A MEDICINA NA PASSAGEM DO MILÊNIO
No século XX, o progresso
da medicina acompanhou de perto o desenvolvimento das demais ciências.
Podemos afirmar, sem medo de errar, que a medicina evoluiu mais no século
XX do que em toda a história da humanidade. Além do progresso
científico, houve, igualmente, uma evolução de conceitos
a respeito de saúde e doença; saúde já não
é apenas ausência de doença, mas um estado de completo
bem-estar físico, mental e social, conforme definição
da Organização Mundial de Saúde.
É também do
século XX a compreensão de que a saúde depende de
múltiplos fatores, cabendo à medicina parcela importante,
porém muito menos decisiva do que se acreditava. É ainda
deste século o reconhecimento de que a saúde é um
dos direitos fundamentais do homem, cabendo ao Estado zelar pela sua manutenção.
Temos, portanto, dois enfoques
a considerar: o dos avanços científicos e suas conseqüências
e o das conquistas sociais, ou seja, do acesso aos bens e serviços
que asseguram a saúde.
Do ponto de vista científico
podemos registrar, em uma visão retrospectiva, descobertas notáveis
que modificaram os destinos da humanidade. Seria fastidioso enumerar todas
elas. Difícil também hierarquizá-las. Citaremos apenas
dez, a título de exemplificação, que tiveram, a nosso
ver, profunda repercussão na prevenção, no diagnóstico
e no tratamento das enfermidades. São elas:
1. Imunização
preventiva
2. Descoberta dos antibióticos
3. Isolamento e síntese
de hormônios e vitaminas.
4. Métodos diagnósticos
por imagens
5. Técnicas bioquímicas
de alta sensibilidade
6. Fibroendoscopia
7. Engenharia genética
8. Fecundação
artificial
9. Cirurgia cardíaca
e transplante de órgãos.
10. Psicanálise e
psicofarmacologia
A maior contribuição
da medicina à saúde neste século foi, sem dúvida,
no campo da prevenção das doenças por meio da imunização
em massa e das ações desenvolvidas sobre o meio ambiente.
Doenças como o tétano, a difteria, a coqueluche, o sarampo,
a poliomielite, a febre amarela e, mais recentemente, a hepatite B, já
dispõem de vacinas eficazes e podem ser evitadas. A imunização
pelo BCG reduziu sensivelmente a incidência de tuberculose.
Para valorizarmos devidamente
a importância da prevenção das doenças por meio
da imunização e das ações sobre o meio ambiente,
devemos volver os olhos para o passado. Na Idade Média, apenas uma
doença - a peste - dizimou em pouco tempo, a quarta parte da população
do continente europeu.
O cólera, que ainda
representa permanente ameaça nos países do Oriente, praticamente
desapareceu dos países do Ocidente.
A varíola, enfermidade
de ocorrência universal, que não só matava, como desfigurava
as pessoas, foi considerada extinta pela Organização Mundial
de Saúde, em maio de 1980, confirmando, assim, as proféticas
palavras de Pasteur, de que as doenças infecciosas poderiam ser
varridas da face da Terra.
Dentre as grandes endemias
ceifadoras de vidas ainda resta a malária. Conhecida desde a antigüidade,
a malária aniquilou populações inteiras, mudou o curso
das guerras, manteve despovoadas extensas áreas do planeta e decidiu
a sorte das Nações. A vitoriosa campanha de Alexandre Magno
foi interrompida pela malária, que matou o grande conquistador aos
32 anos de idade. No Império Romano, a malária foi causa
do fracasso de muitas expedições e do despovoamento de muitas
regiões submetidas ao poder de Roma. Foi, durante o século
XX, e ainda continua sendo, um dos maiores obstáculos à ocupação
da Amazônia.
Somente por ocasião
da colonização da América os espanhóis aprenderam
a usar a quina no combate à malária, com o que se reduziu
a taxa de mortalidade por essa endemia. Na segunda Guerra Mundial, movidos
pela necessidade de dar proteção aos soldados em ação
nos países asiáticos, os norte-americanos desenvolveram medicamentos
mais eficazes para o tratamento da malária, ao mesmo tempo em que
foram incrementadas as medidas profiláticas de combate ao mosquito
transmissor. Com tais medidas, a malária tem sido mantida sob controle.
