgio Meira Filho, Pedro de Rezende, Tiberio de Almeida,
entre outros.40
Dentre os membros da Sociedade
partidários de etiologia própria para o mal de engasgo estavam
Carlos Botelho e Pereira Barreto. Em correspondência dirigida a Sergio
Meira Filho, que se encontra transcrita por Enjolras Vampré sem
menção à data, Botelho assim se expressou: "
... "a etiologia não pode deixar de ser parasitária ou pseudo-malárica,
com localização nas vizinhanças do cárdia".
57
Na
mesma carta refere-se ao mal de engasgo como "disfagia tropical, nome que
proponho à moléstia, porque esta última palavra traz-nos
à mente, sempre, uma insinuação parasitária".
Pereira Barreto, em carta
datada de 27 de julho de 1918, dirigida a Vampré, expressa seu ponto
de vista com base em experiência pessoal: "Das minhas observações
de mais de 40 anos resulta que todos os doentes de mal de engasgo sem exceção,
tiveram anteriormente maleitas. É irrefragável o vínculo
que prende o mal de engasgo ao impaludismo. O mal de engasgo, portanto,
deve ser forçosamente moléstia parasitária".57
Em 1912, Arthur Neiva e Belisario Penna, do Instituto Oswaldo Cruz,
empreenderam uma expedição cientifica ao interior do Brasil
por solicitação da Inspetoria de Obras contra a Seca. Percorreram
a região norte da Bahia, sudoeste de Pernambuco, sul do Piauí
e de norte a sul de Goiás. O relatório completo dos ilustres
pesquisadores só foi publicado em 1916.36É um
repositório de valiosas informações sobre o clima,
flora, fauna, condições de salubridade e doenças encontradas
nas regiões visitadas. Dentre as doenças por eles observadas
figura o mal de engasgo, que foi descrito com grande riqueza de dados quanto
à sua epidemiologia, sintomas e associações mórbidas.
O texto é ilustrado com as observações clínicas
de 10 pacientes que sofriam "entalação".
Os autores assinalaram a
concomitância do mal de engasgo com a obstipação intestinal
(caseira) e distúrbios do ritmo do coração (vexame).
A idéia de que se tratasse de uma doença infecciosa levou-os
a injetar sangue de pacientes com mal de engasgo em preás, sem qualquer
resultado positivo.
Os autores discorreram sobre
outras doenças existentes na região por eles percorrida,
como a moléstia de Chagas, febre amarela, impaludismo, sem estabelecer
qualquer vínculo das mesmas com o mal de engasgo.
Após a descoberta
da Tripanossomíase americana por Carlos Chagas, em 1909, era natural
que a Doença de Chagas passasse a ser considerada como uma possível
causa do mal de engasgo.
Já em 1913 Ulysses
Paranhos comenta esta hipótese no seguinte trecho de um artigo publicado
em francês sob o título Considérations sur le ‘mal
d'engasgo: "Dernièrement", escreve Paranhos, "dans
une conversation particulière, nous apprîmes que quelques
médecins pensent que le "Mal d'engasgo" pourrrait être une
variété clinique de la Trypanosomiase de Chagas. Cependant,
à ce quíl paraît, l’éxpérimentation n'a
pas été possible de démontrer la présence de
trypanosomes dans le sang des malades".39
Paranhos aventou a possibilidade
de uma causa tóxica proveniente do uso da mandioca como alimento.
Chagas, em 1916, em seu
clássico trabalho sobre a forma aguda da Tripanossomíase
americana, menciona a disfagia como uma das manifestações
da doença e levanta a hipótese da etiologia chagásica
do mal de engasgo. Reproduzimos a seguir o texto integral de seu trabalho
onde se refere a essa possibilidade: "Outro sinal que nos foi revelado
por infecção aguda em adulto é o que se expressa em
acentuada disfagia para os alimentos sólidos e também para
os líquidos. A ingestão de substâncias sólidas
exige, para se completar, o auxilio de água, referindo os doentes
que o alimento fica retido no esôfago, trazendo sensações
penosissimas.
Mesmo a ingestão
de substâncias liquidas, e da própria água, pode apresentar
dificuldades, não raro invencíveis, necessitando o artifício
de deglutições cuidadosas e de pequenas parcelas do liquido.
Este sinal de patogenia
ainda mal esclarecida, relaciona-se talvez com a condição
de disfagia conhecida pelo nome de mal de engasgo, endemia extensa em regiões
do interior do Brasil e, segundo nossas observações, verificada
principalmente naquelas zonas onde é encontrada a Tripanossomíase.
