O FALSO CAMINHO DAS TIFLLITES E PERITIFLITES
A história da medicina
está repleta de falsos caminhos, que são trilhados
durante décadas, ou mesmo séculos, até que o tempo,
a experiência acumulada, novas idéias e novas descobertas
indiquem outra direção a tomar. A mudança de rumo
não é fácil. Há uma inércia generalizada
e uma acomodação ao pré-estabelecido que se opõem
a qualquer idéia inovadora. Exemplo típico é o das
tiflites
e
peritiflites.
Desde a antiguidade
que se conhecem casos de dor abdominal, com reação peritonial
localizada na fossa ilíaca direita, náuseas, vômitos
e febre.
Antes da descoberta da anestesia
geral em 1846 e da antissepsia em 1867, a intervenção cirúrgica
na cavidade abdominal era uma ousadia e os cirurgiões que se aventuravam
a praticá-la sabiam que, além de aumentar o sofrimento do
paciente, teriam uma alta mortalidade por peritonite e septicemia. Equivalia
quase a um homicídio deliberado.
O quadro clínico
da peritiflite poderia evoluir de três maneiras: regressão
dos sintomas, formação de abscesso que aflorava na parede
abdominal, permitindo sua drenagem , ou, o que era mais comum, evoluir
para o óbito. Milhares de pessoas em todos os tempos e em todas
as latitudes sucumbiram a esta misteriosa doença cuja verdadeira
causa era desconhecida. Os que aparentemente se curavam estavam sujeitos
a recidivas futuras.
Para explicar as supurações
da fossa ilíaca direita, a primeira idéia era de que o processo
se iniciasse no ceco, espalhando-se em torno do mesmo, levando à
formação de uma tumoração palpável,
de consistência firme, que poderia evoluir para abscesso. Este poderia
ser esvaziado com uma pequena incisão na parede abdominal e colocação
de um dreno.
A afecção
deveria receber uma denominação de cunho científico
e, como a terminologia médica é essencialmente baseada na
língua grega, a inflamação do ceco passou a ser designada
por tiflite (do gr. typhlós, ceco + sufixo
–ite,
designativo de inflamação) e sua extensão às
partes vizinhas, de peritiflite (do gr. peri, em torno
+typhlós, ceco + sufixo ite). Tais termos
foram criados no século XIX.[1][2]
O termo peritiflite se
deve a Puchelt e Goldberck, na Alemanha, pois estavam eles convencidos
de que a inflamação fosse primariamente do ceco, daí
se espalhando às imediações e atingindo o apêndice
vermiforme. [3]
Dupuytren, renomado cirurgião
francês, atribuía a inflamação à estase
fecal no ceco e à presença da válvula ileocecal, um
estreitamento que popiciava o aparecimento de secreções e
inflamação. Na época, a supremacia da medicina francesa
favoreceu a aceitação desta teoria patogênica por outros
centros médicos, como se a mesma tivesse sido comprovada. [3]
No Dicionário de
Medicina Popular, de Chernoviz, todo ele baseado na medicina francesa,
encontramos a seguinte definição de tiflite: "Afecção
caracterizada pela inflamação de uma parte do grosso intestino
que se acha na fossa ilíaca direita, que se chama intestino cego.
N’esse lugar as matérias fecaes ficam paradas mais tempo que em
outra qualquer parte do tubo digestivo. Sob a influência de prolongada
acumulação ou da presença de corpos estranhos irritantes
fica inflamado."[4]
Os conhecimentos anatomopatológicos
adquiridos até então sobre a tiflite e peritiflite provinham
de achados de necrópsia e retratavam o processo inflamatório
em sua fase terminal.[5] Não se conhecia a fase inicial nem o local
de origem da inflamação. O comprometimento do apêndice
era considerado secundário, decorrente da peritiflite.
Todavia, nas autópsias
realizadas, chamava a atenção a natureza das lesões
apendiculares. O apêndice achava-se quase sempre contendo pus, roto,
esfacelado, ou enegrecido.
Heister, na Alemanha, em
1711, ao autopsiar o cadáver de um criminoso que havia sido enforcado,
encontrou o apêndice necrosado e cheio de pus.[3] Relatou o caso,
que foi simplesmente ignorado pelos médicos da época. Na
Inglaterra, em 1812, John Parkinson relatou um caso de necrópsia,
no qual o apêndice estava inflamado [6] e, na França, em 1824,
Louyer-Villermay autopsiou dois casos fatais de peritonite, nos quais encontrou
perfuração do apêndice.[7]
O primeiro autor a sugerir
a possível relação entre a inflamação
do apêndice e os abscessos da fossa ilíaca direita foi o médico
francês François Melier, em 1827.[8]
O tratamento recomendado
para as tiflites e peritiflites consistia em purgativos na fase inicial,
"para eliminar as secreções", e ópio, em caso de agravamento
dos sintomas, "para alíviar a dor e colocar o intestino em repouso".