No Brasil e em outros países
sul-americanos, além da malária, constituem importantes causas
de mortalidade, a doença de Chagas e a esquistossomose mansoni.
Está ainda longe o dia em que ambas estas endemias serão
erradicadas. Contudo, a doença de Chagas perde terreno com as medidas
profiláticas de combate ao vetor, como as que vêm sendo praticadas
no Brasil pelo Ministério da Saúde.
O controle da esquistossomose
mansoni tem avançado graças aos investimentos na melhoria
das condições sanitárias das áreas endêmicas
e um trabalho educativo continuado junto às populações
expostas.
Contribuíram, também,
em larga escala, para a elevação do nível de saúde
no século XX, as medidas voltadas para o meio ambiente: o saneamento
básico, os hábitos de higiene, a melhoria das habitações,
a utilização de fontes de energia em substituição
à força animal, o desenvolvimento da indústria na
produção de bens e serviços que geram conforto e segurança
para o homem.
Outro considerável
avanço, que reduziu drasticamente as taxas de mortalidade, foi a
descoberta dos antibióticos. Doenças comuns, que matavam
aos milhares, como a pneumonia e a febre tifóide, já não
assustam e doenças de difícil tratamento no passado, como
a sífilis, a tuberculose e a lepra, são hoje facilmente curáveis.
É bem verdade as
bactérias aprenderam a defender-se, criando resistência aos
antibióticos, o que obriga a uma busca continuada de novas substâncias
ativas.
Outra notável conquista
no século XX consistiu no isolamento e na determinação
da estrutura química da maioria dos hormônios, abrindo caminho
para a sua síntese no laboratório. Dois deles merecem destaque
pelas suas conseqüências práticas de ordem terapêutica:
a insulina, isolada por Banting e Best, e a cortisona e seus derivados,
isolados por Kendall e colaboradores. Os descobridores da insulina receberam
o prêmio Nobel em 1923 e os da cortisona e seus derivados em 1950.
A descoberta das vitaminas,
por sua vez, trouxe um novo aporte à prevenção e ao
tratamento das doenças resultantes de carências específicas
desses elementos. O escorbuto, o beribéri, a pelagra, o raquitismo
são hoje condições raramente encontradas.
A descoberta dos raios-X,
no final do século XX e sua aplicação com fins diagnósticos
no início deste século, constituíram um marco importante
na história da medicina.
Tal foi o impacto causado
e o entusiasmo que a nova descoberta despertou, que um professor de medicina
chegou a dizer que, depois dos raios-X, os ouvidos dos médicos só
serviam para ouvir a anamnese, relegando, assim, ao passado toda a monumental
obra de Laennec sobre a ausculta do tórax.
O sucesso do emprego dos
raios-X em medicina levou à busca de outros métodos diagnósticos
por imagens e presenciamos em uma geração o aparecimento
sucessivo da ultra-sonografia, da tomografia computadorizada e da ressonância
nuclear magnética.
A ultra-sonografia, por
sua simplicidade e inocuidade, tornou-se um método de larga aplicação,
sobretudo em obstetrícia. A tomografia por computador trouxe uma
alta resolução de imagens, permitindo o diagnóstico
de lesões não detectáveis pelos métodos anteriores.
O avanço representado pela Tomografia computadorizada valeu a Hounsfield
e Cormarck o prêmio Nobel de 1979.
A ressonância nuclear
magnética baseia-se em um princípio inteiramente diferente
dos raios-X, que consiste em submeter o paciente a um campo magnético
capaz de polarizar os prótons dos tecidos e gerar imagens nítidas
das áreas magnetizadas. Seu uso em medicina tem-se ampliado e expandido,
substituindo exames mais agressivos utilizados em passado recente. Pela
descoberta da ressonância magnética e de sua aplicação
ao diagnóstico médico, Paul Lauterbur e Pieter Mansfield
receberam conjuntamente o prêmio Nobel em 2003.
Em relação
à contribuição do Laboratório ao diagnóstico
clínico vale mencionar o desenvolvimento de técnicas de alta
sensibilidade, como a do radioimunoensaio, que evoluiu para o método
imunoenzimático e que permitiu detectar nos líquidos orgânicos
e nos tecidos, substâncias em concentrações infinitesimais,
notadamente hormônios, peptídios, neurotransmissores, antígenos
e anticorpos. Pela descoberta do radioimunoensaio Rosalyn Yallow recebeu
o prêmio Nobel de 1974, tendo sido a segunda mulher a receber essa
distinção em Fisiologia e Medicina.
