LINGUAGEM MÉDICA
MALFORMAÇÃO, MÁ FORMAÇÃO
A palavra
malformação,
de
largo uso em biologia e medicina, tem sido apontada como mal formada pelos
guardiães da língua portuguesa. O argumento utilizado é
sempre o mesmo: mal é advérbio e antes de um substantivo
deve vir um adjetivo e não um advérbio; portanto, em lugar
de mal deve usar-se o adjetivo feminino má - má
formação, palavra que também aparece escrita de
duas outras maneiras: má-formação
e
maformação.
É óbvio que
a norma gramatical alegada é correta e deve ser observada. Contudo,
a questão não é tão simples como parece à
primeira vista e merece uma análise mais detida.
Em primeiro lugar, apesar
de suas raízes latinas, o termo não teve o seu berço
na língua portuguesa. Fosse este o caso e certamente a citada regra
teria sido obedecida. A introdução da palavra no vocabulário
médico se deu na língua inglesa em 1800, segundo o Oxford English Dictionary,[1] e na língua francesa em 1867, segundo
Robert. [2]. Em ambas estas línguas a palavra tem a mesma representação
gráfica - malformation.
Nenhum dicionário
da língua portuguesa do século XIX registra malformação
ou
má
formação e os lexicógrafos do século XX
dão o termo como uma adaptação do francês [3][4]
ou do inglês. [5]
No dicionário de
Aulete-Garcia, 3.ed., lê-se o que segue:
"Malformação
- (med.). O termo vem do inglês malformation e este do latim
mal(a)
+ formatio,
donde ser artificial a variante má-formação,
pretendida por alguns".[5]
Malformação
não
é a única palavra da língua portuguesa em que aparece
mal
em
lugar de má. Temos, consagradas,
malcriação,
malfeitoria, malsonância, malquerença, malversão
ou malversação e malandança.
Em nenhum dos casos pode-se
afirmar que mal entrou na composição da palavra como
advérbio.
Malcriação, segundo Pedro Pinto, é
resultante de uma forma arcaica malaformação.[6] Embora
a maioria dos nossos lexicógrafos ainda não tenha tomado
conhecimento do fato, malcriação já não
é o mesmo que má criação na linguagem
popular e tornou-se sinônimo de malcriadez, que é pouco
usado, ou seja, expressa resposta desaforada a um superior, ação
ou dito descortês, indelicado, grosseiro.[7] No caso de malfeitoria
admite-se que a palavra seja derivada de malfeitor, que a precedeu.[8]
Do mesmo modo se explica malsonância, derivada do adjetivo
malsonante.[8]
Malversão
e malversação
são deverbais de malversar,
do latim male versari
(comportar-se mal).[5]
Malquerença
é igualmente um derivado pós-verbal de malquerer.[9]
No caso de malandança, não poderia tratar-se de um
l eufônico para evitar o encontro vocálico
a-a?
Assim, cada exceção
à regra tem sua razão de ser e não surgiu por acaso
ou por ignorância.
No Brasil, o termo malformação
aparentemente
era pouco empregado até o início do século XX. Basta dizer que
o mesmo não figura na obra especializada Noções
de teratologia, publicado na Bahia em 1914, pelo Prof. Guilherme Rebello,
quem utilizou anomalia e aberração em lugar
de malformação.[10]
Aos poucos o termo malformação
foi
sendo incorporado à linguagem médica e já em 1938,
Pedro Pinto comentava que o mesmo estava sendo utilizado "pelos melhores
escritores médicos de nosso tempo".[11]
Os léxicos da língua
portuguesa, editados a partir de 1950, têm assumido posições
divergentes entre si no tocante ao termo malformação.
Poderíamos catalogá-los, conforme o critério adotado,
nos seguintes grupos:
1. Os que averbam as duas
formas,
malformação
e
má formação,
não fazendo distinção entre elas.[12[13][14]
2. Os que registram as duas
formas, com preferência para malformação.[5][15][16]
3. Os que registram as duas
formas, com preferência para má formação.
[4[8][17]
4. Os que averbam as duas
formas, com maior abrangência semântica para malformação.
[9][18][19]
5. Os que consignam apenas
malformação.[3][20]
6. Os que ignoram ambas
as formas. [21][22]
Observe-se a mudança
de posição do Aurélio, que estava no grupo
2 na segunda edição e passou para o grupo 3 na terceira edição.
Aqui, como em tantas outras
questões linguísticas, deve prevalecer, acima das regras
gramaticais, o bom-senso e o respeito ao uso e à tradição,
sobretudo quando não há unanimidade de pontos de vista entre
os doutos e letrados.
Convém lembrar que
esta discussão se refere unicamente à linguagem médica
e não à linguagem em geral. É bem de ver que na linguagem
literária, a expressão má formação
emerge
naturalmente na exposição de uma idéia, fato ou evento,
sempre que se procura caracterizar a gênese imperfeita, a variante
anômala ou incompleta do ser ou do objeto em referência.