Será o
mal
de engasgo um elemento mais da Tripanossomíase brasileira e
essa disfagia das formas aguda traduzirá a fase inicial da síndrome?
Observamos no correr de nossos estudos em Lassance número bem elevado
de doentes com
mal de engasgo, havendo em todos eles outros sinais
simultâneos da Trypanosomiase.
Apesar disso tornam-se precisas
novas pesquisas que autorizem, de modo irrecusável, incluir o mal
de engasgo na sintomatologia multiforme da infecção pelo
Trypanosoma cruzi".
Neste mesmo trabalho encontra-se
a primeira referência ao exame radiológico do esôfago
em pacientes de mal de engasgo, realizado pelo Dr. Leocadio Chaves: "Em
doentes que apresentavam a síndrome muito acentuada, o Dr. L. Chaves
verificou, pela radiografia, a existência de considerável
ectasia do esôfago, situada logo acima do cardia".
6
Em 1919, Vampré publicou
o estudo radiográfico de três casos de mal de engasgo utilizando
contraste à base de bismuto como era usual na época. Demonstrou
que "a dificuldade de deglutição só se estabelece
quando os alimentos devem passar do esophago para o estômago na ultima
fase da deglutição"..."No mal de engasgo o esophago examinado
aos raios-X toma o aspecto de uma grande bolsa onde ficam acumulados os
alimentos. A dilatação do esophago é secundaria e
vai se estabelecendo pela dificuldade que têm os alimentos de chegar
ao estomago".57 Atribuiu essa dificuldade a um espasmo do diafragma,
teoria que abandonou posteriormente em vista da ineficácia da secção
dos pilares do diafragma como forma de tratamento cirúrgico da afecção.58
Na década de 20 houve
um arrefecimento no interesse pelos estudos sobre o mal de engasgo. Deve
ser mencionado, no entanto, o trabalho de Chagas e Vilela, de 1922, no
qual os autores referem a ocorrência de mal de engasgo em 4 dentre
63 pacientes chagásicos por eles estudados.
7
Os estudos sobre mal de
engasgo foram retomados na década de 30 por pesquisadores paulistas.
O ponto de partida pode ser fixado em 1932, com o trabalho de Amorim e
Correia Neto,
2 no qual estes autores descreveram lesões
do plexo mioentérico não somente no esôfago e no cólon,
mas também em todo o trato digestivo.
Seguem-se as pesquisas de
Etzel13 e de Correia Neto e Etzel,9 que demonstraram
a identidade etiopatogênica entre as lesões encontradas no
esôfago e no cólon de portadores de mal de engasgo e o caráter
sistêmico da afecção, acometendo todo o trato digestivo.
As lesões do plexo
mioentérico foram descritas com detalhes e aceitou-se a teoria da
acalásia de Hurst como base fisiopatológica da dilatação
tanto do esôfago como do cólon. A denominação
de "mal de engasgo", que vinha sendo usada na terminologia médica,
foi substituída por "megaesôfago", que, apesar de imprópria,
iria prevalecer ao lado de "megacólon".10
Diversos outros trabalhos
foram a seguir publicados, acrescentando novos dados e evidenciando novos
aspectos relacionados com o megaesôfago e o megacólon. Correia
Neto8 mostrou a associação frequente de ambas
as condições; Etzel14 verificou a existência
de hipocloridria em pacientes com megaesôfago; Correia Neto11
e Raia42 descreveram a "acalásia" do piloro como manifestação
freqüentemente associada ao megaesôfago e megacólon;
Ramos e Oria,44 descreveram lesões dos sistema nervoso
autônomo do coração em pacientes com megaesôfago,
estabelecendo, assim, um vínculo etiopatogênico desta afecção
com a cardiopatia crônica a que está freqüentemente associada.
Nessa cardiopatia, as alterações eletrocardiográficas
superpunham-se às encontradas na cardiopatia chagásica crônica,
conforme se pode verificar no trabalho de Ramos.43
Os dados disponíveis
já permitiam a unificação etiológica da cardiopatia
chagásica crônica com os megas digestivos. Todavia, Etzel14,
em 1935, postulara como possível causa do megaesôfago e megacólon,
a avitaminose B1, que acompanha a desnutrição crônica,
teoria que teve boa acolhida nos meios científicos do País
e do exterior.