A fibroendoscopia representou,
tanto quanto a radiologia, um dos mais notáveis progressos nos métodos
diagnósticos. A endoscopia com aparelhos metálicos e rígidos
constituía um método pouco satisfatório por suas próprias
limitações.
Em 1958 Hirschowitz e colaboradores
publicavam o primeiro trabalho sobre a utilização de fibra
óptica em endoscopia, resolvendo um dos problemas aparentemente
insolúveis - o da curvatura da luz para obtenção de
imagens. Vinte anos depois, a fibroendoscopia foi superada pela videoendoscopia.
Um campo extraordinariamente
promissor é o da engenharia genética, cuja história
teve início com a determinação por Francis Crick e
James Watson, da estrutura do DNA, base de toda matéria viva e responsável
pela transmissão do código genético. Teve seqüência
com a descoberta por Werner Aber, das chamadas enzimas de restrição,
capazes de clivar a molécula do DNA. Com essas duas descobertas
tornou-se possível alterar o código genético de uma
célula, introduzindo na mesma um segmento do DNA de outra célula
inteiramente diferente.A célula mais utilizada para implante do
DNA recombinante tem sido a bactéria Escherichia coli,
de que já resultaram pelo menos três aplicações
práticas importantes: a produção de insulina, de interferon
e de vacina da hepatite B.
O assunto é tão
revolucionário que mereceu amplo debate nos meios científicos
e políticos dos EE. UU. e da Europa na década de 70, pelo
temor de disseminação na natureza de bactérias modificadas.
Prevê-se ampla utilização da engenharia genética
na produção de uma grande variedade de hormônios, enzimas
e vacinas.
A fecundação
artificial do óvulo no Laboratório e o implante intra-uterino
do ovo fecundado é uma façanha sem paralelo na história
da reprodução humana, que nos faz lembrar o Admirável
Mundo Novo de Huxley. Com efeito, o caminho está aberto para
que se possa conseguir, no futuro, o desenvolvimento do embrião
fora do ventre materno.
Outra conquista impressionante
foi a clonagem de animais pela manipulação celular, tornando
possível a clonagem de seres humanos. Somente questões de
natureza moral poderão impedir o prosseguimento das experiências
nesse sentido.
Descoberta surpreendente
foi também a potencialidade das células-tronco em se diferenciarem
em qualquer tecido do organismo e sua utilização na terapêutica
de muitas doenças degenerativas.
Não poderíamos
deixar de incluir, nesta abordagem, ainda que de maneira sucinta, os admiráveis
progressos verificados com a Cirurgia, especialmente com a Cirurgia cardíaca,
a neurocirurgia e a oftalmologia. Tais progressos tornaram-se possíveis
graças ao concurso de outras disciplinas, como a anestesiologia,
a neurofisiologia, a bacteriologia, a imunologia.
Em face do progresso alcançado,
a duração do ato cirúrgico deixou de ter importância,
e o bom cirurgião já não é aquele que opera
com rapidez, mas o que executa com perfeição a sua tarefa.
A moderna anestesia, com os morfinomiméticos, a monitorização
das funções vitais, o controle da volemia, os relaxantes
musculares, deixa o cirurgião operar com tranqüilidade.
O coração,
antes intocável, tornou-se um órgão acessível
à Cirurgia, graças à introdução da circulação
extra-corpórea, permitindo a correção das malformações
congênitas, a revascularização e outros tipos de operações.
A neurocirurgia e a oftalmologia muito se beneficiaram com o uso dos raios
LASER.
O uso de próteses
tende a expandir-se em diferentes especialidades pela disponibilidade de
materiais inertes e duráveis, incapazes de provocar reações
teciduais.
Os transplantes de órgãos,
inicialmente de rim e atualmente também de coração,
pulmão, fígado, tecido pancreático e medula óssea,
já não constituem novidade. Outros órgãos,
certamente, poderão ser substituídos no futuro.
O sucesso dos transplantes
se deve, antes de tudo, à imunologia, pela descoberta dos antígenos
de histocompatilidade, e à farmacologia, pela obtenção
de drogas imunossupressoras.
Ao lado dos progressos tecnológicos
devemos incluir, entre as grandes idéias que iluminaram o século
XX, os estudos de Freud. As descobertas de Freud sobre o comportamento
humano, com suas motivações instintivas e inconscientes,
representam um marco na história da medicina.