Como termo técnico,
no entanto,
malformação
tem significado preciso e
acha-se definitivamente integrado no vocabulário biomédico.
De acordo com o banco de dados da BIREME, disponíveis através
do programa LILACS, foram publicados nos últimos 20 anos (1981 a
2000) 141 artigos científicos em revistas médicas brasileiras,
utilizando no título do trabalho, ou malformação
no
singular, ou malformações no plural, e nenhum com
a palavra má formação em qualquer de suas variantes,o
que demonstra que malformação tem a preferência
absoluta dos profissionais da área da saúde e deve prevalecer.[23]
O único reparo que
se poderia fazer diz respeito à expressão malformação
congênita
ou, o que é mais comum, malformações
congênitas,no plural. Dos 141 trabalhos indexados pela BIREME,
acima referidos, 12 utilizaram a expressão malformação
congênita no singular, e 42, malformações congênitas
no
plural.
Já em 1898, Littré
definia claramentre o caráter congênito das malformações,
reservando a denominação de deformações
para
os defeitos adquiridos.[24] Subentende-se, portanto, que toda malformação
é congênita.
Referências bibliográficas
1. OXFORD ENGLISH DICTIONARY (Shorter), 3.ed. - Oxford,
Claredon Press, 1978.
2. ROBERT, P.: Dictionnaire alphabétique et analogique
de la langue française. Paris, Dictionnaires Le Robert, 1987.
3. NASCENTES, A. - Dicionário da língua
portuguesa (4 vol.) Academia Brasileira de Letras, 1961-1967.
4. CUNHA, A.G. - Dicionário etimológico.
Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1982.
5. AULETE, F.J.C., GARCIA, H. - Dicionário contemporâneo
da língua portuguesa, 3.ed. (5 vol.) Rio de Janeiro, Ed. Delta,
1980.
6. PINTO, P.A. - Dicionário de termos médicos,
2.ed. Rio de Janeiro, 1938.
7. CABRAL, T. - Novo dicionário de termos e expressões
populares. Fortaleza (CE), Ed. UFC. 1982.
8. FERREIRA, A.B.H. - Novo dicionário da língua
portuguesa, 3.ed. Rio de Janeiro, Ed. Nova Fronteira, 1999.
9. MICHAELIS - Moderno dicionário da língua
portuguesa. São Paulo, Cia. Melhoramentos, 1998.
10. REBELLO, Guilherme Pereira. Noções
de teratologia. Bahia, Liv. Catilina, 1914.
11. PINTO, P.A. - Dicionário de termos médicos,
2.ed. Rio de Janeiro, 1938
12. MORAIS SILVA, A. - Grande dicionário da língua
portuguesa, 10.ed. (12 vol.), Lisboa, Confluência, 1949-1959.
13. BUENO, F.S. - Grande dicionário etimológico-prosódico
da língua portuguesa (8 vol.) São Paulo, Ed. Saraiva, 1963.
14. ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS - Vocabulário
ortográfico da língua portuguesa, 3. ed. Rio de Janeiro,
Imprensa Nacional, 1999.
15. PACIORNIK, R. - Dicionário médico,
2.ed. Rio de Janeiro, Guanabara Koogan, 1975.
16. FERREIRA, A.B.H. - Novo dicionário da língua
portuguesa, 2.ed. Rio de Janeiro, Ed. Nova Fronteira, 1986.
17. CEGALLA, D.P. - Dicionário de dificuldades
da
língua portuguesa. Rio de Janeiro, Ed. Nova Fronteira, 1996
18. FREIRE, L. - Grande e novíssimo dicionário
da língua portuguesa, 3.ed. (5 vol.) Rio de Janeiro, José
Olympio Ed., 1957.
19. GRANDE DICIONÁRIO BRASILEIRO MELHORAMENTOS,
8.ed. (5 vol.) São Paulo, Cia. Editora Nacional, 1975.
20. REY, L. - Dicionário de termos técnicos
de medicina e saúde. Rio de Janeiro, Guanabara Koogan S.A., 1999.
21. MACHADO, J.P. - Dicionário etimológico
da língua portuguesa, 3.ed. (5 vol.) Lisboa, Livros Horizonte, 1977.
22. SÉGUIER, J. - Dicionário prático
ilustrado. Porto, Lello & Irmão Ed., 1981.
23. BIREME - http://www.bireme.br/cgi-bin/wxislind.exe/iah/online/
24. LITTRÉ, E. - Dictionnaire de médecine,
de chirurgie, de pharmacie et l'art vétérinaire et des sciences
qui s'y rapportent, 18. ed. Paris, Librarie J.-B. Baillière et Fils,
1898.
Publicado no livro Linguagem Médica, 3a. ed., Goiânia, AB Editora
e Distribuidora de Livros Ltda, 2004..
Joffre M de Rezende
Prof. Emérito da Faculdade de Medicina da Universidade Federal
de Goiás
Membro da Sociedade Brasileira de História
da Medicina
e-mail: pedro@jmrezende.com.br
http://www.jmrezende.com.br
10/9/2004.