O USO DA TECNOLOGIA NO DIAGNÓSTICO MÉDICO
E SUAS CONSEQÜÊNCIAS*
1. Histórico
Hipócrates foi o primeiro
a usar a palavra diagnóstico, que significa discernimento,
formada do prefixo dia, através de, em meio de + gnosis,
conhecimento.
Diagnóstico, portanto,
é discernir pelo conhecimento.
Inicialmente, o médico
só dispunha de seus sentidos para exame do paciente. Com a visão,
observava o enfermo, com o tato realizava a palpação e a
tomada do pulso; com a audição ouvia as suas queixas e ruídos
anormais; com o olfato podia sentir odores característicos.
"O exame clínico",
ensinava Hipócrates, "deve começar pelas coisas mais importantes
e mais facilmente reconhecíveis. Verificar as semelhanças
e as diferenças com o estado de saúde. Observar tudo que
se pode ver, ouvir, tocar, sentir, tudo que se pode reconhecer pelos nossos
meios de conhecimento".
Também se examinavam
os excretas, especialmente a urina. O exame macroscópico da urina,
chamado uroscopia, foi largamente utilizado até o século
XVIII.
Dava-se muita importância
ao exame do pulso e Galeno, no século II d.C. chegou a descrever
27 variedades de pulso.
No século XVIII o
exame físico foi aperfeiçoado com a percussão do tórax,
introduzida por Auenbrugger e divulgada na França por Corvisart.
No século XIX a semiótica
foi enriquecida pela descrição de sintomas e sinais característicos
de muitas doenças e pela idealização de manobras e
técnicas especiais de exame. Centenas de sinais identificadores
de doenças foram descritos, os quais passaram a ser conhecidos pelos
nomes de seus descobridores.
Os médicos do século
XIX primavam pelo apuro da observação clínica.
A instrumentalização
do médico teve início no século XIX com a invenção
do estetoscópio por Laennec em 18l6. O estetoscópio era no
início um tubo oco de madeira e evoluiu para o modelo biauricular
atual.
Seguiu-se a termometria.
Embora o termômetro fosse conhecido desde o século XVII, seu
emprego como instrumento para medir a temperatura corporal data de 1852,
quando Traube e, a seguir, Wunderlich, na Alemanha, introduziram o gráfico
de temperatura ou curva térmica, que permitiu a caracterização
dos vários tipos de febre.
A medida indireta da pressão
arterial só se tornou possível a partir de 1880, quando von
Basch, na Alemanha, idealizou o primeiro aparelho, que nada mais era que
uma bolsa de borracha cheia de água e ligada a uma coluna de mercúrio
ou a um manômetro. Comprimindo-se a bolsa de borracha sobre a artéria
até o desaparecimento do pulso obtinha-se a pressão sistólica.
Em 1896, um médico italiano, Riva-Rocci, substituiu a bolsa por
um manguito de borracha e a água pelo ar. A medida da pressão
diastólica teve que esperar por mais 9 anos, até que um jovem
médico russo, Nikolai Korotkov descobrisse os sons produzidos durante
a descompressão da artéria.
Ao final do século
XIX o médico já dispunha dos três instrumentos básicos
utilizados no exame do paciente. Além desses três instrumentos,
outros acessórios foram adicionados à maleta do médico,
como o oftalmoscópio, abaixador de língua, otoscópio,
rinoscópio, martelo de reflexo, etc.
O aperfeiçoamento
do microscópio, por sua vez, deu nascimento à microbiologia,
permitindo identificar os agentes causadores de muitas doenças.
A microscopia trouxe ainda a revelação da estrutura celular
dos seres vivos e a identificação das alterações
patológicas dos tecidos produzidas pelas doenças. Após
os trabalhos de Virchow, publicados em 1864, a teoria da patologia humoral
que orientou o pensamento médico por mais de 2.000 anos foi substituída
pela patologia celular.
A cirurgia, que se limitava
à patologia externa, após a descoberta da anestesia geral
em 1846 e da prática da antissepsia e da assepsia teve um contínuo
progresso.
A tecnologia médica
propriamente dita só se desenvolveu no decorrer do século
XX, com o diagnóstico por imagens, endoscopia, métodos gráficos,
exames de laboratório e provas funcionais.
Como marco inicial da era
tecnológica podemos considerar a descoberta por Roentgen, dos raios-X,
em 1895.
