ÁRBITRO DE UMA CONTENDA CIENTÍFICA
PIRAJÁ DA SILVA
(1873-1961)
Completa-se em 2008 o centenário
da descoberta do Schistosoma mansoni e da esquistossomose no
Brasil por Pirajá da Silva.
Manuel Augusto Pirajá da Silva nasceu em Camamu, no estado da Bahia, em 1873.
Seu avô materno era um português, José Ribeiro da Silva, que acrescentou ao seu
próprio nome, o topônimo indígena Pirajá, como demonstração de sua
integração à nação brasileira e em homenagem às lutas que se desenrolaram na
Bahia pela independência do Brasil e que culminaram com a expulsão das tropas
portuguesas em 2 de julho de 1823. Pirajá é o local onde se travaram
grandes combates. Deste patriarca descende a família Pirajá da
Silva.1
Manuel
Augusto Pirajá da Silva matriculou-se no curso médico da tradicional Faculdade
de Medicina da Bahia, a primeira fundada por D. João VI no Brasil, tendo-se
diplomado em 1896. Era dotado de inteligência invulgar e interessava-se pela
cultura de modo geral, além da medicina. Paralelamente aos seus afazeres,
estudava alemão e violino, tendo como ídolos inspiradores Goethe e Paganini.
Como outros ilustres personagens
da medicina brasileira, iniciou suas atividades médicas como clínico,
inicialmente em Amargosa, no estado da Bahia e, a seguir, atraído pelo
desenvolvimento da Amazônia, em Manaus, onde, entretanto, permaneceu apenas por
três meses, retornando a Salvador. Em 1902 foi nomeado professor assistente da
Primeira Cadeira de Clínica Médica da Faculdade de Medicina, sediada no antigo
Hospital Santa Isabel.
Na época
pós-pasteuriana de efervescência do interesse pelas doenças infecciosas e
parasitárias, em que sucessivas descobertas estavam sendo feitas, Pirajá da
Silva sentiu-se atraído para investigar a patologia autóctone nessa área. No
Hospital Santa Isabel dispunha apenas de um microscópio monocular e de escasso
material para preparações histológicas.
Data de 1907 sua primeira
contribuição, que consistiu no achado e descrição em cortes histológicas de um
cancro sifilítico, do Treponema pallidum, descoberto em 1905 por
Schaudinn.
Dada a pobreza de seu
laboratório decidiu realizar exames de fezes rotineiramente em todos os doentes
internados para estudar as parasitoses intestinais. Além de ovos e larvas de
parasitos já conhecidos, teve a surpresa de encontrar ovos de um verme não
identificado, dotados de um espículo lateral. Revendo a bibliografia sobre o
assunto, concluiu que se tratava de um helminto do gênero Schistosoma.
A esquistossomose já era de longa
data conhecida na África, especialmente no Egito, porém o helminto responsável
só foi descoberto em 1851, por Bilharz, razão pela qual, a partir daí, recebeu a
denominação paralela de bilharziose.
A característica clínica mais
importante na esquistossomose africana é a hematúria e a presença de ovos do
verme na urina. Tais ovos são providos de um espículo de implantação terminal.
Bilharz também observou, em alguns doentes hematúricos esquistossomóticos, a
presença nas fezes de ovos com espículo lateral, semelhantes aos encontrados por
Pirajá da Silva.
Em face desses
achados, surgiu uma grande controvérsia entre duas escolas de parasitologia,
lideradas por dois expoentes da parasitologia mundial: Patrick Manson, na
Inglaterra, que admitia a existência de outra espécie de Schistosoma para
explicar os ovos com espículo lateral, e Arthur Loos, de nacionalidade alemã,
professor da Faculdade de Medicina do Cairo, que não valorizava a variação
morfológica dos ovos e defendia uma única espécie de Schistosoma. Antecipando-se
à elucidação dos fatos, Sambon, em 1907, propôs a denominação de Schistosoma
mansoni para a provável segunda espécie com ovos de espículo lateral.
Pirajá da Silva foi o árbitro
desta contenda científica. Coube-lhe dirimir a controvérsia e confirmar a
existência de uma segunda espécie, a que chamou inicialmente de Schistomum
americanum e, posteriormente, de acordo com as normas de prioridade que
regem a nomenclatura científica, de Schistosoma mansoni.
Em uma série de pesquisas
notáveis, Pirajá da Silva obteve em casos autopsiados o verme vivo no interior
da veias do sistema porta e pôde estudar-lhe a anatomia e a biologia. Encontrou
vermes machos e fêmeas isolados e dois pares acasalados, estando a fêmea no
canal ginecóforo do macho. Divulgou seus achados em três artigos publicados na
revista Brazil-Medico, nas edições de 1 de agosto, 1 e 8 de dezembro de
1908.