A psicofarmacologia, por
sua vez, trouxe progressos consideráveis no manuseio dos doentes
mentais, terminando com os quadros dolorosos de reclusão e isolamento
de muitos enfermos em celas dos hospitais psiquiátricos.
Dois grandes desafios aguardam
solução: o câncer e a síndrome de imunodeficiência
adquirida (AIDS).
Os conhecimentos sobre o
câncer têm aumentado sem cessar. Muito já se sabe sobre
a sua natureza e os fatores que predispõem ao seu aparecimento.
É indubitável que se trata de uma doença da célula
e o domínio do câncer só será possível
quando a ciência conhecer melhor, em nível molecular, este
universo bioquímico que é uma célula viva. Enquanto
isto não ocorrer, a medicina deve prosseguir aperfeiçoando
as armas de que dispõe atualmente: medidas preventivas, diagnóstico
precoce e tratamento por meio da cirurgia, radioterapia, quimioterapia
e imunoterapia.
Em relação
à AIDS existe um temor exacerbado em conseqüência de
tratar-se de uma doença nova, letal, vinculada à atividade
sexual. A exemplo do que já ocorreu com outras viroses é
de esperar-se que seja desenvolvida uma vacina dentro dos próximos
anos.
Em decorrência de
todos os progressos alcançados pela medicina no século XX,
sobretudo em função das ações preventivas,
surgiram algumas conseqüências que devem ser devidamente avaliadas.
Uma delas foi a do aumento
da duração da vida. Não é um médico
quem o diz, mas um economista. "A medicina moderna reduziu drasticamente
as taxas de mortalidade". Em conseqüência, a duração
média da vida humana estendeu-se até próximo de seus
limites fisiológicos.
Na maioria dos animais a
duração da vida é de 5 a 6 vezes a do período
de crescimento. Na mesma proporção o homem deveria viver
de 90 a 108 anos. Sendo um ser biologicamente frágil, em comparação
com outros mamíferos, o homem é mais suscetível às
doenças e sofre mais intensamente as ações agressivas
do meio ambiente, o que tende a reduzir a duração de sua
vida. Contudo, a expectativa de vida vem aumentando progressivamente.
Tomando os EE. UU. como
exemplo de país desenvolvido, vemos que a esperança de vida
ao nascer, naquele país, era de 35,5 anos em 1800; passou para 40
anos em 1850, 50 anos em 1900, 69 anos em 1950, 74 em 1985 e 77,7 em 2005.
É evidente que a
esperança de vida ao nascer não é a mesma em todos
os países e dentro de um mesmo país varia com a região
considerada. Enquanto na Etiópia a expectativa de vida em 2005 era
de 48,8 anos no Japão alcançava 81,6 anos. Em igualdade de
condições é sempre maior no sexo feminino do que no
masculino.
No Brasil, segundo dados
do IBGE, a expectativa de vida era de 33,4 anos em 1910; passou para 52
anos em 1950, 63,4 anos em 1985, 66,8 anos em 2000 e 71,7 em 2005.
Se por um lado o aumento
da vida média expressa uma conquista real do ser humano, por outro
lado trouxe problemas de ordem familiar, social e econômica, que
somente agora começam a preocupar. O número crescente de
idosos passou a representar um pesado encargo para as famílias e
para a sociedade como um todo, em virtude das doenças crônicas
degenerativas próprias da velhice e das medidas especiais de proteção
que devem ser dispensadas aos mesmos.
Segundo a Organização
Mundial de Saúde, em pelo menos quatro países a duração
média de vida já ultrapassou 75 anos: Suíça,
Holanda, Suécia e Japão.
No Japão, que possui
a média de vida mais elevada do mundo, o problema é crucial.
Há uma década, a imprensa divulgou a notícia de que
o Governo japonês decidiu incentivar a emigração de
idosos para outros países. O plano se intitulava Silver Columbia
1992 e tinha como justificativa, segundo as autoridades japonesas,
proporcionar melhores condições de vida aos aposentados,
de vez que com a pensão que recebem em moeda japonesa poderiam viver
melhor fora de seu país.
A outra resultante da maior
sobrevivência da espécie humana é a chamada explosão
demográfica. O crescimento da população mundial está
se processando em escala geométrica. No início da era cristã
a população mundial era de aproximadamente 250 milhões.