Diante dos sinais de formação de abscesso usava-se ainda
cataplasma sobre a parede abdominal.[3]
O tratamento cirúrgico
com abertura da cavidade abdominal foi realizado com êxito pela primeira
vez em 1848, no Charing Cross Hospital, de Londres, por Hancok, em um caso
com peritonite e abscesso apendicular. O paciente sobreviveu.[9]
Nos Estados Unidos, alguns
cirurgiões mais jovens, com idéias inovadoras, passaram a
questionar a validade do tratamento clínico conservador nas peritiflites
e, apesar da resistência oferecida pela maioria dos médicos,
optaram pelo tratamento cirúrgico, que se tornara mais facilmente
exequível após a anestesia e a antissepsia. Em 1880, Sands
publicava 26 casos operados com apenas dois óbitos. Convencido do
acerto de sua conduta preconizou a intervenção precoce com
a retirada do apêndice.[10]
A contribuição
decisiva para colocar uma pá de cal na tiflite e peritiflite como
entidade nosológica, se deve a Reginald Heber Fitz.
Fitz graduou-se em medicina
em 1843, em Harvard, e durante dois anos estudou com Rokytansky em Vierna
e Virchow em Berlim. Em 1879 foi nomeado professor de Anatomia Patológica
na Universidade de Harvard. Demonstrando interesse pela Clínica,
tornou-se professor de Medicina Interna a partir de 1892, ocupando esta
posição até 1908, quando se aposentou.[11]
Em 1886 apresentou a Association
of American Physicians seu clássico trabalho no qual relata
25 casos bem documentados de autópsia, mostrando que o processo
inflamatório nas peritiflites tem origem no apêndice perfurado.
Fitz cunhou o termo "apendicite", que iria suceder aos de tiflite e peritiflite.[12]
De início, sua teoria
de que todos os casos de abscesso da fossa ilíaca direita fossem
resultantes de apendicite aguda não foi bem recebida, especialmente
nos países europeus, onde sequer se admitia o neologismo por ele
criado de "apendicite".
Thomas Morton, filho do
descobridor da anestesia geral, havia perdido um irmão e um filho
de apendicite. Em 1887, um ano após a conferência de Fitz,
ele diagnosticou e operou com êxito um caso de apendicite aguda supurada.
Este caso foi relatado por Woodbury [13]. No ano seguinte operou outro
paciente em que o apêndice encontrava-se inflamado, mas não
havia pus, nem perfuração. Este foi, talvez, o primeiro caso
de remoção do apêndice ainda íntegro na apendicite
aguda.[3]
Dois cirurgiões norte-americanos,
que deram crédito a Fitz, tiveram um papel relevante na comprovação
de que o apêndice, e não o ceco, era realmente o local de
origem da peritiflite, que poderia ser evitada com a apendicectomia assim
que o paciente apresentasse os primeiros sintomas da enfermidade. Foram
eles Charles Mc Burney, de Nova York, e John Murphy, de Chicago.
Mc Burney, em 1889, relatou
sete casos por ele operados, com apenas um insucesso. Demonstrou que era
possível o diagnóstico precoce da apendicite pela palpação
do abdome e descreveu o ponto doloroso à pressão digital,
hoje conhecido como "ponto de Mc Burney".[14]
Murphy foi um entusiasta
da apendicectomia precoce, chegando a ter a maior casuística da
época. Em 1889 comunicou à Sociedade Médica de Chicago
sua experiência de cerca de 100 casos operados com êxito. Sua
comunicação foi mal recebida e sua conduta foi considerada
de um "radicalismo fanático".[3]
Murphy responsabilizou os
clínicos que faziam o primeiro atendimento ao doente pelos maus
resultados das operações, decorrentes da demora na indicação
do tratamento cirúrgico, agravando o prognóstico. A polêmica
ultrapassou o meio médico e alcançou a população
leiga. Doentes com sintomas de provável apendicite passaram a exigir
o parecer de um cirurgião.[3]
Aos poucos, a prática
da apendicectomia precoce, antes da formação de abscesso,
estendeu-se a outros centros médicos norte-americanos.
Na Europa, porém,
tanto os clínicos como os cirurgiões persistiam na conduta
de iniciar o tratamento com purgativos e ópio, aguardar a evolução
e só operar após os sinais de peritiflite com formação
de abscesso. Alguns cirurgiões admitiam, no máximo, intervir
cirurgicamente antes que o abscesso emergisse na parede abdominal.