Conforme depõe o
Prof. Paulo de Almeida Toledo, havia na época pouco interesse pela
moléstia de Chagas na capital paulista. Os primeiros trabalhos sobre
moléstia de Chagas em São Paulo começaram a aparecer
a partir de 1939. "Até então, os aspectos clínicos
da Tripanossomíase eram quase completamente desconhecidos em nosso
meio médico e muitos casos observados nas enfermarias, de miocardite
de origem obscura, eram rotulados de beribéri, na falta de melhor
diagnóstico".56
Desde 1913 dispunha-se de
uma reação sorológica para a doença de Chagas,
descrita por Guerreiro e Machado, e era natural que a mesma fosse empregada
na investigação da prevalência da doença de
Chagas na população de áreas endêmicas, assim
como em pacientes de mal de engasgo.
A primeira pesquisa nesse
sentido data de 1930 e deve-se a Eurico Vilela no seu trabalho intitulado:
A
ocorrência da moléstia de Chagas nos hospitais de Belo Horizonte
e na população de seus arredores. Em 186 pessoas investigadas,
53 (28,5%) tinham a reação de Guerreiro e Machado positiva,
ao passo que em 13 pacientes de mal de engasgo, 8 apresentaram reação
positiva (61,3%). Apesar da pequena casuística, Vilela conclui:
"Deve haver uma síndrome de disfagia provocada pela Tripanossomíase
americana".
59
Em 1934, também em
Belo Horizonte, em seu trabalho
Cardiospasmo (mal de engasgo), dedicado
ao Prof. Octaviano de Almeida, A. Melo Alvarenga realizou a reação
de Guerreiro Machado em 16 casos de mal de engasgo, encontrando-a positiva
em 8 (50%), o que o levou a concluir, do mesmo modo que Eurico Vilela,
que "a Tripanossomíase americana deve ser responsabilizada como
uma das causas determinantes do cardiospasmo".
1
Entre 1939 e 1942, Martins,
Versiani e Tupinambá realizaram xenodiagnóstico em 156 pacientes
selecionados em vários hospitais e clínicas de Belo Horizonte,
dentre os quais 63 com miocardite, 48 com megaesôfago e 28 com bócio.
A positividade dos xenodiagnósticos foi de 36,5% nos casos de
miocardite, 45,8% nos casos de megaesôfago e apenas 17,8% nos casos de bócio.
33
Este trabalho tem um valor
especial por ser o primeiro estudo parasitológico comparativo entre
pacientes com bócio e megaesôfago. A análise dos dados
mostra diferença estatisticamente significativa entre o número
de exames positivos obtidos nos casos de megaesôfago e de bócio.
O bócio endêmico
fora considerado inicialmente uma das manifestações da doença
de Chagas, o que levou Miguel Pereira a propor para a Tripanossomíase
americana a denominação de
tireoidite parasitária,
denominação esta que chegou a ser usada por Carlos Chagas
em sua conferência na Academia Nacional de Medicina, em 1911.
5
A inclusão do bócio
endêmico como uma das manifestações da doença
de Chagas baseou-se principalmente em dados clínicos e epidemiológicos.
Uma vez comprovado que se tratava de mera superposição geográfica
das duas endemias, o bócio foi retirado da patologia da doença
de Chagas, porém o episódio constituiu-se em arma da qual
se valeram os detratores de Carlos Chagas na campanha de descrédito
capitaneada por Afrânio Peixoto contra o grande feito do genial pesquisador
mineiro.
Além disso, o episódio
influenciou negativamente nos estudos da correlação etiológica
entre doença de Chagas e o mal de engasgo. Temia-se a repetição
do equívoco da superposição de áreas endêmicas,
sobretudo considerando a inexistência de megaesôfago e megacólon
em outros países com elevada prevalência da doença
de Chagas.
Acrescente-se, ainda, a
similaridade do megaesôfago chagásico com a acalásia
idiopática, ambos, até então, interpretados como uma
mesma e única doença, o que tornava ainda mais temerária
a aceitação da doença de Chagas como causa do nosso
mal de engasgo.
Dois outros importantes
estudos foram realizados em Minas Gerais, direcionados, estes, para a doença
de Chagas na infância. Nunan, Rezende e Canelas, em 1952, revendo
em Bambuí 13 crianças nas quais fora antes diagnosticada
a fase aguda da doença de Chagas, encontraram 4 com megacólon.
37
Rezende, Pellegrino e Canelas,
em inquérito realizado em um total de 200 crianças internadas
em Hospitais de Belo Horizonte, encontraram 14 com reações
sorológicas positivas para doença de Chagas, das quais 5
apresentavam megaesôfago e ou megacólon.