Dezesseis séculos mais tarde este número havia aumentado
para 400 milhões. Em 1800, a população da Terra atingia
1 bilhão de pessoas e 150 anos depois 2,5 bilhões. A partir
de 1950 houve um crescimento acelerado. Em 1985 chegamos a 4 bilhões
e 700 milhões, e em 2005 6,5 bilhões. Para o ano de 2050
a ONU estima que a população mundial será de 9,1 bilhões.
Haverá, segundo a
OMS, uma grande diferença na composição da população
dos países desenvolvidos em relação aos países
em desenvolvimento. Naqueles a população estará envelhecida,
enquanto nestes últimos. Com maior taxa de natalidade haverá
um predominância de jovens.
As profecias pessimistas
de Malthus no século XIX foram desacreditadas pelo aumento da produção
de alimentos. Não é preciso, entretanto, ser profeta, nem
economista, para entender que a Terra tem recursos limitados e que esses
recursos tendem a reduzir-se pela atividade predatória do homem
e pela poluição ambiental.
O que distingue o homem
de outros animais é a razão. Não se pode esperar que
a limitação do crescimento populacional se dê pela
competição biológica como nos insetos e animais inferiores.
Preconceitos ideológicos
e religiosos têm obstado uma visão realista desse problema.
Menciona-se, freqüentemente, a desigual distribuição
de renda como responsável por todos os males e dificuldades nos
países capitalistas. Dificuldades existem, também, nos países
socialistas. Na reforma agrária realizada na China de Mao-Tse-Tung
tocou uma gleba de 1/2 hectare para cada camponês. É óbvio
que se a população fosse a metade da existente, cada um receberia
o dobro do que recebeu.
A Igreja, embora admita
planejamento familiar, tem-se mostrado contrária a muitos dos métodos
anticoncepcionais por ela considerados antinaturais.
Além do crescimento
rápido da população mundial, observa-se em todos os
países, a sua urbanização crescente pela migração
interna em direção às grandes cidades. O problema
é mais agudo nos países em desenvolvimento, nos quais as
cidades crescem a uma taxa de 5,5% ao ano.
Conforme previu a Organização
Pan-americana de Saúde, 80% da população brasileira
no ano de 2000 concentrava-se nas cidades e apenas 20% residiam na zona
rural. As duas cidades mais populosas do mundo são hoje a capital
do México e a cidade de São Paulo.
Este rápido crescimento
da população e a formação de grandes aglomerados
urbanos criam dificuldades às ações de saúde,
relacionadas com alimentação, moradia, trabalho, lazer, assistência
médica, com repercussões negativas nos grupos de menor renda
que vivem na periferia das cidades. Gera, por outro lado, uma nova patologia
derivada de agentes que agridem a saúde e tendem a reduzir a média
de vida.
Dentre eles mencionaremos
a poluição ambiental, o stress, a vida sedentária,
acidentes de trânsito e de trabalho, o uso do fumo, do álcool
e das drogas.
A poluição
ambiental é uma conseqüência da ação do
próprio homem e inclui o solo, as águas e a atmosfera. A
contaminação do solo por agrotóxicos não somente
rompe o equilíbrio ecológico, como representa permanente
ameaça à saúde do homem. A poluição
das águas fluviais pelos detritos industriais destrói a fauna
ictiológica e torna a água imprópria para o consumo.
A poluição da atmosfera por gases e resíduos das grandes
indústrias e dos veículos automotores introduz nos pulmões
substâncias cancerígenas de ação retardada e
está causando o aquecimento do planeta, o que tem sido motivo de
grande apreensão. Pairando sobre todas estas formas de poluição
a ameaça da radioatividade conseqüente ao uso da energia atômica.
O estado de tensão
em que vive o homem nas grandes cidades, em atividades altamente competitivas,
contribui para a maior incidência da hipertensão arterial,
coronariopatias e distúrbios os mais diversos, como insônia,
cefaléia, dispepsia etc. A vida sedentária, por sua vez,
repartida entre o escritório, o automóvel e a televisão,
predispõe à obesidade, ao diabetes e a doenças vasculares.