Em seu modesto Laboratório
de Física, Roentgen obteve a primeira radiografia dos ossos da mão
de sua esposa em 28.12.1895 e a 23.1.1896 repetia a experiência perante
a Sociedade de Física de Würzburg, radiografando a mão
do Prof. de Anatomia Albert von Kolliker, que se achava presente. Kolliker
propôs que os raios-X fossem chamados de raios Roentgen, denominação
ainda usada em países europeus.
A descoberta dos raios-X
causou um grande impacto, tanto nos meios científicos como entre
os leigos. Sentia-se que algo de extraordinário fora descoberto
e previa-se uma nova fase para a medicina, o que efetivamente ocorreu.
O diagnóstico por
imagens estava apenas em seu início. Aos raios-X seguiram-se outros
métodos de obtenção de imagens, como a cintilografia,
ultra-sonografia, tomografia computadorizada, ressonância magnética,
e mais recentemente, tomografia com emissão de pósitrons
e gamagrafia.
Outra grande conquista foi
a da endoscopia. A história da endoscopia compreende 4 períodos:
o das válvulas e espéculos, até o século XVIII;
o dos endoscópios rígidos, de 1805 a 1932; o dos endoscópios
semiflexíveis, de 1932 a 1957, e o dos endoscópios flexíveis,
a partir de então.
Em relação
à endoscopia digestiva alta, o período dos endoscópios
semiflexíveis é conhecido como a era de Schindler, tal foi
sua atuação no desenvolvimento e na difusão da endoscopia
na Europa, nos Estados Unidos e no Brasil.
Os endoscópios semiflexíveis
foram suplantados a partir de 1958 pelos endoscópios flexíveis,
construídos com fibra óptica, e estes, 20 anos depois, pela
videoendoscopia.
Os métodos gráficos,
antes utilizados em quimógrafos para estudos de fisiologia e farmacologia,
passaram para o domínio do diagnóstico clínico, inicialmente
com a eletrocardiografia, e posteriormente, com a eletroencefalografia,
manometria, eletromiografia, e outros exames.
Eithoven, quem construiu
o primeiro eletrocardiógrafo, precursor dos modernos eletrocardiógrafos,
recebeu o prêmio Nobel em 1924.
A contribuição
do Laboratório ao diagnóstico clínico é imensa,
desde a hematologia, à bioquímica, imunologia e provas funcionais.
A cada dia, novos exames e novas técnicas de alta sensibilidade
vão sendo acrescentados aos recursos auxiliares do diagnóstico
clínico.
Nos últimos anos
assistimos, maravilhados, as novas conquistas da tecnologia médica,
com a introdução dos raios Laser, dos computadores, da robótica,
da manipulação genética, da clonagem de seres vivos.
Todo este avanço
tecnológico mudou a face da medicina. Trouxe evidentes benefícios
para a humanidade, mas também trouxe algumas conseqüências
negativas que devem merecer a nossa reflexão.
2. Benefícios resultantes da tecnologia médica
Os benefícios resultantes
da tecnologia médica são patentes.
Os modernos recursos tecnológicos
de diagnóstico vieram proporcionar ao médico todos os meios
necessários para um diagnóstico preciso, tanto do ponto de
vista topográfico como etiológico e, o que é mais
importante, mais precoce, com evidente benefício para os pacientes,
como ocorre no caso das neoplasias.
Trouxeram maior segurança
ao médico e o apoio necessário para tomada de decisões
importantes no tocante à conduta e ao tratamento, seja nos casos
de urgência, seja nas doenças crônicas.
Aboliram praticamente as
laparotomias exploradoras e as chamadas terapêuticas de prova.
Ampliaram e diversificaram
os métodos terapêuticos e os procedimentos cirúrgicos.
Possibilitaram ainda a documentação
dos casos em todos os seus aspectos, permitindo maior intercâmbio
de experiências e difusão de conhecimentos.
Poderíamos dizer
que a tecnologia médica mudou a face da medicina.
Era de se esperar que todo
esse notável progresso trouxesse maior aproximação
entre o médico e o paciente, mas ocorreu exatamente o oposto.
Houve uma deterioração
da relação médico-paciente. O médico ganhou
em eficiência, em capacitação profissional, em recursos
diagnósticos e terapêuticos, mas perdeu em prestígio.
Por que esse paradoxo?
