LINGUAGEM MÉDICA
ORELHA E OUVIDO
Conforme se encontra em várias
fontes, ambos os termos provêm do latim; orelha, de auris,
que designa o órgão da audição, e ouvido,
de
auditus,
particípio perfeito do verbo audio, audire, ouvir,
escutar.
Por via do latim vulgar,
o diminutivo de auris, auricula, evoluiu
para oricla, de que resultou orelha, em português;
oreja,
em espanhol; oricchia, em italiano, e oreille, em francês.
A forma verbal auditus,
ouvido, foi substantivada para indicar a faculdade de perceber os sons,
ou seja, o sentido da audição. O substantivo evoluiu para
ouvido
em
português; oído, em espanhol; udito, em italiano,
e ouie, em francês.
Os compostos relacionados
com o órgão da audição na terminologia médica,
no entanto, não procedem do latim auris e sim do radical
grego equivalente ous, otós, como em
otite, otalgia, otoesclerose, otorreia etc.
O uso de orelha para
designar o aparelho auditivo é bem antigo na língua portuguesa.
Já em Camões, no canto 9, estância 9, de Os Lusíadas,
encontramos:
"Esta
fama,
as orelhas penetrando
Do
sábio
capitão com brevidade..." [1]
Na literatura clássica
dos séculos seguintes há muitos exemplos semelhantes [2][3].
Também na linguagem
médica, orelha tanto designa o pavilhão auricular
como o aparelho auditivo em sua integralidade.
Na Nomina Anatomica
aprovada
no Congresso de Anatomia realizado em 1935, em Jena, na Alemanha, e conhecida
pela sigla JNA, o aparelho auditivo foi dividido em duas
partes: auris interna e auris externa. [4] Posteriormente,
a auris interna
foi desdobrada em
auris media,
que corresponde à caixa do tímpano, e auris interna,
que corresponde ao labirinto.
Na tradução
para a língua portuguesa da Nomina Anatomica aprovada
no Congresso Internacional de Anatomia realizado em Paris, em 1955, e conhecida
pela sigla PNA, o órgão da audição
já aparece com a nova denominação de Órgão
vestíbulo-coclear e dividido em três partes: orelha
interna, orelha média e orelha externa. Os ossículos
situados na orelha média (estribo, bigorna e martelo), no entanto,
são denominados ossículos do ouvido. Na orelha
externa inclui-se o pavilhão auricular com a designação
de orelha seguida da palavra pavilhão entre parênteses.
Esta tradução foi realizada por uma Comissão composta
dos eminentes professores Paulo Mangabeira Albernaz, Álvaro Fróes
da Fonseca e Renato Locchi. [5]
Na tradução
publicada em 1978, sob a coordenação do Prof. Idel Becker
e baseada na PNA com as modificações introduzidas
até 1975, optou-se pela denominação de ouvido
em lugar de orelha para indicar o órgão da audição
como um todo: ouvido interno, ouvido médio e ouvido externo.
Fazendo
parte do ouvido externo figura a orelha, com uma nota explicativa
ao pé da página, de que "alguns dizem ‘pavilhão da
orelha’ ou, tão só, pavilhão."[6]
Na tradução
da 5a. edição da Nomina Anatomica,
aprovada no 11º Congresso Internacional de Anatomistas,
realizado em 1980 na cidade do México, voltou-se a empregar orelha
interna, orelha média e orelha externa, esta última
subdividida em meato acústico externo e orelha (pavilhão).
Os ossículos da orelha média passaram a ser designados
por ossículos da audição (auditivos).[7]
Finalmente, na última
edição da Nomina Anatomica, que mudou de nome,
passando a chamar-se Terminologia Anatomica,
inverteu-se a sequência das partes, colocando-se em primeiro
lugar a orelha externa, seguida da orelha média
e
da orelha interna. Na sua tradução para a língua
portuguesa, publicada pela Sociedade Brasileira de Anatomia em 2001, usa-se
orelha
para
designar tanto o órgão da audição em sua totalidade,
como a parte visível e externa que corresponde ao pavilhão
auricular.
Em Portugal, ao contrário
da nomenclatura adotada pela Sociedade Brasileira de Anatomia, mantém-se
a denominação de ouvido em lugar orelha para
o órgão da audição. É de se lamentar
que não haja uniformidade na terminologia médica dos dois
países.