Seus trabalhos não tiveram,
de imediato, a repercussão que mereciam. Além da atitude preconceituosa em
relação aos países sul-americanos, sem tradição de pesquisa, tratava-se de um
médico desconhecido dos meios científicos.2
Em novembro de 1908 decidiu
viajar a Europa para aprimorar seus conhecimentos e entrar em contato com os
grandes centros de pesquisa das doenças tropicais, visando o intercâmbio
científico e a divulgação de sua descoberta. Em Paris foi recebido por
Blanchard, professor de Parasitologia da Faculdade de Medicina de Paris, que o
encaminhou a Letulle, um estudioso da esquistossomose, quem reviu seu vasto
material fotográfico e histopatológico. Deste contato resultou a publicação nos
Archives de Parasitologie, de sua monografia intitulada La
Schistosomose à Bahia, em março de 1909.3 Uma versão em inglês
foi publicada em junho do mesmo ano no The Journal of Tropical Medicine and
Hygiene..4
De Paris, Pirajá da Silva
foi para Hamburgo, onde estagiou no Instituto de Medicina Tropical e fez amizade
com Henrique da Rocha Lima, pesquisador brasileiro do Instituto Oswaldo Cruz,
que lá trabalhava.
Em 1910
retornou à Bahia e em 1911 foi nomeado pelo Presidente da República, professor
de História Natural Médica da Faculdade de Medicina da Bahia. Entusiasmado com a
descoberta da tripanossomíase por Carlos Chagas investigou a ocorrência da
doença de Chagas e de "barbeiros" infectados nos arredores de Salvador.
Interessou-se igualmente pela amebíase intestinal e pela miíase.
Ao final de 1911 realizou sua
segunda viagem à Europa. Convidado a proferir uma conferência perante a
Sociedade Alemã de Medicina Tropical em abril de 1912, falou em alemão. Refutou
a escola unicista de Loos, demonstrando que se tratava de duas espécies
diferentes de Schistosoma e de duas doenças distintas: a esquistossomose
do Egito e a esquistossomose do Brasil. Voltando à Bahia, completou suas
pesquisas sobre a esquistossomose com a descrição da cercária como um elo na
complexa biologia do Schistosoma. Voltaria a escrever sobre a
esquistossomose somente em 1916 em um número comemorativo do 50o.
aniversário da Gazeta Médica da Bahia, no qual reuniu os trabalhos
anteriores sob o título Schistosomiasis na Bahia.
Como Chefe de Departamento e
Professor era austero, porém respeitado e estimado por seus discípulos, nos
quais procurava despertar interesse pelas doenças e endemias que infelicitam o
nosso povo.
Deve-se a Pirajá da
Silva a tradução para a língua portuguesa da clássica obra do naturalista alemão
Von Martius, Das Natureli die Kankheiten, das Arzthum und die Heilmittel der
Urbewhner Brasiliens (Natureza, doenças, medicina e remédios dos índios
brasileiros).
Em vida Pirajá da
Silva teve o reconhecimento do valor de sua contribuição científica em várias
oportunidades. Em 1911 foi agraciado com a medalha de ouro do Instituto de
Medicina Colonial da França; em 1954, o Instituto de Medicina Tropical de
Hamburgo concedeu-lhe a medalha Nocht, a mais alta distinção daquela
instituição, só conferida a personalidades que se destacaram por relevantes
contribuições à medicina tropical. O Governo Brasileiro, em 1956, o homenageou
com a Gran Cruz da Ordem Nacional do Mérito Médico. Em 1957 recebeu o título de
Doutor Honoris Causa da Universidade de São Paulo.
O cinqüentenário de sua
descoberta, em 1958, foi condignamente comemorado, graças sobretudo à iniciativa
de Edgard de Cerqueira Falcão, médico, escritor, historiador e ex-discipulo de
Pirajá da Silva. Além das sessões comemorativas em São Paulo e em Salvador, foi
criada pelo Ministro da Saúde, Prof. Mário Pinotti, a medalha Pirajá da Silva e
lançado, em 1959, pelos Correios e Telégrafos, um selo comemorativo com a efígie
de Pirajá da Silva.4
Sua trajetória encerrou-se em 1961, aos 88 anos de idade, quando faleceu em sua
residência em São Paulo, deixando viúva sua dedicada esposa, D. Elisa, e seus
dois filhos, Paulo e Regina Pirajá da Silva.5
A vida e a obra de Pirajá da
Silva foram magnificamente retratados por Edgar de Cerqueira Falcão no livro
citado nas referências deste artigo.
A Faculdade de Medicina da
Universidade Federal da Bahia incluiu a comemoração do centenário de sua
descoberta na programação elaborada para festejar, no decorrer de 2008, o
bicentenário daquela faculdade, a primeira do País, fundada por D. João VI em
1808.
Referências bibliográficas
1. Edgard de Cerqueira Falcão. "Pirajá da Silva. O incontestável
descobridor do "Schistosoma mansoni", 1959, pp. 1-55
2. Renato Clark Bacellar. Brazil's contribution to tropical Medicine and
Malaria,1940, pp. 81-88
3. M. A. Pirajá da Silva. "La schistosomose à
Bahia". Archives de Parasitology 13: pp. 283-302, 1908/9.
4. M. A.
Pirajá da Silva. "Contribution to the study of schistosomiasis in Bahia".
Journal of Tropical Medicine and Hygiene 11: pp.
159-164, 1909.
5. . Edgard de Cerqueira Falcão, op. cit.
Modificado de Ética Revista 6(2):22-23,2008
Joffre M de Rezende
Prof. Emérito da Faculdade de Medicina da Universidade
Federal de Goiás
Membro da Sociedade Brasileira de História da Medicina
e-mail: pedro@jmrezende.com.br
http://www.jmrezende.com.br