3. Conseqüências negativas
As principais conseqüências
negativas foram a negligência com o exame clínico, a sedução
dos aparelhos e a falsa segurança, a elevação dos
custos da assistência médica. pelo uso excessivo de exames
como autoproteção do médico e a fragmentação
e o reducionismo da prática médica.
a) Negligência com o exame clínico
A negligência com o
exame clínico decorre de dois fatores: a pressa com que o paciente
é atendido no modelo atual de assistência médica e
a crença de que os recursos da tecnologia médica suprirão
essa negligência.
A medicina se tornou mais
técnica e menos humana. O médico, de modo geral, passou a
se preocupar mais com imagens e constituintes biológicos do que
com o paciente como ser humano; passou a dar menor atenção
às queixas do paciente e a examiná-lo mais apressadamente.
Afinal, para que ouvir os
pulmões, se a radiografia do tórax dá muito mais informações?
Por que dar atenção às características da dor
epigástrica se a videoendoscopia pode filmar e fotografar o interior
do estômago? Para que examinar o abdome com manobras palpatórias
se o ultra-som pode documentar uma provável esplenomegalia? E assim
por diante.
Houve uma deterioração
da relação médico-paciente. Aos fatores decorrentes
dos sistemas de seguro-saúde, como a intermediação
dos serviços médicos, a regulamentação burocrática
e o atendimento despersonalizado, veio somar-se a negligencia com o exame
clínico.
Harrison salientou com muito
senso de humor, que a tendência atual é o doente ser examinado
pelo médico durante 5 minutos e passar 5 dias submetendo-se a exames
e testes os mais diversos, na esperança de que o diagnóstico
saia do Laboratório como o coelho sai da cartola de um mágico.
Neste tipo de medicina deixa
de haver o ato médico do exame clínico que, segundo o Prof.
Mário Rigatto, é o momento ideal de conquista do paciente,
de estabelecimento da empatia e da confiança tão necessárias
ao exercício da medicina.
O paciente reage com desconfiança
e hostilidade e passa a exigir mais de seu médico em resultados.
Afinal, não tem ele, à sua disposição tantos
recursos técnicos? O diálogo entre ambos perdeu aquele sentido
a que Balint chamou de "colóquio singular" e tornou-se inquisitivo
de lado a lado.
Nesse contexto, os pacientes
ditos funcionais são os que mais padecem. São enviados
a múltiplos exames e testes, que não esclarecem a sua doença,
porém revelam, muitas vezes, achados de somenos importância,
tais como pequenos cistos ovarianos, renais ou hepáticos, um colo
irritável, ou uma taxa de colesterol ligeiramente elevada, achados
estes que passam a constituir substrato imaginário para novas somatizações.
b) A sedução dos aparelhos e a falsa segurança
Outra conseqüência
do avanço da tecnologia médica é a que ousamos chamar
de a sedução dos aparelhos e a falsa segurança.
Tanto os médicos
como os pacientes foram seduzidos pelas máquinas, pelos gráficos
e pelos números, que dão a aparência de exatidão,
substituindo a medicina qualitativa pela quantitativa.
Muitos pacientes são
fascinados pelos recursos tecnológicos da medicina, que despertam
neles os mesmos sentimentos que despertavam em seus antepassados os poderes
mágicos da medicina primitiva. Contribui para isso a divulgação
sensacionalista dos meios de comunicação, em especial da
televisão, criando a falsa impressão de onisciência
e onipotência da medicina atual. "Dr., o Sr. viu o último
programa do Fantástico?" Essa é uma pergunta freqüente
hoje em dia nos consultórios médicos.
Este fato trouxe conseqüências
danosas aos médicos, quase sempre acusados de erro médico
quando os resultados não correspondem às expectativas otimistas
dos pacientes ou de seus familiares.
Por outro lado, o médico,
sentindo-se inseguro, passou a basear seu julgamento e sua conduta nos
resultados de exames, muitas vezes aceitos passivamente, sem a preocupação
de correlacioná-los com os achados clínicos.
É necessário
lembrar que todo exame tem suas limitações e suas falhas
ligadas à técnica, ao equipamento e ao observador
Existe a idéia errônea
de que os métodos tecnológicos são estritamente objetivos,
desprovidos de conteúdo subjetivo, como ocorre com o exame clínico.