Um médico brasileiro,
de nome Malaquias Antonio Gonçalves, que estagiou nos hospitais
de Paris no final do século XIX, anotou em um Diário todas
as operações a que assistiu. Dentre elas cita um caso de
abscesso por peritiflite operado por Péan, um dos mais ilustres
e respeitados cirurgiões da França. Reproduzimos a seguir
o texto original tal como se encontra em seu Diário:
"Paris, 21.11.1891 - Hospital São Luiz - Serviço do Prof. Péan - Incisão de um abscesso da fossa ilíaca interna. Dr. Pean narra a história deste doente e passa a praticar a incisão. O Dr. Pean é partidário da incisão precoce com o fim de evitar os sérios perigos que correm os doentes sofrendo de abscessos ligados à peritiflite. O Dr. Péan incisa camada por camada até o peritônio alguns centímetros acima da arcada de Poupart. Saíu grande quantidade de pus fétido. O Dr. Péan introduz um tubo de drenagem e faz uma lavagem anti-séptica." [15]
Thorwald, em seu livro "O
século dos cirurgiões" narra com detalhes os acontecimentos
dramáticos que cercaram a coroação do rei da Inglaterra,
Eduardo VII, filho da rainha Vitória, em decorrência da apendicite
aguda que acometera Sua Majestade.
Os fatos se passaram em
1902, portanto 16 anos após a divulgação do trabalho
de Fitz e quando a apendicectomia já era amplamente praticada nos
Estados Unidos imediatamente após o diagnóstico de apendicite.
Assistido pelos mais famosos médicos de Londres, dentre os quais
Lister, o futuro rei teve de esperar nada menos de 10 dias antes que se
decidisse pela intervenção cirúrgica.[3]
Com o decorrer do tempo,
a verdade se impôs e os centros médicos europeus passaram
a adotar a conduta da intervenção precoce e abandonaram as
denominações de tiflite e peritiflite pela de apendicite.
Referências bibliográficas
1. OXFORD ENGLISH DICTIONARY (Shorter), 3.ed. Oxford,
Claredon Press, 1978.
2. DAUZAT, Albert, DUBOIS, J. , MITTERRAND, H.i - Nouveau
dictionnaire étymologique et historique, 3.ed. Paris, Larousse,
1994.
3. THORWALD, J. – O século dos cirurgiões
(trad.) São Paulo, Boa Leitura Editora, s/d, p.315-348
4. CHERNOVIZ, P.L.N.- Dicionário de medicina popular,
6.ed. Paris, 1890.
5. MORTON, L. T. - A medical bibliography (Garrison and
Morton), 4.ed. London, Gower, 1983., p. 480-482
6. PARKINSON, J.W.K. – Case of diseased appendix vermiform.
Med.
Chir.Trans. 3:57-58, 1812. Apud MORTON [6]
7. LOUYAER-VILLERMAY, J.B. – Observations pour servir
à l’histoire des inflammations de l’appendice du caecum. Arch.
Gén. Med. 8: 246-250, 1824. Apud MORTON [6]
8. MELIER, F. – Mémoire e observation sur quesques
maladies de l’appendice cécale. J. Gén. Med. 100:317-343,
1827. Apud MORTON [6].
9. HANCOCK, H. – Disease of the appendix caeci cured
by operation. London Me. Gaz. 7:547-550. Apud MORTON [6]
10. SANDS, H.B. – On perityphlitis. Ann. Surg. Anat.
Soc. 2:249-270, 1880. Apud MORTON [6]
11. MAJOR, R. H. - A history of medicine. Oxford, Blackwell
Scientific Publications, 1954.
12. FITZ, R.H. – Perforating inflammation of the vermiform
appendix, with special raefaearence to its early diagnosis and treatment.
Trans.
Ass. Amer. Phys., 1:107-144, 1886. Apud MORTON [6]
13. WOODBURY, F. – Cases of exploratory laparotomy followed
by appropriate remedial operation. Trans. Coll. Physi. Philad. 9: 183,
1887.Apud MORTON [6].
14. MC BURNEY, C. – Experience wiath early operative
interference in cases of disease of the vermiform appendix. N.Y. Med.
J. 50:575-684, 1889. Apud MORTON [6
15. REZENDE, J.M.de, FREITAS, L.C.B.F. - A cirurgia
no final do século xix segundo o diário do Dr.. Malaquias
Antonio Gonçalves.VI Congr.Bras. Hist.Med. Barbacena, MG, 14 a 17/06/2001.
Disponível em 28/07/2004 em http://www.jmrezende.com.br
_________
Joffre M de Rezende
Prof. Emérito da Faculdade de Medicina da Universidade
Federal de Goiás
Membro da Sociedade Brasileira de História da Medicina
e-mail: pedro@jmrezende.com.br
http://www.jmrezende.com.br
25/07/2004