Os acidentes de trânsito,
nas estradas e nas ruas, representam atualmente a terceira causa de morte
nos países desenvolvidos, somente ultrapassada pelas doenças
cardiovasculares e neoplasias. O Brasil tem, proporcionalmente ao número
de veículos, uma das mais elevadas taxas de mortalidade por acidentes
de trânsito, afora os milhares de deficientes físicos que
ficam inutilizados por toda a vida. Um aspecto agravante é o de
que a maioria dos acidentes ocorre com jovens entre 17 a 28 anos, o que
representa perda ainda maior para a Nação.
Os acidentes de trabalho
são outra causa importante de mortalidade, sobretudo nos países
em desenvolvimento, onde há menor oferta de mão-de-obra e
menor segurança nos ambientes de trabalho. A Organização
Pan-americana de Saúde estimou para a América Latina em 10
milhões o número de acidentes de trabalho no ano de 1984,
com 50.000 mortes. Deste total 10% cabem ao Brasil.
Finalmente os três
grandes males da nossa civilização: o fumo, o álcool
e as drogas.
O fumo é considerado
pela Organização Mundial de Saúde como a principal
causa evitável de doenças e de morte prematura na atualidade,
sendo responsável por 90% dos casos de câncer de pulmão,
99% dos casos de câncer de laringe, 75% dos casos de bronquite e
enfisema, 25% dos casos de coronariopatias, e 4 a 5 milhões de óbitos
em todo o mundo, dos quais 180.000 a 200.000 no Brasil, país considerado
um excelente mercado pelos fabricantes de cigarros. Para dar idéia
da dimensão do consumo, somente em 1981 foram consumidos em nosso
país 135 bilhões de cigarros. O consumo atual é calculado
em 143 bilhões de unidades. Em 1989 o IBGE estimou em 31,7% o índice
de fumantes no País.
Observa-se atualmente a
preocupação em não permitir a propaganda incentivadora
do hábito de fumar e em divulgar os males decorrentes do tabaco,
com o que tem reduzido o índice de fumantes. Preocupa, no entanto,
a constatação de que o consumo de cigarros vem aumentado
entre os jovens.
As Nações
que desenvolveram campanhas contra o tabagismo concluiram que os impostos
arrecadados com a fabricação do cigarro eram insuficientes
para cobrir as despesas com as enfermidades produzidas pelo fumo.
O alcoolismo é outro
mal difundido em todo o mundo. O uso imoderado de bebidas alcoólicas
é responsável por grande parte de acidentes, mortes violentas,
absenteismo e doenças como a cirrose hepática e a pancreatite
crônica.
A cirrose já é
a quarta causa de morte no EE. UU., enquanto nos países da Europa
sua incidência é elevada, proporcional ao consumo de bebidas
alcoólicas.
No Brasil, embora não
existam dados estatísticos precisos, o consumo de bebidas alcoólicas
per
capita tem aumentado a cada ano, especialmente em relação
à cerveja e à aguardente de cana. Segundo dados do IBGE,
o Brasil produziu em 1979 3 bilhões de litros de cerveja e em 1999,
8 bilhões. O consumo per capita aumentou de 25 litros em
1979 para 48,4 litros em 1999. A produção de aguardente de
cana foi de 692 milhões de litros em 1979 e de 1,3 bilhão
de litros.em 2004, dos quais 99% destinados ao consumo interno.
O uso de drogas, a toxicomania,
talvez seja o maior flagelo dos tempos modernos e será o maior desafio
aos governos e à sociedade no século XXI. O número
de usuários de drogas tem aumentado em todo o mundo, sobretudo entre
os jovens.
A maconha, tida por inócua,
é também uma droga perigosa. Segundo relatório da
Organização Pan-americana de Saúde, divulgado em 1986,
seu uso contínuo causa dependência psíquica, reações
de regressão, apatia e lesões cerebrais.
Depois da maconha, a droga
mais utilizada é a cocaína, cujo consumo tem aumentado em
todo o mundo, apesar da guerra movida aos produtores clandestinos e aos
traficantes. A cocaína causa dependência, lesões permanentes
da função cerebral e morte súbita por dose excessiva,
como tem ocorrido com freqüência. Numa escalada progressiva,
a busca de alucinógenos mais potentes como LSD e heroína,
que desintegram a personalidade e abreviam a vida.
Por este inventário
que acabamos de fazer fica evidente que os progressos da medicina no século
XX reduziram as taxas de mortalidade, eliminaram a maioria das doenças
infecciosas, aumentaram a esperança de vida e criaram condições
para uma melhor qualidade de vida.