A tecnologia não
afasta o componente subjetivo a que estão sujeitos os relatórios
e laudos dos exames por imagens, com a agravante de que o especialista
ou o técnico que realiza o exame não se acha comprometido
com a condução do caso e desconhece, na maioria das vezes,
a história clínica e os achados do exame físico, que
deixam de ser fornecidos pelo médico assistente.
Também em relação
aos exames de laboratório, estudos realizados sobre a exatidão
e reprodutibilidade dos mesmos demonstraram resultados discordantes em
proporção acima dos limites de probabilidade de erro admissíveis
para cada exame. As causas principais foram atribuídas à
deficiente qualificação técnica do pessoal auxiliar,
que executa os exames; má qualidade dos reagentes empregados; defeito
nos equipamentos; erros de rotulagem e manuseio do material, e falta de
controle e supervisão. Nem mesmo a automação é
uma segurança de exatidão, pois depende da qualidade dos
kits empregados e da calibração dos aparelhos.
c) Medicina defensiva como autoproteção do médico
Outra conseqüência
negativa é a que se convencionou chamar de medicina defensiva.
O médico passou a solicitar um maior número de exames complementares
para bem documentar-se e assim se proteger de possíveis acusações
de negligência ou omissão em caso de insucesso.
Isto pode ser exemplificado
pelo uso rotineiro de radiografias em casos de fraturas de membros, muitas
das quais poderiam ser corretamente diagnosticadas e tratadas sem o auxílio
da radiologia.
Do mesmo modo tornou-se
rotina o uso da tomografia computadorizada ou da ressonância magnética
em casos de traumatismo de crânio, por menor que seja, independentemente
de sua natureza ou da sintomatologia. Em um hospital do EE.UU. verificou-se
que apenas um em 16 casos havia justificativa para o exame.
Um inquérito realizado
pelo Colégio Americano de Cirurgiões entre 16.000 de seus
membros, revelava que cerca de metade dos exames solicitados eram reconhecidamente
dispensáveis, porém foram feitos como autoproteção
do médico contra possíveis processos de malpractice.
Muitos pacientes, especialmente
aqueles que têm seguro-saúde ou algum tipo de convênio
e que não participam diretamente das despesas, sugerem ao médico
a realização de um número excessivo de exames sem
uma indicação precisa. A fim de se proteger contra possíveis
acusações de erro médico por omissão ou negligência,
o médico atende às solicitações do paciente.
Esta conduta cautelar, que
já existe há algum tempo nos países do primeiro mundo,
só agora está se tornando frequente no Brasil.
Todas estas práticas
elevam consideravelmente os custos da assistência médica.
e) Elevação dos custos da assistência médica
As despesas decorrentes da
utilização abusiva da tecnologia médica vem acarretando
uma contínua elevação dos
custos
da assistência médica, acima do poder aquisitivo da maioria
das pessoas e dos recursos alocados à saúde pelo Estado.
Os planos de seguro-saúde
tendem a cobrar mensalidades elevadas ou estabelecer cláusulas de
restrição ao atendimento, o que gera conflitos como estamos
presenciando atualmente. Os hospitais públicos, por sua vez, não
conseguem acompanhar a crescente demanda e a evolução dos
gastos.
Muitos hospitais e clínicas
adotam a prática de realizar em todos os pacientes, independentemente
dos sintomas, um certo número de exames, chamados de exames de
rotina. O número desses exames varia, em média, de 6
a 18. A automação dos laboratórios de patologia clínica
veio incrementar ainda mais o número de tais exames.
Em um hospital da California,
nos EE.UU., Kaplan constatou que em 6.200 análises químicas
realizadas em pacientes que iam submeter-se a intervenções
cirúrgicas eletivas, 60% eram desnecessárias.
A endoscopia digestiva alta
tem sido indicada em praticamente todo paciente dispéptico e o número
de exames normais cresce a cada dia, o que denota uma conduta sem nenhum
critério clínico para indicação deste tipo
de exame.
Existe, ainda, a tendência
de utilizar recursos tecnológicos mais dispendiosos, em lugar dos
mais simples, quando o médico não está orientado sobre
qual o exame mais apropriado a cada caso, sobretudo em relação
ao diagnóstico por imagem.