50
A ocorrência de megaesôfago
e megacólon em crianças infectadas pelo T. cruzi era um dado
a mais a indicar claramente a participação do trato digestivo
na complexa patologia da doença de Chagas.
Referência especial
deve ser feita à contribuição dada à questão
pelos médicos de Uberaba, Uberlândia e Araguari.
Os congressos médicos
do Triângulo Mineiro e Brasil Central, realizados entre 1947 e 1956,
constituíram-se em foro de debates sobre a etiologia chagásica
do megaesôfago e megacólon endêmicos.
41 Enquanto
os clínicos e cirurgiões da região defendiam a etiologia
chagásica, com base em dados clínicos e epidemiológicos,
professores de outros Centros, especialmente de São Paulo, argumentavam
contrariamente, alegando superposição de áreas endêmicas
e falta de comprovação anatomopatológica, e aceitavam
a hipótese da avitaminose B1 como causa da degeneração
do plexo mioentérico existente nos megas. Insistia-se na necessidade
do achado de células parasitadas pelo
T.
cruzi nas
paredes do esôfago e do cólon dilatados.
O aperfeiçoamento
do antígeno utilizado na reação de Guerreiro e Machado
possibilitou a obtenção de índices de positividade
cada vez mais elevados nas reações sorológicas para
doença de Chagas realizadas em pacientes com megaesôfago e
megacólon.
Dois trabalhos se destacam por
sua casuística e pelos resultados alcançados: o de Pedreira
de Freitas,15 com 80 casos e 92,7% de positividade e o de Laranja,
Dias e Nóbrega,32 com 81 casos e 97% de positividade.
O trabalho de Laranja, Dias
e Nóbrega fora apresentado ao I Congresso Pan-americano de Medicina,
realizado no Rio de Janeiro em setembro de 1946, e apenas referido de passagem
em artigo mais extenso sobre a doença de Chagas, publicado em 1948.32
Em conversa com o Dr. Francisco Laranja, por ocasião da IV Reunião
de Pesquisa Aplicada em Doença de Chagas, realizada em Araxá,
em 1987, indagamos dele por que não havia publicado em separado
e com o merecido destaque a investigação sorológica
realizada em pacientes com megas. Ele nos respondeu que fora dissuadido
de fazê-lo com o argumento de que poderia repetir-se, no caso do
mal de engasgo, o episódio do bócio endêmico.
Em 1959 apresentamos ao
Congresso Internacional sobre a Doença de Chagas, realizado no Rio
de Janeiro, os resultados de nossas próprias observações.
Em 332 casos de megaesôfago, 277 de cardiopatia e 593 crianças
não selecionadas de área endêmica, obtivemos, respectivamente
89,1%, 68,6% e 18,2% de positividade.47 Ouvimos, durante os
debates, as mesmas objeções: que estes números nada
provavam e que deveria tratar-se de simples coincidência.
Os argumentos para a rejeição
da etiologia chagásica dos megas continuavam os mesmos de sempre:
1. O mal de engasgo é
o mesmo cardiospasmo ou acalásia do esôfago, de ocorrência
universal.
2. O mal de engasgo não
é encontrado em todas as áreas onde a doença de Chagas
é endêmica, como os países da América Central.
3. A associação
do mal de engasgo com a doença de Chagas poderia ser explicada pela
superposição geográfica das duas endemias, tal como
no caso do bócio endêmico.
4. Nem todos os chagásicos
evoluem com megaesôfago ou megacólon.
5. Ainda não havia
sido demonstrado parasitismo nas paredes do esôfago ou do cólon
que justificasse as lesões encontradas.
A partir de 1954, Koeberle
e seus colaboradores, da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto,
desenvolveram as pesquisas tão reclamadas, que levariam à
comprovação anatomopatológica da ação
do T. cruzi no trato digestivo.
Fritz Koeberle, ao assumir
a chefia do Departamento de Patologia da Faculdade de Medicina de Ribeirão
Preto, foi surpreendido pela alta prevalência da doença de
Chagas nos casos de autópsia e dedicou-se inteiramente ao estudo
de sua patologia. Após adquirir noções básicas
de português, o que conseguiu em pouco tempo em vista de seus conhecimentos
de latim, inteirou-se da literatura brasileira sobre a doença de
Chagas e os megas. De um lado, a indicação clínica,
epidemiológica e sorológica da etiologia chagásica
dos megas; de outro lado, a demonstração, desde os trabalhos
de Amorim e Correia Neto e de Etzel, da existência de lesões
degenerativas do plexo mioentérico do trato digestivo nos casos
de megaesôfago e megacólon.