Fica evidente, também,
que forças adversas tentam anular as vitórias conseguidas
e que novos desafios se apresentam para o século XXI, decorrentes
do crescimento acelerado da população, da sua concentração
em grandes aglomerados urbanos, da ação predatória
do homem na natureza, da poluição ambiental e de hábitos
nocivos à saúde.
Outro aspecto que deve ser
abordado é o da elevação crescente dos custos da atenção
médica em decorrência da sofisticada tecnologia incorporada
aos métodos diagnósticos e terapêuticos.
Tornou-se necessária
a instituição de sistemas de seguro-saúde para fazer
face às despesas com a doença, bem como a participação
crescente do Estado para assegurar o acesso das populações
de menor renda aos serviços de saúde.
Cada país organizou
o seu próprio sistema de saúde na dependência da orientação
político-ideológica dominante e dos recursos econômicos
disponíveis. A medicina deixou de ser uma profissão liberal
e os médicos, em sua maioria, se transformaram em assalariados,
funcionários do Estado ou prestadores de serviço a empresas
e cooperativas de seguro-saúde.
Há uma tendência
irreversível para que o Estado assuma progressivamente todos os
Serviços de Saúde, independentemente do regime político
vigente. A Inglaterra se antecipou nessa direção, estruturando
o seu Sistema de Saúde nos moldes dos países socialistas.
No Brasil há um esforço
nesse sentido com a implantação de SUS (Serviço Único
de Saúde), que presta assistência médica à população
de baixa renda..
O total de recursos alocados
pelo Estado para o Setor de Saúde depende não só da
situação econômica, como principalmente da decisão
política de cada país. Dentre os países latino-americanos
o Brasil se encontra em uma situação intermediária,
com 107 dólares per capita para o ano de 2006, acima
da média da América Latina, enquanto a média dos países
desenvolvidos é de 380 dólares.
O rápido crescimento
demográfico, aliado à deterioração econômica
dos países em desenvolvimento, tem dificultado a extensão
das ações de saúde à população
desses países. Milhões de pessoas em todo o mundo, sobretudo
do chamado terceiro mundo, vivem marginalizadas, carentes de alimentação,
sem casa para morar, sem usufruir das medidas de saneamento, desassistidas
na doença e sem acesso às grandes conquistas da medicina.
Preocupada com esta situação,
a ONU fez realizar em 1978, em Alma-Ata, na União Soviética,
uma reunião da qual participaram 134 países, para debater
o tema Saúde para todos no ano 2000. Todos os 134
países participantes subscreveram um documento, conhecido como Declaração
de Alma-Ata, no qual se comprometeram a desenvolver esforços para
proporcionar a todas as pessoas, no ano 2000, pelo menos a atenção
primária à saúde.
Embora fosse um projeto
ambicioso, quase utópico, a Declaração de Alma-Ata
serviu pelo menos para que os Governos se conscientizassem das suas responsabilidades.
O Brasil, um dos poucos
países que não se fez representar oficialmente naquela histórica
reunião, subscreveu posteriormente a Declaração de
Alma-Ata.
A maior dificuldade de se
atingir a meta proposta tem sido a do financiamento dos Serviços
de Saúde. É óbvio que os gastos com armamento bélico
em todo o mundo seriam mais que suficientes para proporcionar saúde
para todos. Seria utópico, entretanto, pretender usar essa fonte
de recursos.
Chegamos, assim, ao século
XXI empolgados pelo enorme progresso alcançado pela medicina e ao
mesmo tempo aturdidos pelas conseqüências advindas desse mesmo
progresso e pelos novos desafios que se nos apresentam.
Chegamos a ele frustrados
ao verificar que nem todos os homens, mulheres e crianças desfrutam
das mesmas oportunidades de vida e saúde e das conquistas da medicina.
Usando uma expressão
de Lain Entralgo podemos resumir as perspectivas da medicina para o século
XXI em duas palavras: poder e perplexidade.
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*Adaptado do livro "Vertentes da medicina", São Paulo, Ed. Giordano,
2001, p. 65-78.
Joffre M de Rezende
Prof. Emérito da Faculdade de Medicina da Universidade Federal
de Goiás
Membro da Sociedade Brasileira de História
da Medicina
e-mail: pedro@jmrezende.com.br
http://www.jmrezende.com.br
20/02/2006