A questão é
tão preocupante que a Organização Mundial de Saúde
editou, em 1990, um manual intitulado: Escolha apropriada de técnicas
de diagnóstico por imagem na prática médica. Na
introdução desta publicação lê-se o seguinte
trecho: "Submeter o paciente a toda uma série de exames e esperar
que pelo menos um deles permita fazer o diagnóstico é uma
forma inaceitável de exercer a medicina por causa do custo e do
risco de exposição a radiações que acarretam
exames desnecessários".
d) Fragmentação e reducionismo da prática médica
Com o avanço da tecnologia
médica, aumentou de tal maneira a complexidade da medicina, que
se tornou necessária a especialização em áreas
cada vez mais restritas de atuação médica.
A sociedade, de modo geral,
a mídia e as Instituições públicas e privadas
passaram a supervalorizar o especialista em detrimento do médico
geral, seja ele clínico ou cirurgião.
A especialização
precoce, sem aquisição de uma base mais ampla de cultura
médica, por sua vez, passou a produzir um tipo de médico
que se comporta no exercício da profissão como verdadeiro
técnico confinado em seu campo de trabalho, sem a capacidade de
integração dos conhecimentos e de percepção
do quadro clínico do paciente em sua totalidade e abrangência.
Já dizia o grande
mestre espanhol Jimenez Diaz que o bom especialista é aquele que
é capaz de reconhecer os casos que não são de sua
área.
A especialização
precoce tem sido um mecanismo de escape no sentido de assegurar um lugar
no mercado de trabalho, cada vez mais competitivo, e de garantir a sobrevivência
econômica do médico e sua família.
O número de especialidades
médicas tem aumentado a cada ano. A Comissão Mista de Especialidades
formada por representantes da Associação Médica Brasileira,
Conselho Federal de Medicina e Comissão Nacional de Residência
Médica, depois de demorados estudos, elaborou um convênio
que foi subscrito pelas três entidades, em 11/04/2002, reconhecendo
oficialmente 50 especialidades e 64 áreas de atuação.
A área de atuação pode estar ou não vinculada
a uma especialidade. Em um novo convênio celebrado em 15/07/2008,
o número de especialidades foi elevado para 53 e o de áreas
de atuação reduzido a 54, conforme Resolução
CFM 1.845/2008.
Essa fragmentação
excessiva da medicina em especialidades e subespecialidades deixou um vazio
a ser preenchido, que é o do médico de família, capaz
de resolver, ele mesmo, a maior parte das ocorrências e de encaminhar
o paciente, quando necessário, a um serviço especializado.
Atualmente, o paciente sente-se desorientado e deve decidir, por si mesmo,
que especialista procurar em busca de um diagnóstico.
A necessidade do clínico
geral tornou-se patente e voltou a ser sentida pela sociedade.
Há uma política
atual por parte do Ministério da Saúde no sentido de incentivar
a formação de clínicos gerais para atuarem como médicos
de família.
Comete-se, entretanto, o
erro conceitual primário de considerar como clínico geral
o médico recém-egresso de nossas Faculdades, sem treinamento
em nível de pós-graduação. Os cursos de graduação
não proporcionam a terminalidade exigida e o recém-formado
não tem condições nem conhecimentos suficientes para
o desempenho que se espera de um médico de família.
Enquanto perdurar a distorção
de se considerar o clínico geral como um pária da medicina,
que não conseguiu ascender a posições mais elevadas
na hierarquia profissional, haverá uma fuga constante para as especialidades,
que gozam de maior prestígio, são melhor remuneradas e exigem
menor conhecimento da medicina como um todo.
No atual estádio
de desenvolvimento da medicina, a única solução, a
nosso ver, é a de conferir à Clínica Médica
o mesmo status das demais especialidades, após treinamento
em nível de pós-graduação em residência
própria.
Em contrapartida, o clínico
geral ou médico de família deverá ser visto como um
médico de maior cultura geral, com uma visão ampla da medicina
e que se especializou em Clínica Médica por opção.
Seu trabalho deve ser reconhecido como de importância fundamental
na organização de qualquer sistema de saúde. O principal
aparelho de que irá dispor para o exercício da medicina é
a sua inteligência e a sua competência e por isso deverá
ser bem remunerado.
Síndrome de Gaiarsa
A extrema dependência
de exames complementares em que se coloca o médico para o diagnóstico
e a condução do tratamento acaba por ocasionar um estado
de verdadeira preguiça mental e atrofia do raciocínio clínico.
Ocorre mais ou menos o que sucedeu com muitas pessoas, sobretudo os mais
jovens, que, após a difusão das calculadoras eletrônicas;
já não sabem realizar mentalmente as 4 operações,
nem mesmo multiplicar ou dividir usando lápis e papel.