Entre os eruditos, tanto
nas hostes literárias como científicas, o tema tem motivado
disputas acirradas, como a que ocorreu por volta de 1920 na Faculdade de
Medicina da Bahia, narrada por Mangabeira-Albernaz [3]
Durante o concurso do eminente
anatomista, Prof. Fróes da Fonseca, este foi muito criticado por
um dos examinadores, Prof. Adeodato de Souza, por empregar orelha em
lugar de ouvido ao referir-se ao órgão da audição.
O termo orelha foi acoimado de galicismo pelo examinador, ao que
o examinando retrucou e argumentou que orelha é tão
bom português como ouvido.
Após o concurso,
a polêmica se estendeu a outros professores e letrados, com partidários
de um e de outro dos contendores. A disputa motivou um estudo filológico,
extenso e erudito de autoria de Ernesto Carneiro Ribeiro Filho, no qual
o autor procurou demonstrar a origem comum de ambos os termos e a impossibilidade
de atribuir-lhe significados diferentes [9]
Os dicionários gerais
mais recentes não são concordantes na conceituação
de orelha e ouvido.
Silveira Bueno define orelha
como a "parte externa do ouvido" e ouvido como "órgão
auditivo".[10]
No dicionário de
Aulete-Garcia encontramos a explicação de que a orelha
é
"órgão do ouvido, aparelho situado de cada lado da cabeça
e que no homem consta de três partes que são o ouvido externo
ou pavilhão; o ouvido médio ou tímpano, e o ouvido
interno ou labirinto", enquanto ouvido é "um dos cinco sentidos
pelo qual se percebem os sons e cujo órgão exterior é
a orelha".[11]
No Aurélio século
XXI há duas acepções para orelha e duas
para ouvido.
Orelha: "Cada uma
das duas conchas auditivas situadas nas partes laterais da cabeça
e pertencentes ao ouvido. 2. Órgão da audição;
ouvido."
Ouvido: 1. "Faculdade
de ouvir, de perceber os sons. 2.Cada um dos conjuntos de formações
anatômicas responsáveis pelo sentido da audição
e do equilíbrio".[12]
No Michaelis há
duas acepções para orelha: 1."Pavilhão do ouvido,
expansão de pele sustentada por uma cartilagem que cerca a
abertura externa do conduto auditivo. 2. O ouvido ou sentido próprio
para percepção dos sons". Ouvido, por sua vez, é
definido como "órgão e sentido da audição;
orelha".[13]
Francisco Borba, em seu
Dicionário
de usos do português do Brasil atribui um duplo significado,
tanto para orelha como para ouvido. Orelha designa tanto
o "órgão da audição" como o "pavilhão
do ouvido". Ouvido, por sua vez, é igualmente "órgão
da audição", sinônimo de orelha, bem como a
"parte interior do aparelho auditivo."[14]
No léxico de Houaiss-Villard
há três acepções para orelha e duas para
ouvido.
Orelha: 1. "Anat. Hum. órgão da audição
que possui três partes (externa, média e interna) [Anteriormente
denominada ouvidos]. 2. parte mais externa e cartilaginosa da orelha em
forma de concha; pavilhão auricular. 3. sensibilidade para perceber
os sons; ouvido." Ouvido: 1. "sentido pelo qual se percebem os sons.
2. Órgão da audição e de equilíbrio
dos vertebrados", com a ressalva de que para a anatomia humana "o termo
oficialmente adotado é orelha."[15]
A Academia das Ciências
de Lisboa considera orelha a "parte externa e visível do
aparelho auditivo dos mamíferos, que se situa de cada lado da cabeça
e que, no homem, apresenta forma de concha" e atribui a ouvido duas
acepções: 1. "Um dos cinco sentidos, que permite perceber
os sons. 2. Cada um dos dois conjuntos de formações anatômicas
que constituem o aparelho auditivo".[16]
Nos dicionários especializados
em termos médicos, as interpretações também
não são coincidentes.