Cumpria, pois, comprovar
a ação do Trypanosoma. cruzi na parede muscular
do trato digestivo, lesando o sistema nervoso intrínseco e causando
dilatação do esôfago e do cólon. Em sucessivos
trabalhos, Koeberle e seus colaboradores demonstraram haver na doença
de Chagas lesões irreversíveis do sistema nervoso intrínseco,
especialmente dos plexos intramurais do trato digestivo, acarretando alterações
motoras cuja repercussão é mais evidente no esôfago
e no cólon em razão provavelmente da fisiologia desses segmentos.20-30
Por meio da contagem das
células nervosas na parede do esôfago e do cólon em
casos humanos de chagásicos autopsiados e em animais de experiência,
verificou Koeberle, de modo constante e em grau variável, uma redução
dos neurônios daqueles plexos, especialmente do plexo mioentérico
de Auerbach, ao longo de todo o trato digestivo.
A maior contribuição
de Koeberle foi, sem dúvida, a de conceituar a doença de
Chagas como doença do sistema nervoso autônomo, conceito este
que se mostrou bastante fértil, ensejando as mais variadas pesquisas
em chagásicos crônicos, com o objetivo de demonstrar a participação
do sistema nervoso autônomo na fisiologia do trato digestivo e nos
complexos mecanismos de homeostase orgânica.49
No 8º Congresso
Médico do Triângulo Mineiro e do Brasil Central, realizado
em Uberaba, de 3 a 8 de setembro de 1956, Pedreira de Freitas, em seus
comentários finais, declarou: "...graças aos trabalhos do
Prof. Fritz Koeberle, tivemos o importante argumento anatomopatológico
para aceitarmos definitivamente a etiologia chagásica do megaesôfago
e dos outros megas entre nós. Está havendo uma reação
muito grande por parte dos nossos pesquisadores em aceitar este fato como
estabelecido. Por ocasião da realização dos outros
congressos do Triângulo Mineiro e do Brasil Central, este assunto
foi muito debatido e a etiologia chagásica dos megas aparentemente
saiu sempre perdendo. Estou certo de que deste ela sairá absolutamente
vitoriosa".16
Nesse mesmo Congresso, propusemos
a revisão da classificação das formas clínicas
da doença de Chagas para acrescentar a forma digestiva, "como
forma clínica individualizada, nela se incluindo todas as lesões
do tubo digestivo... Fundamentamo-nos no fato de que, clinicamente, encontramos
com grande freqüência pacientes chagásicos com manifestações
digestivas exclusivas e importantes, sem sinais clínicos ou eletrocardiográficos
de comprometimento do coração".45 Em trabalho
posterior procuramos definir melhor a forma digestiva, nela incluindo
"todas as desordens motoras, secretoras ou absortivas do aparelho digestivo,
já descritas ou que venham a ser caracterizadas futuramente".46
A resistência a que
se referiu o Prof. Pedreira de Freitas pôde ser observada no Congresso
Internacional sobre a Doença de Chagas, realizado no Rio de Janeiro
de 5 a 11 de julho de 1959, quando o Prof. Koeberle apresentou o seu trabalho.
Moléstia
de Chagas: enfermidade do sistema nervoso.27 Além
de críticas e comentários desfavoráveis, foi feita
uma comunicação sobre o achado de megaesôfago em um
macaco que havia sido inoculado 10 anos antes com Trypanosoma. cruzi.
Tratava-se, na realidade, da produção experimental acidental
do megaesôfago chagásico. Seus autores, do Hospital Evandro
Chagas e, portanto, com a responsabilidade de pesquisadores do Instituto
Oswaldo Cruz, concluiram:
"1- A infecção chagásica
pode determinar o megaesôfago.
2 - O megaesôfago
conseqüente à infecção chagásica independe
de lesão estrutural dos plexos nervosos intramurais, para se instalar.
3 - O fator determinante
na produção do megaesôfago chagásico parece
ser a inflamação intersticial, destruição e
fibrose da túnica muscular.