Nesse tipo de medicina,
que foi chamada de medicina descerebrada, a eficiência do
médico passou a ser medida pelo número e variedade de exames
que ele solicita, sem levar em conta a sua necessidade ou possíveis
benefícios que possam resultar para o paciente.
O Prof. Irany Novah Moraes,
em seu livro "O Clínico geral e o especialista" rotulou esta situação
de Síndrome de Gaiarsa.
Antônio Octaviano
Gaiarsa é um médico de 83 anos de idade, autor do livro "Sindromologia",
que relatou à revista "Consultório Médico", da Associação
Paulista de Medicina, o que ocorreu com sua esposa, operada de uma neoplasia
do colo transverso. Diz o Dr. Gaiarsa: "Arquivei 530 exames, sendo 64 radiografias,
27 dosagens de creatinina, 60 de colesterol, 50 de triglicérides,
69 exames de urina, etc., que não foram realizados com finalidade
diagnóstica. Jamais, em tempo algum, os colegas que deram assistência
à paciente indagaram se, nas consultas anteriores, haviam sido feitos
tais ou quais exames. Foram tantos os exames repetidos que, de acordo com
a minha experiência, não têm qualquer justificativa,
para não falar da considerável carga de raios X. Os critérios
usados pelos médicos assistentes são contrários às
regras mais simples e universais da ética e da técnica, além
dos encargos financeiros exigidos por toda essa parafernália. Esse
tipo de assistência médica não é suportável
por uma pessoa mais atenta, ou para um cliente da Saúde Pública
ou de uma organização assistencial. Questiono o exercício
e a qualidade desse tipo de medicina moderna".
O que fazer?
O futuro da tecnologia médica,
a julgar por seu progresso acelerado nos últimos anos, nos faz prever
que a cada dia vão surgir novos equipamentos, novos aparelhos e
novos recursos diagnósticos e terapêuticos. O importante é
saber quando utilizá-los e ter uma noção clara das
suas indicações, suas limitações, seus riscos
e da relação custo-benefício em cada caso em particular.
Diante do panorama atual,
a pergunta óbvia é: o que fazer?
Uma das medidas de responsabilidade
médica que pode contribuir para anular as conseqüências
negativas advindas do progresso tecnológico consiste em revalorizar
o exame clínico na formação médica. Não
se trata de voltar ao passado, mas de estabelecer uma hierarquia de valores.
Como diz o Prof. Celmo Porto
no prefácio de seu livro Semiologia Médica não
há incompatibilidade entre a clínica e a tecnologia médica.
É necessário,
entretanto, que o médico esteja preparado para utilizar com proveito
todos os recursos tecnológicos de que dispõe atualmente.
Desde o início do
curso, o estudante deve ser instruído quanto às indicações,
limitações e sensibilidade de cada método de exame
auxiliar.
Deve aprender que os exames
complementares (e por isso são assim chamados) só devem ser
solicitados após um cuidadoso exame clínico do paciente,
compreendendo anamnese e exame físico, e a formulação
clara da ou das hipóteses diagnósticas, e não às
cegas, como o pescador que atira a rede à água na esperança
de pegar um peixe.
É necessário
que o médico esteja apto a fazer uma avaliação crítica
da relação custo-benefício de cada exame em diferentes
situações. Muitos exames são desnecessários
e nada acrescentam ao diagnóstico e ao tratamento.
Finalmente, lembrar que
a responsabilidade do diagnóstico é sempre do médico
que atende o paciente e não das máquinas ou dos técnicos
que as operam, e que o paciente deve ser visto como um ser humano, uma
pessoa, e não como uma outra máquina que necessita reparos.
Como dizia um dos maiores
clínicos deste século, que foi Osler, a medicina deve começar
com o paciente, continuar com o paciente e terminar com o paciente.
___________
*Versão apresentada ao XIV Encontro Científico do Acadêmicos
de Medicina. Goiânia, 20/09/2002.
Atualizado em 24/10/2008
Joffre M. de Rezende, Professor Emérito da Faculdade de Medicina
da Universidade Federal de Goiás. Membro da Sociedade Brasileira
e da Sociedade Internacional de História da Medicina.
e-mail: pedro@jmrezende.com.br
http://www.jmrezende.com.br