Plácido Barbosa,
em seu Dicionário de terminologia médica portuguesa escreve:
"Orelha: aparelho anatômico dos animais que serve à percepção
dos sons, órgão do sentido do ouvido. Chamar orelha somente
ao pavilhão e dizer-se ouvido externo, ouvido interno, ouvido médio
é incorreção de linguagem". "Ouvido é aquele
dos cinco sentidos pelo qual percebem-se os sons e tem por órgão
a orelha e é injustificável a sua sinonímia com orelha
na linguagem técnica".[17]
Pedro Pinto estabelece dois
significados para orelha: 1. "pavilhão do ouvido. 2. aparelho
anatômico para a percepção dos sons; ouvido". E conclui
" Rigorosamente orelha não é sinônimo de ouvido, mas
em bons escritores vê-se orelha como ouvido". Define ouvido como
"órgão ou reunião de órgãos da audição".[18]
Para Paciornik orelha
é
somente a "parte exterior do ouvido", enquanto ouvido tem um duplo
significado: o "sentido pelo qual se percebem os sons" e o "órgão
ou aparelho da audição".[19]
No mais atualizado dos dicionários
de termos médicos, que é o de Luis Rey, orelha e ouvido
são
considerados sinônimos.[20]
No sentido de averiguar
como estariam sendo usados os dois termos na atualidade na linguagem médica,
procedemos a uma consulta aos arquivos da BIREME e encontramos o registro
de 639 ocorrências para orelha e 642 para ouvido. Restringindo
o levantamento somente aos títulos dos artigos indexados, a proporção
foi de 41 para orelha e 40 para ouvido, o que corresponde
a 50% para cada um dos termos.
Em espanhol, entretanto,
o resultado foi muito diverso, indicando um predomínio de oído
sobre
oreja
na
proporção de 18:1 nos textos e 10:1 nos títulos dos
artigos indexados, o que demonstra a preferência dos autores de língua
espanhola por oído em relação a oreja.[21]
Vemos que a dubiedade entre
os dois termos vem desde o latim, o que levou vários autores a considerá-los
sinônimos .
É sabido que não
há sinônimos perfeitos e que palavras com a mesma denotação
semântica podem ter conotações diferentes. Embora na
linguagem médica orelha e ouvido possam ser intercambiáveis,
na linguagem comum a percepção instintiva do povo sabe quando
empregar uma e outra, usando orelha de preferência quando
se refere à parte externa do órgão auditivo e ouvido
quando
se trata da parte interna ou do sentido da audição.
Nos brocardos populares
é nítida esta distinção, como se observa nos
seguintes ditados e expressões: "puxar a orelha", "com as orelhas
ardendo", "de orelha em pé", "com a pulga atrás da orelha",
"espírito santo de orelha", "entra por um ouvido e sai por outro",
"as paredes têm ouvido", "ouvido de tuberculoso", "dar ouvidos",
"ter bom ouvido", "dor de ouvido" e outras similares.
Em que pese à decisão
da Sociedade Brasileira de Anatomia de adotar a denominação
de orelha, tanto para o pavilhão auricular, como para o órgão
auditivo como um todo, parece-me mais racional a nomenclatura usada em
Portugal, na qual se utiliza orelha somente para a parte externa
e visível, e ouvido para a parte interna e o sentido da audição.
Referências bibliográficas
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Irmão, 1970, p. 1.340
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da Língua Portuguesa. Porto Alegre, J. Pereira da Silva, 1945, p.
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R.. – Nomina Anatomica. Arq. Cir. Clin. e Experim., 24:1-101, 1961.
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10. BUENO, F.S. - Grande dicionário etimológico-prosódico
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12. FERREIRA, A.B.H. - Novo dicionário da língua
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14. BORBA, F.S. – Dicionário de usos do português
do Brasil. São Paulo, Editora Ática, 2002.
15. HOUAISS, A., VILLAR, M.S. – Dicionário Houaiss
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16. ACADEMIA DAS CIÊNCIAS DE LISBOA - Dicionário
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17. BARBOSA, P. - Dicionário de terminologia médica
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18.. PINTO, P.A. - Dicionário de termos médicos,
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21. BIREME – Internet. Disponível em http://bases.bireme.br/
em 05/08/2003.
Publicado no livro Linguagem Médica, 3a. ed., Goiânia, AB Editora
e Distribuidora de Livros Ltda, 2004..
Joffre M de Rezende
Prof. Emérito da Faculdade de Medicina da Universidade Federal
de Goiás
Membro da Sociedade Brasileira de História
da Medicina
e-mail: pedro@jmrezende.com.br
http://www.jmrezende.com.br
10/9/2004.