4 - Um processo inflamatório
e conseqüente fibrose particularmente intensos ao nível do
cárdia devem facilitar ou condicionar a produção do
megaesôfago, o que de certo modo explicaria a ausência desta
lesão em doentes com evidentes focos inflamatórios em outras
regiões do órgão que não aquela."17
No plano internacional, no entanto,
houve melhor aceitação dos trabalhos de Koeberle. No 2º
Congresso Mundial de Gastroenterologia, realizado em Munich, na Alemanha,
de 13 a 19 de maio de 1962, a acalásia do esôfago foi tema
de uma mesa redonda (Panel discussion), na qual tomaram parte 10 convidados
de cinco países. Quatro dos participantes eram brasileiros (Geraldo
Siffert, moderador; Fritz Koeberle, Joffre M. de Rezende e L.H. Camara-Lopes).
O Prof. Franz Ingelfinger,
de Boston, que presidia a sessão, em seus comentários finais
assim se referiu à contribuição brasileira ao tema:
"It is not accidental
that four members of this panel hail from Brazil, for in this country the
esophageal disease we are discussing is prevalent to a degree unheard of
in other areas of the world represented at this Congress". E, mais
adiante: "It thus seems to me that we should accept the Brazilian form
of achalasia as a model pointing out to us a possible way in which our
own cases may develop. Perhaps ours cases too are the late results of an
infection or infestation which damages Auerbach’s plexus by a toxic or
possibly autoimmune mechanism and then subsides, leaving no traces at the
time when the late effects of the neurologic damage finally make themselves
manifest in the form of achalasia. The Brazilians have given us a major
lead." 18
Koeberle naturalizou-se
brasileiro, revalidou seu diploma de médico no Brasil e jamais pensou
em retornar à Europa após a sua aposentadoria. (Veja, em
continuação, o artigo Fritz Koeberle e seus estudos sobre
a doença de Chagas).
Na década de 60,
vários pesquisadores brasileiros confirmaram os achados de Koeberle
em relação à desnervação do sistema
nervoso entérico na doença de Chagas humana e experimental
e acrescentaram novos aportes à compreensão da patogênese
das lesões degenerativas dos plexos intramurais. Dentre as várias
contribuições nesse sentido cumpre destacar as de autoria
de Tafuri e Brener,52 Tafuri, Maria e Lopes,53 Andrade
e Andrade3 e Okumura.38
Menção especial
deve ser feita a Aristóteles Brasil, cuja genialidade evidenciou-se
em seus estudos clínicos e fisiopatológicos sobre a doença
de Chagas. Sendo um cardiologista e trabalhando isoladamente, foi o primeiro
a fazer registros manométricos trissegmentários do esôfago
na esofagopatia chagásica, comprovando a incoordenação
motora que caracteriza a perda do peristaltismo nesta afecção.4
Propôs para o megaesôfago a denominação de aperistalsis,
que chegamos a utilizar em um de nossos trabalhos.48
Os argumentos que se antepunham
à aceitação da etiologia chagásica do megaesôfago
e megacólon endêmicos foram sendo aos poucos removidos.
1. A semelhança com
a acalásia idiopática passou a ser vista como decorrência
da possibilidade de se tratar de uma mesma síndrome com etiologias
distintas.
2. A distribuição
geográfica do mal não coincidente com a da doença
de Chagas passou a ser explicada pelas diferenças de cepas do Trypanosoma
cruzi quanto à sua virulência e patogenicidade.
3. Os resultados das reações
sorológicas com técnicas aperfeiçoadas demonstraram
uma correlação altamente significativa entre megaesôfago
e megacólon endêmicos com a doença de Chagas, afastando
a hipótese de superposição geográfica das duas
endemias.
4. A relativa baixa prevalência
do mal de engasgo nas populações chagásicas (menos
de 10%)49 indica que a desnervação de menor intensidade
encontrada por Koeberle na maioria dos chagásicos é compatível
com uma função normal.
5. Finalmente, o parasitismo
da parede esofagiana é facilmente demonstrável na fase aguda
da infecção e, na fase crônica, em que o parasitismo
é escasso, também se podem encontrar pseudocistos de amastigotas
após uma pesquisa mais elaborada.
Atualmente aceita-se como
bem estabelecida a forma digestiva da doença de Chagas, na
qual predomina o comprometimento do trato digestivo em relação
ao coração e da qual o megaesôfago e o megacólon
constituem as manifestações de maior significado clínico.
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________
* Apresentado à Academia Mineira de Medicina, nas comemorações
do "Ano de Carlos Chagas", em 25 de novembro de 1999.
Atualizado em 5/8/2002.
Joffre M de Rezende
Prof. Emérito da Faculdade de Medicina da Universidade Federal
de Goiás
Membro da Sociedade Brasileira de História
da Medicina
e-mail: pedro@jmrezende.com.br
http://www.jmrezende.com.br